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sábado, 18 de abril de 2020

Exploração e Destruição (DW)


Amazônia
Uma história de exploração e destruição (DW)

A preocupação com a preservação ambiental no Brasil é historicamente pequena perto de décadas de desmatamento quase em escala industrial. Um quinto da cobertura vegetal original não existe mais.

Área desmatada no Pará, em imagem de 2014.

Imensa, pouco habitada e distante dos principais polos econômicos do país, a região amazônica foi alvo de políticas governamentais variadas desde a época do Brasil Colônia. Inicialmente encarada como território a ser anexado e de coleta de produtos naturais, depois se tornou área de povoamento e grandes obras, espaço de natureza rica e povos nativos a serem preservados e região a ser desmatada para dar lugar à exploração mineral e ao agronegócio.
A delimitação conhecida como Amazônia Legal compreende hoje os sete estados da Região Norte, mais Mato Grosso e parte do Maranhão. São 5,2 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente a 60% do território nacional – se fosse um país, seria o sétimo maior do mundo, maior do que a União Europeia. É uma região diversa, com variedade de perfis morfológicos, climáticos e sociais, onde moram 29 milhões de pessoas, ou 14% da população brasileira.
A preocupação com a preservação ambiental da Amazônia é recente e se fortaleceu apenas após a Constituição de 1988. O desmatamento em grande escala, também relativamente novo, ocorreu nos últimos 50 anos. Em 1970, apenas 1% da sua floresta havia sido derrubada e, hoje, cerca de 18% da cobertura vegetal original não existem mais.

Entenda como a relação do poder público com a Amazônia evoluiu ao longo do tempo:
Colônia e Império: ampliação do território
Uma das primeiras iniciativas governamentais para explorar a região amazônica foi uma expedição em 1637 patrocinada pelo então estado do Maranhão e Grão-Pará, que enviou desbravadores pela floresta, que chegou ao Equador.
Nessa época, o Tratado de Tordesilhas ainda dividia o domínio da América entre Portugal e Espanha e deixava a maior parte da Amazônia para os espanhóis, o que não impediu os portugueses de fazer seguidas expedições para ampliar suas fronteiras, construir vilas, capturar e escravizar índios e coletar produtos valiosos da floresta, como castanhas, fibras e ervas medicinais, as drogas do sertão. Em 1750, um novo tratado entre Portugal e Espanha redefiniu os limites territoriais e incorporou a Amazônia ao Brasil.

Infográfico das regiões amazônicas.

Apesar de restrições legais para escravizar os índios a partir do século 18, na prática muitos deles viviam sob condições análogas à escravidão, explorados por colonos e pelo governo. Empreendimentos locais também usavam africanos escravizados, que trabalhavam em plantações de arroz e cacau, entre outras.
A economia amazônica começou a se dinamizar a partir de 1870, nos últimos anos do Império, com o ciclo da borracha. O látex, extraído das seringueiras, se tornou um insumo importante na indústria mundial. Uma elite local ser organizou em torno da exploração do produto, e os governos realizaram campanhas para atrair migrantes para trabalhar nos seringais.

República Velha: o primeiro ciclo da borracha
A região se enriqueceu bastante com o ciclo da borracha, pois o látex era então um produto praticamente exclusivo da Amazônia. Belém e Manaus se tornaram cidades prósperas, houve aumento da arrecadação de impostos e os governos no início da República patrocinaram novas iniciativas para atrair mão de obra para trabalhar nos seringais e na agricultura locais.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

As condições de trabalho, porém, eram duras, segundo o historiador César Augusto Queirós, professor da Universidade Federal do Amazonas. "A vida no seringal era muito complicada, era comum o uso de trabalho semiescravo e compulsório. Havia uma profunda exploração dos trabalhadores, afastados dos centros urbanos e distantes das famílias", afirma.
A partir de 1910, o início da produção de látex na Malásia derrubou a demanda pelo produto brasileiro, e a economia gomífera na Amazônia entrou em crise. Migrantes que haviam ido trabalhar nos seringais se mudaram para as cidades, que não estavam preparadas para recebê-los, e a região entrou em recessão.

Getúlio Vargas: fôlego da guerra e pecuária
Ao assumir o país em 1930, Getúlio estabeleceu como prioridade na Amazônia recuperar a economia extrativista para criar alternativas a uma região em crise e estabelecer colônias agrícolas para manter os trabalhadores de seringais no interior em vez de migrarem para as cidades, segundo Queirós.

Infográfico da população amazônica.

A virada, no entanto, só chegou com o início da Segunda Guerra Mundial e o ingresso do Brasil no conflito junto aos Aliados. A invasão da Malásia pelo Japão bloqueou o acesso da indústria dos Estados Unidos ao látex asiático, e para suprir a demanda o Brasil se comprometeu a dobrar sua produção. O governo de Getúlio desenvolveu campanhas para atrair mais trabalhadores para os seringais, especialmente do Nordeste.
O segundo ciclo da borracha durou pouco. Com o fim da Segunda Guerra, em 1945, o fornecimento de látex asiático se normalizou, e a economia da Amazônia voltou a entrar em crise.
Foi durante a gestão de Getúlio que também se fortaleceu a ocupação de áreas de Mato Grosso para a pecuária extensiva, em uma época em que ainda não havia preocupação com a preservação do meio ambiente.

Ditadura militar: o desmatamento em grande escala
A chegada do regime militar ao poder resgatou e amplificou a ideia de que seria necessário ocupar a Amazônia para consolidar o domínio sobre esse território. O governo lançou campanhas para povoar a região com o intuito de protegê-la de um imaginado risco de invasão estrangeira. A iniciativa era resumida pelo slogan "Integrar para não entregar", que servia de justificativa para grandes projetos e degradação ambiental.
Foi um período marcado por obras de infraestrutura, exploração mineral, expansão do agronegócio e desprezo pelos índios. "Os indígenas eram considerados uma população sem perspectiva de progresso, e foram criadas propagandas para habitar essa região, que o governo dizia ser sem homens, sem habitantes", diz a historiadora Lilian Moser, professora da Universidade Federal de Rondônia.
Em 1970, o governo militar lançou o Programa de Integração Nacional e anunciou obras que serviriam de estímulo para atrair migrantes, especialmente do Nordeste. Um dos eixos foi a abertura de rodovias, como a Transamazônica, que ligaria a Paraíba ao sul do Amazonas, e a BR-174, para conectar Manaus à Venezuela, e a destinação das áreas que margeiam as estradas a particulares. Também há investimentos em projetos de mineração, como o Programa Grande Carajás, no sul do Pará, onde a Vale explorou diversos minérios, como ferro, estanho e bauxita.
As grandes obras tiveram impacto negativo nos povos indígenas, cujos direitos eram negados pelo regime militar. "O Maurício Rangel, que era ministro do Interior [de 1974 a 1979], disse que os povos indígenas não poderiam ser um obstáculo e que dentro de 10 ou 20 anos não haveria mais índios. Ele só não colocou claramente se não haveria mais índios porque eles seriam 'incorporados' à sociedade capitalista ou se seriam dizimados", diz Queirós.
A construção da BR-174, por exemplo, quase extinguiu a etnia Waimiri-Atroari - sua população foi reduzida de 3 mil em 1972 para 350 em 1983, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade. O órgão registrou violações dos direitos de indígenas durante a ditadura, como retiradas forçadas de terras, massacres, torturas, envenenamentos e contágios estimulados de doenças, e estima que 8.350 indígenas foram mortos em decorrência da ação direta ou omissão do regime militar.

Infográfico dos recursos minerais mais comuns na região amazônica do Brasil.

Nesse período também ocorreu a expansão do agronegócio no Pará e em Mato Grosso, com incentivo à pecuária extensiva e políticas fundiárias que beneficiavam grandes proprietários. "O governo militar foi na direção oposta aos anseios por reforma agrária e se colocou do lado dos interesses dos grandes agricultores", diz Queirós.
Segundo ele, boa parte das terras nessa região pertenciam ao estado e foram repassadas a grandes posseiros e grileiros, que tinham a obrigação de desmatar ao menos 50% da área, com uso frequente de trabalhadores em condição análoga à escravidão.
Em 1967, foi criada a Zona Franca de Manaus, com o objetivo de estabelecer indústrias na região, que teve impacto econômico positivo para a Amazônia, mas sem valorizar as "potencialidades locais", diz Queirós. 

Período democrático: esforço de preservação e retrocessos
A Constituição de 1988 trouxe inovações positivas para a preservação da Amazônia. Houve o reconhecimento de direitos dos povos indígenas e foi acelerado o processo de demarcação de suas terras. Na mesma época, se firmou no debate mundial a necessidade de preservar o meio ambiente, expressa na conferência internacional Rio-92.
Em suas gestões, Fernando Henrique Cardoso homologou 99 terras indígenas na Amazônia, e Luiz Inácio Lula da Silva, 65, atribuindo alto nível de proteção a essas áreas. E novas obras na região passaram a ter menor impacto ambiental devido às regras de licenciamento ambiental.

Infográfico do desmatamento na Amazônia.

A taxa de desmatamento na Amazônia, porém, seguiu pressionada pela exploração da madeira e o agronegócio e continuou alta até 2004, quando atingiu 27,7 mil hectares. A partir daquele ano, políticas conduzidas por Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, que criaram novas áreas de proteção legal e fortaleceram órgãos de fiscalização, começaram a dar resultado - o desmatamento caiu de forma sustentada até 2012, quando alcançou 4,5 mil hectares. Depois houve uma reversão, e o desmate voltou a subir. 
"No final do governo Lula houve redução de investimentos nos processos de fiscalização na Amazônia, e Marina Silva saiu do governo fazendo críticas ao que ela identificava como retrocessos. Havia uma tentativa de se manter uma base no Congresso que desse governabilidade e a necessidade de dialogar com interesses da bancada ruralista. Isso continuou e se acentuou no governo Dilma", diz Queirós. Segundo ele, "não é à toa" que o desmatamento voltou a crescer a partir de 2012 e se acentuou em 2016, com a chegada de Michel Temer ao poder, liderando um governo "que claramente se identificava com os ruralistas".
A reversão da proteção ambiental atingiu seu auge em 2019, com o governo de Jair Bolsonaro, cuja atuação se inspira nos princípios que nortearam os projetos da ditadura militar. O presidente reduziu o poder dos órgãos de fiscalização, fez diversas menções à exploração de recursos minerais na Amazônia e questionou dados oficiais sobre o desmatamento. "A história às vezes nos prega essas peças", diz Queirós.
Para Moser, os discursos de Bolsonaro têm impacto simbólico negativo na população e podem estabelecer as bases para mais retrocessos no futuro. "O próprio pequeno produtor começa a concordar que 'não precisa de tanta mata', que 'o índio não precisa de toda essa terra' e que 'o que dá dinheiro é a soja'", diz.

Bruno Lupion, 18 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.

Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Capital do Desmatamento (DW)


Amazônia
A Capital do Desmatamento (DW)

Com 2,5 milhões de cabeças de gado, o município de São Félix do Xingu, no Pará, foi responsável por um terço da destruição da floresta em 2019 – grande parte dentro de uma área de conservação ambiental.

Área desmatada em São Félix do Xingu. São Félix do Xingu viu o desmatamento saltar 100% em um ano.

Pelas estradas de terra que cortam São Félix do Xingu, no sudeste do Pará, na Amazônia, o movimento de caminhões boiadeiros é intenso. As carretas maiores levam até 30 animais. Eles são transportados entre fazendas e cruzam o rio Xingu sobre balsas até os cinco frigoríficos da região.
O município do Pará, que tem o dobro da área da Holanda, é o campeão em cabeças de gado no Brasil: cerca de 2,5 milhões foram contabilizadas na última vacinação, em 2019, segundo dados do Sindicato dos Produtores Rurais.
De São Félix do Xingu também parte carga para outros países. "Esse gado vai para China, Estados Unidos. E temos navios que pegam o nosso boi vivo aqui e levam para África, Ásia", detalha Arlindo Laureano Rosa, presidente da entidade.
Com o preço da carne em alta, Rosa lamenta que não haja mais espaço para a pecuária crescer no município. "Acabou o crescimento devido ao meio ambiente", justifica. "Não pode desmatar mais, não pode abrir mais espaço para criar mais boi, então a pecuária praticamente vai ser daqui pra trás", complementa.
A rapidez com que a Floresta Amazônica foi destruída em 2019 no município impressiona. O monitoramento anual feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra que São Félix do Xingu foi responsável por um terço do desmatamento em toda a Amazônia.

Gado e desmatamento na Amazônia. Assistir ao vídeo 09:43.

Dos 9,2 mil quilômetros quadrados derrubados, 3,8 mil foram perdidos na cidade, onde o salto da destruição foi de 100% em um ano. Grande parte do desmatamento ocorreu dentro de uma unidade de conservação: a Área de Preservação Ambiental Triunfo do Xingu.
"Comumente, o desmatamento está diretamente associado ao roubo da terra. O desmatamento é o modo pelo qual grileiros controlam o território", analisa Mauricio Torres, professor da Universidade Federal do Pará. "Uma vez que a grilagem se consolida, essas terras são geralmente vendidas e, aí, chega à pecuária."
Na avaliação de Torres, a legislação federal e as estaduais são, desde 2009, mais flexíveis ao grileiro. "E ficaram mais ainda. Logo, esse processo tende a acelerar muito a grilagem de terras e, como grilagem não se conjuga sozinha, podemos esperar o proporcional aumento do desmatamento e da violência", avalia.

Embargo e “laranjas”
Há pouco mais de um ano à frente do Ministério Público Estadual na cidade, Carlos Cruz da Silva lista o principal crime investigado pelo órgão: "O desmatamento irregular é, sem dúvida, a principal ação criminal com que nos deparamos aqui em São Félix do Xingu."
Dentre as principais dificuldades no combate a esse crime, está o uso de laranjas pelos criminosos. "Os mandantes dessas ações de destruição da cobertura vegetal dificilmente são identificados. Eles colocam essas áreas sobre a posse de nome de terceiros que, muitas vezes, são pessoas humildes sem qualquer patrimônio", explica Silva.

Infográfico do desmatamento da Amazônia brasileira.

Segundo o Ministério Público, agentes do Ibama, quando chegam para uma fiscalização, enfrentam uma rede de articulação de grupos locais para neutralizar as operações.
"Quando o veículo do Ibama se aproxima do município, imediatamente um grupo de pessoas começa a fazer ligações para os grupos na zona rural para que se 'protejam' da ação fiscalizatória", exemplifica Silva. "Os fazendeiros têm tempo para retirar seus gados da área embargada, retiram suas máquinas e tratores dos locais em que a infração está ocorrendo, dissipam o grupo de trabalhadores que está executando as suas ordens."
Um levantamento do Sindicato dos Produtores Rurais aponta 12 mil propriedades rurais cadastradas em São Félix. Até o fim do ano passado, 60% delas sofriam algum tipo de embargo. A causa, admite Rosa, do sindicato dos fazendeiros, está ligada ao desmatamento ilegal.
"Estão embargadas porque geralmente surge um fogo. Às vezes o caboclo vai fazer uma rocinha, um desmatamento pequeno, às vezes até maior um pouco, daí o Ibama vem e embarga", justifica, sem mencionar que o ato seria infração prevista na legislação.

Terra sem documento
Território tradicional de populações indígenas, a cidade de São Félix do Xingu começou sua história no ciclo da borracha, com exploração do látex, no início de 1900. A partir de 1980, a exploração do mogno atraiu mais pessoas para a região. Foi em meados dos anos de 1990 que o gado começou a ocupar o espaço das florestas originárias.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

Arlindo Laureano Rosa, nascido em Goiás, diz que foi um dos pioneiros. Em 1994, convidado para um casamento, visitou São Félix. "Gostei e fui trazendo parceiros", diz. "Comprei propriedade. A gente abriu muita fazenda, mas perdemos muito também. Naquele tempo, só roçava e queimava, não tinha trator."
Oficialmente, porém, as ocupações da terra são irregulares. Os terrenos não têm documentos válidos de titulação, uma questão comum na Amazônia. "O que chamam de 'abrir fazenda' é derrubar floresta", pontua Torres. "Propriedade é aquela com escritura registrada. O termo técnico para esses casos é detenção de terras públicas, algo ilegal", afirma o pesquisador.
"Eles se dizem proprietários de terra, mas não são. Eles exercem a mera detenção das terras que são da União ou do estado do Pará", esclarece Silva, do Ministério Público. "O que a gente verifica é que o poder sobre esses locais foi ao longo do tempo sendo constituído exclusivamente pela força", adiciona.

Visão de futuro
Próximo a uma das estradas de terra, Maria Helena Gomes espera a filha mais velha, de cinco anos, chegar da escola. O sítio onde mora foi comprado há dez anos de outro morador, que havia transformado a floresta em pastagem.
Com o marido, Gomes recuperou uma área, onde mantém dez mil pés de cacau. Com apoio do Imaflora, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola, eles rotacionam o gado em pequenas partes de terrenos separados por faixas de árvores plantadas.
"Eu penso no futuro dos nossos filhos", comenta Gomes. "O futuro é meio incerto se continuar desmatando como está. A gente já vê o desequilíbrio ambiental que anda, chove demais, é seca demais. A gente não pode mudar o mundo, mas a gente pode fazer a parte da gente. E a terra que a gente tem a gente tenta cuidar", diz.

Nádia Pontes (de São Félix do Xingu), 17 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Desenvolver sem Desmatar (DW)


Amazônia
Desenvolver a Economia sem Desmatar (DW)

Autor de livro sobre práticas sustentáveis na Amazônia explica por que associar desenvolvimento econômico ao desmatamento é uma falácia e indica novos caminhos para gerar riqueza sem destruir.

Árvores verdes. Ricardo Abramovay propõe formas de conservar a mata e ao mesmo tempo gerar crescimento econômico.

Quem defende o desmatamento de áreas na Amazônia costuma dizer que ele é necessário para levar progresso à região e desenvolvê-la economicamente. Essa foi uma das teses do regime militar para o bioma e segue presente em setores do Governo Federal e em parte dos empresários do agronegócio. Sob essa lógica, manter a floresta reduz a possibilidade de um país carente, como o Brasil, gerar riqueza.
O conflito entre preservar a floresta e desenvolver a região, porém, é uma ideia errada e fora de lugar, afirma Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). Ele lançou em outubro o livro “Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza”, em que analisa e propõe formas de conservar a mata e gerar crescimento econômico ao mesmo tempo.

Como desenvolver a região da Amazônia sem desmatar?
Primeiro, é necessário corrigir os rumos do que já se faz. Os produtores de soja devem reiterar o compromisso da Moratória da Soja e respeitar a regra de que não se compra soja de terras recentemente desmatadas. A pecuária precisa se tornar racional e sustentável.
Hoje, a pecuária na Amazônia é em grande parte de baixíssima produtividade. E interromper as atividades ilegais ligadas ao garimpo e à exploração clandestina de madeira. Essas são as premissas, não adianta sonhar com outra coisa se não conseguimos nem um mínimo de organização empresarial civilizada em torno daquilo que já existe.

E como ir além disso para gerar mais riqueza na região?
A verdadeira alternativa é a economia da floresta em pé, em substituição à economia da destruição da natureza que predomina hoje. Essa economia do conhecimento da natureza é composta de elementos que já existem de maneira precária ou que ainda não existem, mas são potenciais.
Os que existem de maneira precária e precisam ser desenvolvidos referem-se às cadeias de valor baseadas em produtos da floresta em pé. O açaí é o exemplo mais emblemático, o rendimento de um hectare de açaí é muito superior ao de um hectare de soja [R$ 26,8 mil para o açaí e R$ 2,8 mil para a soja por ano em 2015].

Foto de Ricardo Abramovay. "A verdadeira alternativa é a economia da floresta em pé", Ricardo Abramovay.

Há outras cadeias de valor relativamente existentes, como castanha do Pará, borracha e piscicultura, mas exploradas em condições muito precárias. A piscicultura de peixes de água doce em cativeiro na Amazônia tem a vantagem sobre as formas mais conhecidas de piscicultura em cativeiro, como o salmão. Os peixes da Amazônia criados em água doce não são carnívoros, logo o impacto ambiental é mais baixo.
Além disso, o turismo ecológico no mundo cresce 15% ao ano, e na Amazônia ele tem um potencial de crescimento imenso. E você tem também todo um potencial de moléculas da biodiversidade para a produção de fármacos. O Brasil vive o paradoxo de ser o país com a maior diversidade do mundo e ter uma indústria farmacêutica concentrada na produção de genéricos, pouco voltada a inovações para as principais moléstias do século 21. É outro potencial para a valorização da floresta em pé que não estamos aproveitando.

Qual a relação entre desmatamento e crescimento econômico?
Quando o Brasil se destacou pelo combate vigoroso ao desmatamento, reduzido em 80% na Amazônia entre 2004 e 2012, ao mesmo tempo a produção agropecuária da região aumentou devido à tecnologia avançada aplicada nas áreas de produção de soja, sobretudo em Mato Grosso.
Se o desmatamento avança, quais são seus protagonistas? Às vezes dizem que quem desmata são os pobres que não têm alternativa de vida, mas não é assim. Desmatar é caro, exige investimento, máquinas, contratar trabalhadores. O desmatamento hoje é feito por grupos organizados, que, diante da mensagem de que a suposta indústria de multas não vai parar  suas atividades, se organizam na expectativa de terem legalizados direitos que não lhes foram reconhecidos sobre terras públicas. Essa é uma explicação importante para a explosão do desmatamento em 2019.
É claro que no desmatamento a economia cresce de alguma forma, você vende madeira, têm exploração de garimpo, mas é um crescimento baseado em ilegalidade e muito menor do que quando você tem condições legais para exercer as atividades econômicas. Um ambiente institucional que coíba o desmatamento ilegal é um ambiente em que investidores responsáveis poderão agir.

Que políticas públicas o Estado brasileiro deve desenvolver para incentivar a economia da floresta em pé?
A primeira é uma sinalização clara de que haverá fiscalização e que não será tolerada a permanência de atividades ilegais. É importante mudar a narrativa do governo federal, porque ela forma uma cultura empresarial. E a narrativa do governo hoje é que, se a Amazônia não for desmatada, os 25 milhões de pessoas que moram lá vão morrer de fome. Uma narrativa perniciosa que estimula os atores locais a adotarem as piores práticas.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

Também é preciso valorizar o trabalho feito por organizações não governamentais, que junto com as populações tradicionais na floresta são os atores dessa economia do conhecimento da natureza. E apoiar a junção entre comunidade científica, organizações não governamentais e empresários voltados à exploração sustentável da floresta. Hoje existem algumas iniciativas fazendo isso, como o Centro de Empreendedorismo da Amazônia, mas sem qualquer tipo de apoio ou sequer entusiasmo governamental.
E também apoiar o multilateralismo democrático, destruído por razões ideológicas pelo atual governo. O Fundo Amazônia era uma das expressões mais emblemáticas da cooperação entre três países democráticos, Noruega, Alemanha e Brasil, para enfrentar o desmatamento.

Qual é o formato para estimular a inovação na exploração sustentável da floresta?
Uma proposta, do Carlos Nobre e do Ismael Nobre, são os laboratórios de inovação da Amazônia, para descentralizar o processo de inovação e multiplicar as possibilidades de junção entre conhecimentos tradicionais e científicos vindo da academia e das organizações que fazem pesquisa. As universidades têm papel importante, mas sozinhas não são capazes de fazer isso. Existe uma comunidade de pessoas com doutorado em municípios da Amazônia que podem ser a base para isso.
Agora, o formato exato ainda ninguém sabe, é por meio da experimentação, que precisa de apoio governamental. Nos Estados Unidos, quando se tem desafios dessa natureza, a Darpa (agência de pesquisa do departamento de Defesa) lança editais com desafios para estimular processos de experimentação. É importante estimular que grupos procurem dar respostas ao desafio.

Há um embate entre setores do agronegócio e ambientalistas sobre o grau de desmatamento a ser admitido na Amazônia: o desmatamento zero versus o desmatamento de até 20% nas áreas privadas, permitido pelo Código Florestal. Qual é a saída?
A pressão institucional para o desmatamento zero, não o desmatamento ilegal zero, é imensa. Ela se baseia na ideia de que os produtores [e consumidores] de soja querem dissociar o produto de qualquer perigo de desmatamento na Amazônia. E existem condições técnicas de a produção de soja se expandir no Brasil e no mundo sem desmatar a Amazônia e o Cerrado.
Autorizar algo na Amazônia que não seja a economia da floresta em pé pode satisfazer as necessidades de um produtor individual, mas não os interesses do país e da preservação do ecossistema. Não há razão para não aderir ao desmatamento zero integral. Mas o dado importante é que o desmatamento que ocorreu em 2019 não foi o desmatamento desses 20% [autorizados por lei]: 90% do desmatamento de 2019 foi ilegal.

Como você avalia a postura do agronegócio brasileiro em relação à Amazônia?
Há um conjunto de empresários interessados em interromper a devastação na Amazônia, favoráveis ao desmatamento dos 20% [permitidos], mas apoiam a Moratória da Soja, não apoiam a invasão de terras públicas. Por outro lado, há um conjunto de atores econômicos oportunistas incentivando políticas predatórias. A oposição hoje não é bem agronegócio versus ambientalistas, porque uma parte do agronegócio está junto com os ambientalistas, mas dentro do próprio agronegócio.

Bruno Lupion, 15 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

Gado, Soja, Desmatamento (DW)


Amazônia
Gado e Soja no Ciclo do Desmatamento (DW)

Agricultura e pecuária pressionam a Amazônia há décadas e são fruto do modelo adotado pelo regime militar para "desenvolver" a região, que já perdeu uma área de floresta equivalente a mais de duas Alemanhas.

Gado em fazenda na Amazônia. Presente na Amazônia desde o século 17, pecuária na região foi incentivada pelo regime militar.

A Floresta Amazônica passou por diversas tentativas de colonização ao longo da história do Brasil, mas foi durante o regime militar que o "desenvolvimento" da Amazônia se tornou uma prioridade para o governo, sob o lema "integrar para não entregar". A ocupação do bioma impulsionou o avanço de fronteiras agrícolas por regiões antigamente cobertas por florestas.
Até a década de 1970, apenas uma área pouco maior do que a de Portugal, que tem cerca de 92 mil quilômetros quadrados, havia sido desmatada na região. Com o discurso de expandir e modernizar, o regime militar impulsionou obras de infraestrutura que se tornaram responsáveis pela devastação do bioma. A construção de estradas na floresta abriu caminho tanto para o chamado progresso como para o desmatamento, que, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2018 já atingia uma área superior a duas Alemanhas: 783 mil quilômetros quadrados na Amazônia Legal.
Cinco décadas depois, Sorriso, no Mato Grosso, se tornou a capital da soja e do agronegócio, e o pasto passou a ser a cobertura que ocupa 80% da área desmatada desde então.
A expansão agropecuária na região ocorreu como um efeito dominó, diz o geógrafo Hervé Théry, da Universidade de São Paulo (USP). O modelo mais comum começa com a abertura da floresta por madeireiros, que levam árvores de maior valor econômico. Em seguida, chegam os pecuaristas e pequenos agricultores.
"Os dois grupos são culpados pelo desmatamento, porém, os grandes têm muito mais meios e fazem mais estragos. Os pequenos se instalam para produzir alimentos para a família e para vender. Depois de um tempo, a fertilidade da terra diminui e eles precisam ir para outro lugar. Geralmente, colocam capim e vendem para os pecuaristas", explica Théry.

Gráficos comparam cobertura florestal na Amazônia entre 1985 e 2017.

Os últimos a chegar neste modelo são os sojicultores, que compram áreas desmatadas utilizadas anteriormente para a criação de gado. Ao longo dos anos, as fronteiras deste ciclo são pressionadas cada vez mais para o norte.

Pasto e gado
Um dos primeiros atores neste processo de expansão sobre a floresta, a pecuária está presente na Amazônia desde o século 17, quando foi introduzida por ordens religiosas. Apesar de ter uma presença histórica no bioma, de acordo com a geógrafa Susanna Hecht, do Instituto Superior de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, em Genebra, na Suíça, a pecuária inicialmente era voltada para fornecer alimento e, apenas após o golpe militar de 1964, passou a ser utilizada para a ocupação de terras.
Em suas políticas de desenvolvimento da Amazônia, o regime militar ofereceu uma série de incentivos legais e fiscais para a expansão da atividade econômica no bioma. Grandes empresas também foram beneficiadas. Um exemplo emblemático foi a fazenda-modelo da montadora alemã Volkswagen no sul do Pará, denunciada na imprensa internacional pelo desmatamento causado na região no final da década de 1970.
Devido à necessidade de pouca mão de obra, à facilidade de implementação e a uma logística mais simples para seu escoamento, a pecuária se tornou a atividade ideal na política de integração do regime militar, explica Hecht. "Historicamente, a pecuária assumiu um papel importante de incorporação de terra, tomando terras públicas e as transformando em propriedades privadas, além de ser um mecanismo de especulação de terra", pontua.

Soja
Anos depois, chegou a vez da soja entrar na Amazônia. Isso só foi possível graças ao avanço de pesquisas agronômicas no desenvolvimento de sementes e técnicas que possibilitaram o cultivo do grão em regiões tropicais. A expansão da commodity começou no sul do país e seguiu avançando para o norte, entrando primeiro no Cerrado e, posteriormente, no bioma amazônico.
"A demanda contínua na década de 1990 e início dos anos 2000 criou uma dinâmica de desmatamento em que a soja substituiu os pastos existentes, estimulando novos desmatamentos para a criação de gado na Amazônia", afirma a cientista política Regine Schönenberg, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

Além do aumento da demanda mundial pelo grão, melhorias na rede de infraestrutura e, principalmente na BR-163, conhecida como rodovia da soja, que liga o Mato Grosso a Santarém, no Pará, impulsionaram a expansão da atividade na região.
Por serem os últimos a chegar neste ciclo, os produtores de soja argumentam que não contribuem para o desmatamento. Na opinião do geógrafo Antonio Ioris, da Universidade de Cardiff, essa retórica é uma falácia devido à sinergia entre os setores.
"Em termos retóricos, pega bem para o setor de grãos dizer que não desmata. Nessa lógica, eles tentam se eximir de responsabilidades. Mas, ainda que muitas vezes não seja o sojicultor que desmata a floresta, o pecuarista desmata sabendo que a terra vai ganhar valor e que poderá vendê-la para o sojicultor”, explica Ioris.
Nesse ciclo, pesquisadores destacam um dos principais fatores que contribuem para continuidade deste processo: a grilagem e posterior legalização destas terras. "Pode demorar um pouco mais ou um pouco menos, mas no final das contas essa terra acaba sendo regularizada, e quem está lá ou seus familiares passam a ser os proprietários", afirma a geógrafa Neli Aparecida de Mello-Théry, da USP.

Clarissa Neher, 15 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.


terça-feira, 14 de abril de 2020

Coronavírus e Invasores (Pública)


Coronavírus e Invasores
A Situação dos Indígenas no Brasil


Precariamente assistidas pelo governo e pressionadas pela crescente onda de invasões em seus territórios, as comunidades indígenas enfrentam quase sozinhas o avanço da pandemia do coronavírus nas aldeias. Até o final de segunda-feira (13), o vírus já havia matado três indígenas — um adolescente Yanomami, de 15 anos, em Roraima, uma idosa Borari, de 87 anos, em Alter do Chão, no Pará, e um homem da etnia Mura, de 55 anos, em Manaus — e contagiado nove pessoas no total. Outros 23 casos estão sendo tratados como suspeitos e 31 foram descartados, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde (MS).
“A melhor forma de prevenir agora é manter as comunidades isoladas e orientar que não saiam e nem recebam visitas. Temos um histórico muito perverso de doenças contagiosas, que dizimaram etnias inteiras no passado. Todos estão assustados”, diz Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A preocupação maior das entidades, segundo ela, é se prevenir contra a fase mais dura do contágio, que ameaça as comunidades indígenas, proporcionalmente, na mesma projeção de avanço às cidades.
Longe da briga travada entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, as comunidades indígenas da Amazônia contam basicamente com o trabalho de suas lideranças comunitárias, das entidades indigenistas e profissionais de saúde, que travam uma guerra quase solitária contra o vírus. “Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”, diz Sônia Guajajara.

“Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”, relata Sônia Guajajara.

Há duas semanas ela vinha pressionando a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, pela antecipação da campanha de vacinação contra H1N1 nas aldeias, prevista para o final de abril, e para que se adote como critério a possibilidade de contágio comunitário, uma vez que em muitas regiões, além da miscigenação, há forte interação entre aldeias e cidades. Nesta segunda (13), o secretário nacional de Saúde Indígena, Robson Santos Silva anunciou que a vacinação começará na próxima quinta-feira, com a distribuição de 750 mil vacinas para comunidades indígenas de todo país.
Os profissionais de saúde estão coletando amostras de material para análise laboratorial de pessoas que apresentem sinais da Covid-19 e que tenham viajado. Os demais são avaliados pelos sintomas e medicados como gripe. Mas não têm, segundo Sônia Guajajara, os prometidos kits para testagem rápida. “Não é gripezinha. É uma doença altamente letal e com risco maior aos indígenas”, diz a coordenadora da APIB.
O vaivém descontrolado de pessoas nos garimpos ilegais, segundo as entidades indigenistas ouvidas pela Agência Pública, é atualmente o grande desafio dos profissionais de saúde e das lideranças que lutam para evitar o contato. “Exigimos que os órgãos de segurança tirem os invasores das terras indígenas. O risco de contágio é iminente”, diz Sônia. APIB e CIMI sustentam que no vácuo deixado pela ausência da Funai, Agência Nacional de Mineração (ANM) e da redução dos controles pela Polícia Federal e Exército, os garimpos ilegais, grilagem de terras e exploração ilegal de madeira estão aumentando na Amazônia. Lideranças dos Karipuna, em Rondônia, alertaram entidades indigenistas sobre invasores limpando áreas a 10 quilômetros da Aldeia Panorama para extrair madeira. Levantamento do jornal O Estado de São Paulo, com base em informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), aponta que as áreas desmatadas praticamente dobraram na Amazônia, saltando de 2.649 quilômetros quadrados, para 5.076 quilômetros quadrados.
O ritmo do avanço da mineração ilegal é igualmente preocupante. “Só nas terras dos Yanomami já são mais de 30 mil garimpeiros”, disse o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Antônio Eduardo Oliveira. Até o final do ano passado, a estimativa era de 20 mil garimpeiros. Oliveira afirma que a crise sanitária fragilizou ainda mais os controles e abriu brechas para a ação dos invasores. Segundo ele, a SESAI, que já havia afastado seus agentes das áreas de conflito com restrição a viagens imposta pela Funai, não tem plano de emergência preventivo ou de contenção caso a doença avance sobre as comunidades indígenas.

Antônio Eduardo Oliveira é coordenador do Cimi

Robson Santos Silva, o secretário de Saúde Indígena, disse à Pública que a SESAI estruturou seu plano de ação para acompanhar a evolução da doença. “O plano é móvel e pode ser modificado a cada etapa”, disse ele. Num vídeo divulgado pelo site da SESAI, Silva alertou que nesta semana começa a fase mais complicada. “Estamos entrando na pior etapa, que é essa que se inicia agora. O vírus tende a se expandir”, disse ele, apelando para que os indígenas permaneçam isolados e em suas comunidades. A SESAI, segundo ele, cuida da saúde básica em distritos indígenas, enquanto o SUS atenderá a todos, incluindo os casos mais graves de indígenas infectados. O secretário disse que não quer acusar os hospitais, mas afirma que os três indígenas que faleceram não deixaram suas aldeias com sintomas do coronavírus.
“Desde o início da crise estamos cobrando a ação do governo, mas não há até agora qualquer resposta. Com o sucateamento da Funai os riscos aumentaram”, afirma Oliveira. O CIMI pediu que seus 200 funcionários envolvidos com assistência aos índios saíssem de aldeias e passassem a monitorar à distância a situação. Sônia Guajajara afirma que a Funai foi desmontada e reaparelhada para atender ruralistas e mineradoras, estimuladas pela política do governo Bolsonaro de incentivos às atividades econômicas em terras indígenas. O ministro da Justiça e da Segurança, Sergio Moro, a quem a Funai é subordinada, segundo ela, se comporta como quem ignora completamente os riscos do coronavírus. “Ele não fala nada”, cutuca.
Na última segunda (13), Moro quebrou o silêncio. Disse que o contágio que resultou nas três mortes ocorreu fora das aldeias e que as ações do MJ começaram pelo isolamento nas comunidades. Segundo ele, visitações a comunidades só em casos excepcionais, para levar suporte. As invasões, que chamou de intromissão, Moro disse tratar-se de um desafio aos órgãos de controle.
Há duas semanas a APIB, com a ajuda do Ministério Público Federal, conseguiu derrubar parte de uma portaria do presidente da Funai, Marcelo Xavier, que permitia às coordenações regionais fazer contato com índios isolados, tarefa complexa e delicada, executada por um departamento específico da autarquia. Em tempos de pandemia o contato com gente despreparada, alerta Sônia, representaria um alto risco porque índios isolados não têm defesas no organismo nem contra os vírus mais comuns.
Também o Ministério Público Federal recomendou ações emergenciais de proteção à saúde dos povos indígenas e citou “cenário de risco de genocídio” sem as ações recomendadas.
Coordenador do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), Enoque Taurepang afirma que a movimentação de garimpeiros e dos empresários que os financiam, está gerando um cenário de alto risco para os Yanomami, que já apresentam sérios problemas de saúde em decorrência do derrame de mercúrio em rios e córregos na extração de ouro.

Na avaliação de Sônia Guajajara, o ministro Sergio Moro tem ignorado completamente os riscos do coronavírus

“Infelizmente a situação do garimpo nos Yanomami é incontrolável. Tem empresários de outros estados dentro das áreas. A gente chega lá e fala que é proibido, mas eles não obedecem, não conhecem a palavra não. Eles mudam o nome da invasão: dizem que é trabalho e não atendem”, conta Taurepang, que tem usado as redes sociais para orientar as 245 comunidades indígenas de Roraima filiadas ao CIR.
Como as atividades do Exército na região também estão funcionando precariamente em decorrência da crise sanitária, segundo ele, os empresários de garimpo intensificaram as invasões certos de que não sofrerão represálias. A última ação conjunta da Polícia Federal e Exército para desalojar garimpeiros ocorreu no dia 13 de março, na comunidade de Napoleão, da etnia Macuxi, na TI Raposa Serra do Sol. Os dois órgãos desmontaram um garimpo em construção, prenderam o empresário que financiava a atividade e quatro indígenas.
“Hoje já não conhecemos mais nem as rotas que estão sendo usadas pelos garimpos ilegais. Estão entrando sem a preocupação de ter o exército no encalço deles. A gente não pode fazer muita coisa e nem sabe direito o que está acontecendo nos garimpos nesse momento. Uma coisa é a comunidade lutar contra as invasões e outra situação é ter um presidente que faz com que essas atividades aconteçam dentro das nossas terras. Um presidente que em toda oportunidade fala de exploração mineral”, critica o dirigente.
Ele diz que a lei não funciona nos garimpos ilegais: “Lutamos contra o Estado, contra essa doença e não sabemos até quando podemos segurar todos esses ataques. Se fosse pela lei indígena daria para dar um jeito. Mas somos subordinados a um Estado, a lei e a Constituição, que só funciona para beneficiar os empresários nesse governo. Não podemos fazer muita coisa”.
Ele diz que a ausência de órgãos de órgãos do Estado e a falta de equipamentos básicos nos postos de atendimento para os profissionais de saúde — como luvas, máscaras e álcool em gel e de remédios — estão levando medo de contágio aos índios e às lideranças que fazem a mediação entre sedes de vilas e aldeias.
Ontem, o jornal O Estado de São Paulo informou que há duas semanas a Funai recebeu mais 11 milhões de recursos emergenciais para usar na proteção indígena mas não gastou nenhum centavo.
O coordenador de saúde indígena da região Leste de Roraima, Adriano Corinthia, afirma que há uma atenção especial com a entrada de venezuelanos e com o controle do fluxo entre as aldeias, vilas e cidades, mas que o atendimento é o de rotina, sem material que permita fazer o teste de coronavírus. “Temos uma reserva mínima de materiais para os profissionais de saúde e medicamentos (apenas) para tratamento sintomatológico caso surja algum caso”, disse o enfermeiro Manoel Avelino, que trabalha com os Yanomami. Para suprir a carência de material, o governo federal enviou ao Estado peças ilustrativas de campanha com informações recomendadas pelo MS. Segundo ele, os garimpos ilegais são áreas de risco de contágio.
No ano passado, a insegurança na região levou o CIR a organizar grupos de vigilância, proteção e monitoramento, os chamados guardiões, para garantir o controle dos territórios indígenas contra invasões. Com a maior população indígena do país, estimada em 55 mil pessoas distribuídas em 413 comunidades em 32 TIs já demarcadas, o equivalente a 46,2% de sua superfície, Roraima é um dos pontos mais assediados do país por empresários de mineração, que investem pesado em garimpos ilegais.
O cenário gerado pela pandemia do coronavírus, diz ele, aumentou a tensão na região. “A situação é complicada. Temos problemas de imigração, garimpos ilegais e agora a evasão de pessoas que estão saindo das cidades, das sedes das vilas e indo para as aldeias e áreas rurais em busca de refúgio. A gente trabalha com os grupos de vigilância no controle do nosso território. Mas essas pessoas, por si só, sem equipamentos não podem fazer esse trabalho porque é também expor a vida delas ao risco de pegar essa doença”, alerta o coordenador do CIR.
Enoque Taurepang assumiu o comando do CIR no ano passado. É líder da etnia na Comunidade Araçá, no município de Amajari, na fronteira com a Venezuela, onde 53,8% da população, estimada em 11.560 pessoas em 2017 pelo IBGE, é indígena. Na vila indígena vivem entre 1.800 a 2 mil pessoas que, segundo ele, se já sofriam com o fluxo migratório de quem chega ao Brasil pela BR-174, nos últimos dias vivem assombradas com os riscos de contágio do coronavírus. Mais a Leste, na TI Raposa Serra do Sol, a miscigenação é um dos fatores preocupantes. Os três municípios da TI têm população predominantemente indígena, com 88,1% em Uiramutã, 56,9 % em Normandia, na fronteira com a Guiana Inglesa, e 55,4% em Pacaraima, fronteira com a Venezuela. Roraima é o estado com maior proporção de indígenas, com 11% de uma população calculada em 450,4 mil pessoas em 2010, o que explica a forte presença das etnias nas cidades, inclusive na capital, Boa Vista. Segundo o Censo de 2010, 8.500 dos 450 mil habitantes da capital se declararam indígenas — os que vivem nas cidades não são atendidos pela SESAI, mas recebem, como a população em geral, o tratamento do SUS.
O plano de contenção das entidades como o CIR é controlar o retorno de índios de diferentes etnias que vivem nas cidades e, diante do medo do contágio, estão buscando refúgio nas áreas rurais. “Nosso principal objetivo para esse momento é fazer barreiras nas entradas de acesso para que tanto a população não indígena não entre, quanto para que os parentes não saiam. Se for necessário buscar algum gênero para dar suporte à família, que seja de forma organizada. A gente está fazendo o que pode, parando totalmente a vida da comunidade para combater o vírus e sobreviver dentro de nossos territórios”, afirma Enoque. Ele lembra, no entanto, que é difícil convencer um pai de família a ficar em isolamento, quando ele precisa sair para caçar e pescar. “Não tem como pedir que os pais fiquem 24h dentro de casa, uma vez que eles não têm um ganho, um salário ou apoio”.
Enoque conta que tem acompanhado diariamente os balanços feitos pelo comitê gestor do coronavírus e as medidas anunciadas pelo Ministério de Saúde, mas sente que não há nada claro sobre como lidar com as comunidades indígenas que, além de biologicamente mais frágeis aos vírus influenza, já enfrentavam o abandono dos órgãos estatais e a forte investida de grileiros e garimpeiros.
O coordenador do CIR afirma que as comunidades estão lutando sozinhas para enfrentar um provável avanço do vírus. “É necessário que o governo e as instituições competentes venham nos ajudar. Precisamos dos materiais básicos para prevenir e combater a doença caso ela chegue às comunidades. Mas parece que as comunidades não existem, vivem em outro mundo. Não há até hoje nenhuma política ou programa emergencial para cuidar da nossa gente, que é mais vulnerável e luta sozinha aqui na ponta”.
Nos últimos dias o CIR fez chegar às comunidades por aplicativos de celular, rádio ou telefone, mensagens suspendendo reuniões ou festejos que exijam aglomerações. “De nossa parte a estratégia é usar as redes sociais e tudo o que for possível em comunicação para manter nosso povo informado sobre tudo o que está acontecendo. Alertamos para que levem a sério e se previnam. É o que podemos fazer”, diz.

No congresso, a tentativa de aprovar medidas “urgentíssimas”

A deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) coordena a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas

No Congresso, a reação indígena ao coronavírus é capitaneada pela deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. “Há uma preocupação a mais quanto ao aumento das invasões das terras indígenas, principalmente em áreas que já têm histórico de invasão. Esse período de crise sanitária em nenhum momento fez frear as invasões dentro das terras indígenas, que buscam a exploração dos recursos naturais”, disse a parlamentar em entrevista online a jornalistas na última quinta-feira (9).
Joenia também afirma que os povos indígenas têm agido rápido e com firmeza para impedir que a Covid-19 se alastre nas aldeias. “As comunidades têm feito um trabalho incansável de alertar a sua própria população a não ir ao centros urbanos, adotando medidas de isolamento para que não haja a entrada de pessoas estranhas, esforços justamente para proteger a coletividade”, declarou.
Diante disso, há uma preocupação com a segurança alimentar: estão sendo discutidas maneiras para que a distribuição de cestas básicas não seja prejudicada, já que servidores de órgãos como a Funai, vindos de fora das aldeias, são quem realiza a entrega dos suprimentos. Ontem (13), a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves anunciou que a pasta entregará 323 mil cestas de alimentos a 161 famílias indígenas e quilombolas com ajuda da Funai e Fundação Palmares.
No Parlamento, Joenia tem contado com aliados no trabalho de contenção ao coronavírus entre os povos tradicionais. No fim de março, ela apresentou uma Proposta de Fiscalização e Controle (PFC) para monitorar a atuação da Sesai e do Ministério da Saúde no enfrentamento da pandemia entre a população indígena – a ideia é acompanhar os processos administrativos e verificar eventuais omissões dos dois órgãos.
Junto a outros parlamentares, a deputada também propôs um Projeto de Lei (PL) que obriga a União a liberar ao Subsistema de Saúde Indígena recursos adicionais, não previstos nos Planos de Saúde dos DSEIs, em caso de pandemia, emergência e calamidade em saúde pública. Essa e outras propostas recentes sobre direitos indígenas devem ser apensadas a outro PL, que determina a adoção de medidas “urgentíssimas” de ajuda às comunidades enquanto durar o decreto de calamidade pública. Estão entre as ações o pagamento de auxílio emergencial no valor de um salário mínimo a indígenas de todo o país, reforço na proteção territorial e incremento da estrutura de saúde dos estados e municípios para que possam comportar o tratamento de indígenas cujos casos demandam internação.

Vasconcelo Quadros, Anna Beatriz Anjos
14 de abril de 2020 às 12:00hs