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terça-feira, 14 de abril de 2020

Coronavirus e Missionários (O Globo)


Coronavírus
Funai não tem controle de terras indígenas

Vista área do Vale do Javari, onde missionários fizeram voos de helicóptero em plena pandemia de coronavírus Foto: Divulgação/Univaja

O ingresso de missionários em terra indígena com a presença de povos isolados em meio à pandemia do coronavírus mostra inércia da Fundação Nacional do Índio (Funai) no controle dessas áreas e revela que o órgão está entregue a um "proselitismo religioso agressivo" e a um setor do agronegócio "troglodita". A opinião é compartilhada por dois ex-presidentes da instituição, Sydney Possuelo e Márcio Meira.
Nesta segunda-feira, O GLOBO mostrou que religiosos da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) fizeram voos de helicóptero para o Vale do Javari sem autorização da fundação, mesmo depois da edição de uma portaria do órgão e de recomendações do Ministério Público Federal (MPF) de combate ao novo coronavírus para proteção aos indígenas. Regras da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) também foram infringidas.
Mais longevo entre os presidentes da Funai, o antropólogo Márcio Meira (2007-2012) diz que o órgão deveria ir além do procedimento protocolar de proibir autorizações de ingresso a terras indígenas na crise do coronavírus e defende ações mais enérgicas do Poder Público e da fundação.
- Aquela região tem forte presença de índios isolados. Do procedimento protocolar está completamente errado uma vez que vivemos uma pandemia. A prioridade da Funai hoje é retirar todo mundo de lá. Entrar com a Polícia Federal e o Ibama e arrancar todos os garimpeiros, madeireiros e missionários, todos aqueles não indígenas.

O ex-presidente da Funai Márcio Meira Foto: Funai/Divulgação

Para ele, a crise do coronavírus esconde e ao mesmo tempo escancara a letargia com que a Funai tem se apresentado diante de questões urgentes nos conflitos em terra indígena.
- A pandemia do coronavírus está, de certa forma, sendo um biombo para esconder a ação violenta desenfreada na Amazônia como um todo, não só contra os povos indígenas, mas também de ambientalistas e lideranças. A mistura disso tudo com coronavírus é simplesmente terrível.
Na opinião de Meira, o contexto político vivido no país e em diversos órgãos do governo federal prejudica ainda mais ações efetivas que protejam os povos indígenas.
- Acho que é uma unanimidade no meio indigenista de que não há, desde 1988, uma situação pior do que esta de agora contra os povos indígenas, como estamos vendo neste governo Bolsonaro. O comando da Funai, por exemplo, foi entregue a grupos do setor do agronegócio mais atrasado, que não tem compromisso com os direitos humanos e nem o meio ambiente. Não quero generalizar, eu falo dos trogloditas.

Um grupo de missionários comprou um helicóptero para explorar áreas indígenas de difícil acesso e evangelizar índios que ainda não tiveram contato com a civilização. Órgãos do governo responsáveis pela área dizem que não autorizaram incursão dos religiosos

O ex-presidente da Funai vê com preocupação a posse de um missionário ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (Ricardo Dias Lopes) para a coordenação-geral de índios isolados.
- Esses missionários fazem parte de um segmento de proselitismo religioso mais agressivo do ponto de vista da imposição, de um discurso de uma religião sobre a cultura dos povos tradicionais, desrespeitoso.
Meira lembra o episódio da morte de indígenas da etnia Zo’e, no interior do Pará, quando missionários norte-americanos desrespeitaram as leis brasileiras e contataram os então nativos isolados.
- Aquele genocídio deu início a uma postura institucional da Funai que desde então era de proibir qualquer religioso em terra indígena com a presença de qualquer missionário em áreas de indígenas isolados ou de recente contato, que é o caso do Javari.
Ao mesmo tempo em que nega ter dado autorização para missionários entrarem no Vale do Javari, a Funai contemporiza a presença desses religiosos no local.
"A Funai informa que a presença desta missão na área habitada pela etnia Marubo refere-se a tempos anteriores à instalação da Unidade Descentralizada da Funai na região, a Coordenação Regional do Vale do Javari. Os missionários contam com o consentimento de lideranças indígenas para a permanência no local", diz nota da fundação enviada ao GLOBO, sem levar em conta a infração de sua própria portaria.
- A terra indígena é uma terra da União, o órgão responsável por ela é a Funai. Por esse aspecto jurídico, de domínio e propriedade da terra, o controle tem que ser da Funai - afirma Meira.
- Ainda que os Marubo tenham sido contactado há muito tempo, por se tratar de uma terra onde há registro de povos isolados, simplesmente não poderia entrar ninguém ali sem autorização para praticar proselitismo religioso.
'Se é irregular, tira e bota para fora'.

O indigenista Sydney Possuelo durante expedição com os índios Korubo em 1996. Foto: Arquivo Pessoal.

Ex-presidente da Funai entre 1991 e 1993, o indigenista Sydney Possuelo é considerado uma das maiores autoridades quando se trata de povos indígenas isolados. Ele foi responsável por suspender as autorizações para que missões religiosas entrassem em terras indígenas durante sua gestão e expulsou os missionários da Missão Novas Tribos no episódio dos Zo’e.
- O episódio dos Zo’e foi emblemático. Eu botei todo mundo para fora. Eu cheguei e falei: sai todo mundo daí já, peguem suas coisas e vão embora. Daqui a dois, três dias eu vou chegar com uma equipe e quero todos fora daí. Não está previsto em lei, é tudo irregular, tira e bota para rua. É isso que a Funai tem que fazer - defende.
Possuelo diz que a Funai não tem controle nenhum de quem entra e sai de terras indígenas quando o ingresso é pelos ares.
- A Funai nega a autorização de ingresso e daí? Diz que eles estão lá há tantos anos. E daí? A Funai é o órgão de lei que deve zelar pelos índios. Não ter autorizado não significa que não tenha que ir atrás, saber o que está acontecendo lá no Javari, por que que não houve vigilância? Então, ela que vá à Anac e às autoridades que controlam o espaço aéreo para investigar quem autorizou esses voos. Quem é o piloto? Esse piloto está com a carteira em dia? A manutenção dessa aeronave como estava? - questiona.

 O missionário Jevon Rich da Missões Novas Tribos do Brasil (MNTB) supostamente sendo resgatado pelo R66. Funai nega que tenha autorizado ingresso de helicóptero e de nenhum outro voo na região do Vale do Javari Foto: Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB)/Divulgação.

Possuelo faz coro ao colega diante da presença de religiosos em áreas estratégicas dentro da Funai para contato com os povos isolados e de recente contato.
- Num contexto de pandemia, olha a incoerência de tudo isso! Num momento que a grande arma para índios e não índios é exatamente o isolamento e algumas tribos naturalmente estão isoladas, esse isolamento está sendo violado e quebrado por interesse religioso. É um absurdo. Para você ver o tamanho do absurdo que nós chegamos é só olhar e ver que temos um missionário na coordenação de povos isolados da Funai. Nunca um missionário poderia ter um cargo desses. A menos que a política seja essa: estabelecer o contato. E a política não é esta, a política vigente é a de não contato - diz.
Segundo ele, falta atitude do Estado e maior controle das fronteiras e áreas indígenas, que nunca passou por uma fiscalização de qualquer tipo de autoridade regional.
- O Estado não faz nada porque não quer. Se o Estado quer exercer a tutela sobre os povos indígenas, se o Estado quer exercer a sua autoridade sobre o seu patrimônio, pela preservação dos povos indígenas, o Estado simplesmente age, retira esses missionários e briga na Justiça. O que está acontecendo é uma "semi-permissão”, o território está semiaberto.
Ele compartilha a opinião de Meira de que invasores de terras se aproveitam da crise do coronavírus, principalmente na Amazônia.
- Em tempos de coronavírus, a crise serve de pano de fundo para destruição ambiental. Entre nós e o meio ambiente tem esse véu que se chama coronavírus, que desvia a nossa atenção enquanto os caras estão lá na Amazônia destruindo, metendo máquina, acabando com tudo, e a Funai diz "eu não autorizei" a entrada de ninguém.
O indigenista também critica a postura do governo Bolsonaro em relação à condução das políticas indígenas.
- Bolsonaro foi o pior inimigo dos povos indígenas de todos os tempos. O bolsonarismo representa uma política que foi pensada para destruir todo um histórico da Funai. Tudo que fizemos de bom está sendo destruído - finaliza.
Procurada, a Funai ainda não se manifestou sobre as opiniões de seus ex-presidentes.

Daniel Biasetto
14 de abril de 2020 às 12:53hs

Coronavírus e Invasores (Pública)


Coronavírus e Invasores
A Situação dos Indígenas no Brasil


Precariamente assistidas pelo governo e pressionadas pela crescente onda de invasões em seus territórios, as comunidades indígenas enfrentam quase sozinhas o avanço da pandemia do coronavírus nas aldeias. Até o final de segunda-feira (13), o vírus já havia matado três indígenas — um adolescente Yanomami, de 15 anos, em Roraima, uma idosa Borari, de 87 anos, em Alter do Chão, no Pará, e um homem da etnia Mura, de 55 anos, em Manaus — e contagiado nove pessoas no total. Outros 23 casos estão sendo tratados como suspeitos e 31 foram descartados, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde (MS).
“A melhor forma de prevenir agora é manter as comunidades isoladas e orientar que não saiam e nem recebam visitas. Temos um histórico muito perverso de doenças contagiosas, que dizimaram etnias inteiras no passado. Todos estão assustados”, diz Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A preocupação maior das entidades, segundo ela, é se prevenir contra a fase mais dura do contágio, que ameaça as comunidades indígenas, proporcionalmente, na mesma projeção de avanço às cidades.
Longe da briga travada entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, as comunidades indígenas da Amazônia contam basicamente com o trabalho de suas lideranças comunitárias, das entidades indigenistas e profissionais de saúde, que travam uma guerra quase solitária contra o vírus. “Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”, diz Sônia Guajajara.

“Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”, relata Sônia Guajajara.

Há duas semanas ela vinha pressionando a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, pela antecipação da campanha de vacinação contra H1N1 nas aldeias, prevista para o final de abril, e para que se adote como critério a possibilidade de contágio comunitário, uma vez que em muitas regiões, além da miscigenação, há forte interação entre aldeias e cidades. Nesta segunda (13), o secretário nacional de Saúde Indígena, Robson Santos Silva anunciou que a vacinação começará na próxima quinta-feira, com a distribuição de 750 mil vacinas para comunidades indígenas de todo país.
Os profissionais de saúde estão coletando amostras de material para análise laboratorial de pessoas que apresentem sinais da Covid-19 e que tenham viajado. Os demais são avaliados pelos sintomas e medicados como gripe. Mas não têm, segundo Sônia Guajajara, os prometidos kits para testagem rápida. “Não é gripezinha. É uma doença altamente letal e com risco maior aos indígenas”, diz a coordenadora da APIB.
O vaivém descontrolado de pessoas nos garimpos ilegais, segundo as entidades indigenistas ouvidas pela Agência Pública, é atualmente o grande desafio dos profissionais de saúde e das lideranças que lutam para evitar o contato. “Exigimos que os órgãos de segurança tirem os invasores das terras indígenas. O risco de contágio é iminente”, diz Sônia. APIB e CIMI sustentam que no vácuo deixado pela ausência da Funai, Agência Nacional de Mineração (ANM) e da redução dos controles pela Polícia Federal e Exército, os garimpos ilegais, grilagem de terras e exploração ilegal de madeira estão aumentando na Amazônia. Lideranças dos Karipuna, em Rondônia, alertaram entidades indigenistas sobre invasores limpando áreas a 10 quilômetros da Aldeia Panorama para extrair madeira. Levantamento do jornal O Estado de São Paulo, com base em informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), aponta que as áreas desmatadas praticamente dobraram na Amazônia, saltando de 2.649 quilômetros quadrados, para 5.076 quilômetros quadrados.
O ritmo do avanço da mineração ilegal é igualmente preocupante. “Só nas terras dos Yanomami já são mais de 30 mil garimpeiros”, disse o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Antônio Eduardo Oliveira. Até o final do ano passado, a estimativa era de 20 mil garimpeiros. Oliveira afirma que a crise sanitária fragilizou ainda mais os controles e abriu brechas para a ação dos invasores. Segundo ele, a SESAI, que já havia afastado seus agentes das áreas de conflito com restrição a viagens imposta pela Funai, não tem plano de emergência preventivo ou de contenção caso a doença avance sobre as comunidades indígenas.

Antônio Eduardo Oliveira é coordenador do Cimi

Robson Santos Silva, o secretário de Saúde Indígena, disse à Pública que a SESAI estruturou seu plano de ação para acompanhar a evolução da doença. “O plano é móvel e pode ser modificado a cada etapa”, disse ele. Num vídeo divulgado pelo site da SESAI, Silva alertou que nesta semana começa a fase mais complicada. “Estamos entrando na pior etapa, que é essa que se inicia agora. O vírus tende a se expandir”, disse ele, apelando para que os indígenas permaneçam isolados e em suas comunidades. A SESAI, segundo ele, cuida da saúde básica em distritos indígenas, enquanto o SUS atenderá a todos, incluindo os casos mais graves de indígenas infectados. O secretário disse que não quer acusar os hospitais, mas afirma que os três indígenas que faleceram não deixaram suas aldeias com sintomas do coronavírus.
“Desde o início da crise estamos cobrando a ação do governo, mas não há até agora qualquer resposta. Com o sucateamento da Funai os riscos aumentaram”, afirma Oliveira. O CIMI pediu que seus 200 funcionários envolvidos com assistência aos índios saíssem de aldeias e passassem a monitorar à distância a situação. Sônia Guajajara afirma que a Funai foi desmontada e reaparelhada para atender ruralistas e mineradoras, estimuladas pela política do governo Bolsonaro de incentivos às atividades econômicas em terras indígenas. O ministro da Justiça e da Segurança, Sergio Moro, a quem a Funai é subordinada, segundo ela, se comporta como quem ignora completamente os riscos do coronavírus. “Ele não fala nada”, cutuca.
Na última segunda (13), Moro quebrou o silêncio. Disse que o contágio que resultou nas três mortes ocorreu fora das aldeias e que as ações do MJ começaram pelo isolamento nas comunidades. Segundo ele, visitações a comunidades só em casos excepcionais, para levar suporte. As invasões, que chamou de intromissão, Moro disse tratar-se de um desafio aos órgãos de controle.
Há duas semanas a APIB, com a ajuda do Ministério Público Federal, conseguiu derrubar parte de uma portaria do presidente da Funai, Marcelo Xavier, que permitia às coordenações regionais fazer contato com índios isolados, tarefa complexa e delicada, executada por um departamento específico da autarquia. Em tempos de pandemia o contato com gente despreparada, alerta Sônia, representaria um alto risco porque índios isolados não têm defesas no organismo nem contra os vírus mais comuns.
Também o Ministério Público Federal recomendou ações emergenciais de proteção à saúde dos povos indígenas e citou “cenário de risco de genocídio” sem as ações recomendadas.
Coordenador do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), Enoque Taurepang afirma que a movimentação de garimpeiros e dos empresários que os financiam, está gerando um cenário de alto risco para os Yanomami, que já apresentam sérios problemas de saúde em decorrência do derrame de mercúrio em rios e córregos na extração de ouro.

Na avaliação de Sônia Guajajara, o ministro Sergio Moro tem ignorado completamente os riscos do coronavírus

“Infelizmente a situação do garimpo nos Yanomami é incontrolável. Tem empresários de outros estados dentro das áreas. A gente chega lá e fala que é proibido, mas eles não obedecem, não conhecem a palavra não. Eles mudam o nome da invasão: dizem que é trabalho e não atendem”, conta Taurepang, que tem usado as redes sociais para orientar as 245 comunidades indígenas de Roraima filiadas ao CIR.
Como as atividades do Exército na região também estão funcionando precariamente em decorrência da crise sanitária, segundo ele, os empresários de garimpo intensificaram as invasões certos de que não sofrerão represálias. A última ação conjunta da Polícia Federal e Exército para desalojar garimpeiros ocorreu no dia 13 de março, na comunidade de Napoleão, da etnia Macuxi, na TI Raposa Serra do Sol. Os dois órgãos desmontaram um garimpo em construção, prenderam o empresário que financiava a atividade e quatro indígenas.
“Hoje já não conhecemos mais nem as rotas que estão sendo usadas pelos garimpos ilegais. Estão entrando sem a preocupação de ter o exército no encalço deles. A gente não pode fazer muita coisa e nem sabe direito o que está acontecendo nos garimpos nesse momento. Uma coisa é a comunidade lutar contra as invasões e outra situação é ter um presidente que faz com que essas atividades aconteçam dentro das nossas terras. Um presidente que em toda oportunidade fala de exploração mineral”, critica o dirigente.
Ele diz que a lei não funciona nos garimpos ilegais: “Lutamos contra o Estado, contra essa doença e não sabemos até quando podemos segurar todos esses ataques. Se fosse pela lei indígena daria para dar um jeito. Mas somos subordinados a um Estado, a lei e a Constituição, que só funciona para beneficiar os empresários nesse governo. Não podemos fazer muita coisa”.
Ele diz que a ausência de órgãos de órgãos do Estado e a falta de equipamentos básicos nos postos de atendimento para os profissionais de saúde — como luvas, máscaras e álcool em gel e de remédios — estão levando medo de contágio aos índios e às lideranças que fazem a mediação entre sedes de vilas e aldeias.
Ontem, o jornal O Estado de São Paulo informou que há duas semanas a Funai recebeu mais 11 milhões de recursos emergenciais para usar na proteção indígena mas não gastou nenhum centavo.
O coordenador de saúde indígena da região Leste de Roraima, Adriano Corinthia, afirma que há uma atenção especial com a entrada de venezuelanos e com o controle do fluxo entre as aldeias, vilas e cidades, mas que o atendimento é o de rotina, sem material que permita fazer o teste de coronavírus. “Temos uma reserva mínima de materiais para os profissionais de saúde e medicamentos (apenas) para tratamento sintomatológico caso surja algum caso”, disse o enfermeiro Manoel Avelino, que trabalha com os Yanomami. Para suprir a carência de material, o governo federal enviou ao Estado peças ilustrativas de campanha com informações recomendadas pelo MS. Segundo ele, os garimpos ilegais são áreas de risco de contágio.
No ano passado, a insegurança na região levou o CIR a organizar grupos de vigilância, proteção e monitoramento, os chamados guardiões, para garantir o controle dos territórios indígenas contra invasões. Com a maior população indígena do país, estimada em 55 mil pessoas distribuídas em 413 comunidades em 32 TIs já demarcadas, o equivalente a 46,2% de sua superfície, Roraima é um dos pontos mais assediados do país por empresários de mineração, que investem pesado em garimpos ilegais.
O cenário gerado pela pandemia do coronavírus, diz ele, aumentou a tensão na região. “A situação é complicada. Temos problemas de imigração, garimpos ilegais e agora a evasão de pessoas que estão saindo das cidades, das sedes das vilas e indo para as aldeias e áreas rurais em busca de refúgio. A gente trabalha com os grupos de vigilância no controle do nosso território. Mas essas pessoas, por si só, sem equipamentos não podem fazer esse trabalho porque é também expor a vida delas ao risco de pegar essa doença”, alerta o coordenador do CIR.
Enoque Taurepang assumiu o comando do CIR no ano passado. É líder da etnia na Comunidade Araçá, no município de Amajari, na fronteira com a Venezuela, onde 53,8% da população, estimada em 11.560 pessoas em 2017 pelo IBGE, é indígena. Na vila indígena vivem entre 1.800 a 2 mil pessoas que, segundo ele, se já sofriam com o fluxo migratório de quem chega ao Brasil pela BR-174, nos últimos dias vivem assombradas com os riscos de contágio do coronavírus. Mais a Leste, na TI Raposa Serra do Sol, a miscigenação é um dos fatores preocupantes. Os três municípios da TI têm população predominantemente indígena, com 88,1% em Uiramutã, 56,9 % em Normandia, na fronteira com a Guiana Inglesa, e 55,4% em Pacaraima, fronteira com a Venezuela. Roraima é o estado com maior proporção de indígenas, com 11% de uma população calculada em 450,4 mil pessoas em 2010, o que explica a forte presença das etnias nas cidades, inclusive na capital, Boa Vista. Segundo o Censo de 2010, 8.500 dos 450 mil habitantes da capital se declararam indígenas — os que vivem nas cidades não são atendidos pela SESAI, mas recebem, como a população em geral, o tratamento do SUS.
O plano de contenção das entidades como o CIR é controlar o retorno de índios de diferentes etnias que vivem nas cidades e, diante do medo do contágio, estão buscando refúgio nas áreas rurais. “Nosso principal objetivo para esse momento é fazer barreiras nas entradas de acesso para que tanto a população não indígena não entre, quanto para que os parentes não saiam. Se for necessário buscar algum gênero para dar suporte à família, que seja de forma organizada. A gente está fazendo o que pode, parando totalmente a vida da comunidade para combater o vírus e sobreviver dentro de nossos territórios”, afirma Enoque. Ele lembra, no entanto, que é difícil convencer um pai de família a ficar em isolamento, quando ele precisa sair para caçar e pescar. “Não tem como pedir que os pais fiquem 24h dentro de casa, uma vez que eles não têm um ganho, um salário ou apoio”.
Enoque conta que tem acompanhado diariamente os balanços feitos pelo comitê gestor do coronavírus e as medidas anunciadas pelo Ministério de Saúde, mas sente que não há nada claro sobre como lidar com as comunidades indígenas que, além de biologicamente mais frágeis aos vírus influenza, já enfrentavam o abandono dos órgãos estatais e a forte investida de grileiros e garimpeiros.
O coordenador do CIR afirma que as comunidades estão lutando sozinhas para enfrentar um provável avanço do vírus. “É necessário que o governo e as instituições competentes venham nos ajudar. Precisamos dos materiais básicos para prevenir e combater a doença caso ela chegue às comunidades. Mas parece que as comunidades não existem, vivem em outro mundo. Não há até hoje nenhuma política ou programa emergencial para cuidar da nossa gente, que é mais vulnerável e luta sozinha aqui na ponta”.
Nos últimos dias o CIR fez chegar às comunidades por aplicativos de celular, rádio ou telefone, mensagens suspendendo reuniões ou festejos que exijam aglomerações. “De nossa parte a estratégia é usar as redes sociais e tudo o que for possível em comunicação para manter nosso povo informado sobre tudo o que está acontecendo. Alertamos para que levem a sério e se previnam. É o que podemos fazer”, diz.

No congresso, a tentativa de aprovar medidas “urgentíssimas”

A deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) coordena a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas

No Congresso, a reação indígena ao coronavírus é capitaneada pela deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. “Há uma preocupação a mais quanto ao aumento das invasões das terras indígenas, principalmente em áreas que já têm histórico de invasão. Esse período de crise sanitária em nenhum momento fez frear as invasões dentro das terras indígenas, que buscam a exploração dos recursos naturais”, disse a parlamentar em entrevista online a jornalistas na última quinta-feira (9).
Joenia também afirma que os povos indígenas têm agido rápido e com firmeza para impedir que a Covid-19 se alastre nas aldeias. “As comunidades têm feito um trabalho incansável de alertar a sua própria população a não ir ao centros urbanos, adotando medidas de isolamento para que não haja a entrada de pessoas estranhas, esforços justamente para proteger a coletividade”, declarou.
Diante disso, há uma preocupação com a segurança alimentar: estão sendo discutidas maneiras para que a distribuição de cestas básicas não seja prejudicada, já que servidores de órgãos como a Funai, vindos de fora das aldeias, são quem realiza a entrega dos suprimentos. Ontem (13), a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves anunciou que a pasta entregará 323 mil cestas de alimentos a 161 famílias indígenas e quilombolas com ajuda da Funai e Fundação Palmares.
No Parlamento, Joenia tem contado com aliados no trabalho de contenção ao coronavírus entre os povos tradicionais. No fim de março, ela apresentou uma Proposta de Fiscalização e Controle (PFC) para monitorar a atuação da Sesai e do Ministério da Saúde no enfrentamento da pandemia entre a população indígena – a ideia é acompanhar os processos administrativos e verificar eventuais omissões dos dois órgãos.
Junto a outros parlamentares, a deputada também propôs um Projeto de Lei (PL) que obriga a União a liberar ao Subsistema de Saúde Indígena recursos adicionais, não previstos nos Planos de Saúde dos DSEIs, em caso de pandemia, emergência e calamidade em saúde pública. Essa e outras propostas recentes sobre direitos indígenas devem ser apensadas a outro PL, que determina a adoção de medidas “urgentíssimas” de ajuda às comunidades enquanto durar o decreto de calamidade pública. Estão entre as ações o pagamento de auxílio emergencial no valor de um salário mínimo a indígenas de todo o país, reforço na proteção territorial e incremento da estrutura de saúde dos estados e municípios para que possam comportar o tratamento de indígenas cujos casos demandam internação.

Vasconcelo Quadros, Anna Beatriz Anjos
14 de abril de 2020 às 12:00hs

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Cartilhas Covid-19 (ISA)


Amazônia
Cartilhas em idiomas indígenas para combate ao Covid-19

Cartilha para combate ao Covid-19 nos idiomas Baniwa, Tukano, Nheengatu, Dâw, Hupda e Português.

Proteger as comunidades indígenas do Alto Rio Negro da pandemia do coronavírus mobilizou esforços urgentes da equipe do Instituto Socioambiental (ISA) baseada em São Gabriel da Cachoeira (AM) para a elaboração de cartilhas informativas nas línguas Baniwa, Tukano, Nheengatu, Dâw, Hupda a serem levadas para as Terras Indígenas pelos profissionais de saúde do DSEI-ARN (Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro).
O material tem versão em português e também é usado em contexto urbano pelos profissionais da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), assim como por outros multiplicadores da área de educação, meio ambiente e saúde, como os agentes indígenas de manejo ambiental (Aima’s), lideranças e comunicadores indígenas.
“As cartilhas chegam em um momento excelente. Justo quando nossas 25 equipes multidisciplinares de saúde vão entrar em campo para trabalhar a prevenção ao Covid-19. Educação e saúde caminham juntas e a conscientização sobre essa nova doença, feita de forma adaptada ao contexto cultural, é fundamental para o trabalho dar certo”, afirmou Sediel Ambrósio, enfermeiro e responsável pelo núcleo II de Planejamento, Gestão do Trabalho e Educação Permanente do DSEI-ARN. Sediel é responsável pela entrega dos materiais aos 25 pólos base de saúde que existem na área do DSEI-ARN.
As ações de comunicação, educação e informação estão previstas no Plano de Contingência para Infecção Humana pelo novo Coronavírus em Povos Indígenas do DSEI-ARN, que abrange os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, com total de aproximadamente 30 mil indígenas atendidos.

Sediel Ambrósio, responsável pelo planejamento, gestão e educação permanente do DSEI-ARN, na comunidade Hupd'ah de Santa Cruz do Tury, TI Alto Rio Negro.

Neste plano, os especialistas alertam para a vulnerabilidade dos índios da região em relação à Covid-19, uma vez que 10% dos aldeados são maiores de 60 anos, considerado grupo de risco da doença. Além disso, também alerta para o alto índice de morbidades ligadas à Influenza (gripe) e pneumonia, além de doenças relacionadas ao aparelho respiratório e circulatório. Em 2018, 7,4% dos óbitos registrados no DSEI-ARN foram relacionados a doenças respiratórias, aponta o Plano de Contingência (anexo abaixo).
O material informativo é disponibilizado em um livreto de papel reciclado e também formato digital. Além disso, a partir deste conteúdo são distribuídos ainda podcasts educativos pelos comunicadores da Rede Wayuri para serem compartilhados via celular nas línguas indígenas. As equipes do DSEI-ARN e Semsa também já vêm usando a rede de radiofonia da Foirn para informar às comunidades indígenas sobre o agravamento da pandemia no Brasil e na região amazônica. 

Mobilização
Poucos dias após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar situação de pandemia, foi criado por decreto municipal em São Gabriel da Cachoeira – município mais indígena do Brasil – o Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao novo Coronavírus. Interinstitucional, o comitê integra esforços para prevenir a chegada do Covid-19 no Alto Rio Negro, assim como buscar melhorias urgentes para o sistema de saúde da região em caso da proliferação da doença. O ISA, junto com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), participa deste comitê e assessora os trabalhos de comunicação, educação, assessoria jurídica e defesa de direitos.

Mapa de localização territorial dos polos base do DSEI Alto Rio Negro.

O secretário municipal de saúde de São Gabriel da Cachoeira, Fábio Lobato Sampaio, esteve em Manaus para articular recursos e insumos para serem levados ao município com urgência. Sampaio chegou de volta a São Gabriel com materiais adquiridos junto à Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam), entre os quais 300 testes rápidos de Covid-19 e kits de EPIs (equipamentos de proteção individual, como luvas e máscaras). “Continuaremos nossos esforços integrados dentro do comitê para enfrentar essa pandemia. É muito importante para o município ter a união das instituições nesse momento tão difícil”, disse.
Os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel também receberão recursos emergenciais do Fundo de Fomento, Turismo, Infraestrutura, Serviços e Interiorização do Desenvolvimento do Amazonas), segundo anunciado pelo governador do Amazonas, Wilson Lima.
Ao todo serão R$ 70 milhões deste fundo destinados ao interior do estado. Barcelos e Santa Isabel receberão R$ 360 mil (cada um) e São Gabriel ficará com R$ 515 mil, que serão aplicados de acordo com o plano de contingência dos municípios, sendo 70% para custeio das operações e 30% em investimentos, segundo Sampaio.
Uma das maiores preocupações no Rio Negro é o fato de os municípios não terem Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) ou respiradores mecânicos. Em casos graves, os pacientes precisarão ser removidos para a capital, Manaus, distante cerca de mil quilômetros. Dessa forma, os esforços neste momento da pandemia no Brasil estão voltados ao isolamento dos municípios e a fortes campanhas de educação e informação para que a população evite a circulação e permaneça em isolamento social.
No caso dos moradores das Terras Indígenas, a indicação é que permaneçam em suas comunidades até o fim da crise. “Precisamos que os nossos parentes fiquem em suas casas nas comunidades e só venham para a cidade em casos de necessidade urgente. O ideal agora é se proteger ficando em suas casas”, recomendou o presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré.

01 de abril de 2020.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Guerra contra os índios (O Globo)

O governo declarou guerra aos índios
Eduardo Viveiros de Castro

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro avalia que a escalada do desmatamento e a pressão sobre povos indígenas piorou após a eleição de Jair Bolsonaro.
Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Numa palestra recente, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro disse que governar é criar desertos. Ele usou a metáfora para descrever a relação dos donos do poder com o meio ambiente. “Quem já andou pela Amazônia sabe que a grande realização de todo prefeito é derrubar as árvores e cimentar a praça”, comenta.
Crítico de obras faraônicas da ditadura militar e dos governos petistas, o professor da UFRJ considera que a situação ficou ainda pior desde a posse de Jair Bolsonaro. Ele atribui a escalada do desmatamento a uma aliança da gestão atual com os setores mais atrasados da economia, que derrubam a floresta para plantar soja e extrair minério. O avanço das motosserras tem aumentado a pressão sobre os povos indígenas, que o antropólogo estuda desde a década de 1970. “O que eles querem é acabar com os índios no Brasil”, afirma.

Há muito tempo não se falava tanto em ameaças aos índios no Brasil. Por quê?
Há uma ofensiva econômica e religiosa contra os povos indígenas. O grande capital quer as terras, e os evangélicos querem as almas.
Existe uma frase famosa atribuída a um índio americano: “Nós ficamos com a Bíblia e vocês ficaram com a terra”. Os grandes interesses econômicos, que sempre tiveram a posse do Estado, agora se uniram ao fundamentalismo religioso. Isso é uma coisa relativamente nova no Brasil. E muito preocupante.

Onde o governo entra nisso?
Este governo tem três braços: o econômico, o religioso e o militar. Os militares veem os índios como ameaça à soberania. Os evangélicos tratam os índios como pagãos que devem ser convertidos. E o grande capital quer privatizar ao máximo o território brasileiro, o que significa reduzir as reservas ecológicas e as terras indígenas.
O projeto é abrir novas áreas para o extrativismo mineral e derrubar mais floresta para abrir pasto e plantar soja.
O Brasil está retomando sua vocação de colônia de exportação de produtos primários. Tivemos o ciclo do açúcar, o ciclo do ouro, o ciclo do café e o ciclo da borracha. Agora temos o ciclo da soja e da carne.

Bolsonaro nomeou um missionário para o setor da Funai que cuida dos índios isolados. O que isso significa?
Os cristãos fundamentalistas acreditam que é preciso converter até o último pagão, e os índios isolados são os clientes ideais para esse projeto.
O objetivo dos missionários é desconectar os índios das suas condições culturais e materiais de existência. Isso significa separar os povos deles mesmos. Destruir o que há de indígena nos povos indígenas.

'Há uma ofensiva econômica e religiosa contra os povos indígenas', afirma Viveiros de Castro.
Foto: Ana Branco / Agência O Globo

É um projeto especialmente sinistro porque está ligado a um programa econômico de desterritorializar os índios para permitir a entrada da mineração. Os missionários são fanáticos, mas os estrategistas do Estado não são.
 Desde 1987, a política oficial da Funai era evitar o contato e garantir a proteção dos índios isolados. Essa política sempre foi combatida pelos missionários. Agora também passou a ser combatida pelo governo.

Como vê as declarações do presidente sobre os índios?
São declarações racistas e repugnantes. Essa história de que o índio “está evoluindo” e “cada vez mais é um ser humano igual a nós” ... Bolsonaro faz declarações racistas e xenófobas, na medida em que trata os índios como se fossem estrangeiros. Essas falas estimulam a a violência, como se fossem uma licença para matar.
O Brasil tem um governo que declarou guerra aos povos indígenas. O governo Bolsonaro vê os índios como um obstáculo, como algo que precisa acabar. Os governos anteriores nunca atacaram os índios dessa forma.

Qual é o projeto de Bolsonaro para os povos indígenas?
Ele não tem projeto nenhum. Quem tem um projeto é o grande capital, que usa o Bolsonaro como uma espécie de leão de chácara.
O horizonte intelectual do Bolsonaro vai até a bateia do garimpeiro. Ele tem um imaginário do Velho Oeste, uma obsessão primitiva com a ideia de ficar rico com o ouro.
Este é o governo da terra arrasada. Querem desescrever a Constituição de 1988, que não é nenhuma maravilha, mas representou um grande avanço na conquista de direitos e na proteção dos índios.

Por que os militares veem a demarcação de terras indígenas como ameaça à soberania?
Os militares vivem na paranoia de que o Brasil está sob ameaça perpétua de invasão. No plano econômico, a internacionalização da Amazônia já aconteceu há muito tempo, mas eles não dão a mínima.
Como vê os ataques do Planalto a ONGs ambientalistas?
Existem ONGs de todos os tipos, mas o governo só ataca as que difundem práticas de justiça ambiental e social. E esses ataques agradam aos militares, que sempre se viram como donos do território nacional.

O senhor também fez críticas duras aos governos Lula e Dilma. Qual a diferença entre as gestões do PT e a atual?
Fui muito crítico ao modo como os governos Lula e Dilma concebiam o desenvolvimento econômico. A construção da usina de Belo Monte foi uma monstruosidade, uma iniciativa criminosa. Sem falar nas interações bizarras entre os governos do PT e as empreiteiras.
Apesar de tudo, o que estamos vivendo hoje é muito pior. Antes você já tinha garimpeiros invadindo terras indígenas, mas a Polícia Federal ia lá e tentava retirá-los. Agora o governo quer destruir a Funai e incentivar o garimpo.
O que nós temos hoje no Brasil é um projeto de destruição. Bolsonaro já disse que não chegou para construir, e sim para derrubar.
Outra coisa sinistra é a relação do poder com os porões da ditadura, com um submundo que emergiu. Vivemos num país em que a distância entre a milícia e o governo se tornou infinitesimal, para usar um eufemismo.

Como define o espírito deste governo?
O sentimento predominante no governo e em sua base de apoio é o ressentimento. Ele se manifesta nos ricos que não toleram ver a empregada indo à Disney e nos pobres que pararam de ascender socialmente por causa da crise.
O Brasil é um país que não aboliu a escravidão, um país racista. A frase do Paulo Guedes sobre as empregadas indo à Disney pertence ao universo moral da escravidão.
As classes dominantes do Brasil sempre foram eficazes em manter o povo num estado de abjeção intelectual. Darcy Ribeiro já dizia que a crise da educação não é uma crise, é um projeto.
A incapacidade de aceitar as diferenças também produz ressentimento. O sujeito olha em volta e diz: “Este cara é gay, não quer viver como eu”. Então ele pensa que tem que curar o gay, tem que acabar com o índio.
Isso gera um processo de etnocídio, no sentido mais amplo da palavra. Estamos assistindo a um etnocídio geral no Brasil, uma tentativa de exterminar tudo o que não é parecido com quem está no poder.

Por que o ressentimento virou uma arma tão poderosa para políticos populistas?
Isso é um fenômeno mundial. Tem a ver com a ideia de que o mundo em que nós vivemos está acabando. Com a emergência climática, o futuro próximo se tornou imprevisível. E a sensação de que as coisas estão saindo do eixo produz uma insegurança existencial enorme.
Nós imaginávamos que a História iria conduzir o Ocidente a um mundo cada vez mais secular. E o que se vê é um retorno da religião e do fundamentalismo, que estão ligados a esse sentimento de pânico. 

Bernardo Mello Franco e Fernanda Godoy
16 de fevereiro de 2020 às 04:30