sábado, 14 de novembro de 2020

Dessana: Premiação (O Globo)

 

Dessana

Regis Myrupu premiado em Locarmo

 

Regis Wyrupu, ator indígena premiado no Festival de Locarno por papel no filme "A Febre". Foto: Divulgação/Festival de Locarno


Líder espiritual dos dessana, grupo indígena da região amazônica do Alto Rio Negro, Regis Myrupu entrou pela primeira vez em uma sala de projeção já adulto, dez anos atrás, para assistir a uma comédia romântica em um shopping de Manaus. Mas só foi se dar conta do que era cinema de verdade há dois meses, no meio do alvoroço do Festival de Locarno, na Suíça, de onde saiu com o prêmio de melhor interpretação masculina por sua participação em “A febre”, da carioca Maya Da-Rin.


Trailer do Filme

— Foi em lá, em Locarno, que conheci o mundo dos filmes. Demos entrevistas, tiramos fotos. Era tudo muito novo para mim — lembra o xamã de 39 anos, que até então só conhecia a curiosidade das câmeras dos turistas e documentaristas que visitavam sua comunidade, Praia do Tupé, nos arredores de Manaus. — Nunca tinha pensado em fazer um longa-metragem, quanto mais em ganhar um prêmio por ele. Mas o xamanismo nos ensina que as coisas acontecem no seu tempo.

 

Floresta Cultural

O júri da mostra suíça encantou-se pela performance de Myrupu como Justino, vigia de um porto de cargas que vive na periferia da capital amazonense, cuja rotina é afetada pela perspectiva da partida da filha e a presença de uma criatura misteriosa. Mesmo Maya Da-rin pensava em trabalhar com integrantes da etnia ticuna, mas acabou convencida pela presença física de Myrupu, depois de fazer contato com mais de 500 indígenas de diversas aldeias urbanas da região.

— Mais importante do que dizer um texto era a habilidade de se movimentar no espaço, e o Regis tem uma precisão muito grande nos gestos — descreve a cineasta, que há dez dias viu “A febre” levar o prêmio de melhor filme na mostra Crouching Tiger do Festival de Pingyao, na China. — O olhar e a presença dele me contagiaram desde o início. Ali achei a alma do Justino, pessoa de uma integridade muito grande que se sente deslocada, num ambiente que não o reconhece.

O roteiro foi ajustado à realidade de Myrupu que, assim como Justino, vive entre a cidade e a floresta. Nascido em Pari-Cachoeira, aldeia próxima à fronteira da Colômbia, ele foi registrado como Reginaldo Fontes Vaz, mas adotou o sobrenome indígena Myrupu, que significa “o soprar do vento”. Morou anos com a família no município de Barcelos, antes de ir para a Praia do Tupé, onde coordena, desde 2014, o projeto Floresta Cultural Herisãrõ, que busca o turismo sustentável com a “missão de divulgar e manter viva a cultura indígena”.

A iniciativa atrai turistas de todo o mundo, e suas atividades, que incluem danças cerimoniais, já foram captadas por programas de TV como “Índio Presente”, produzido pela brasileira Amazon Pictures, e o reality show “Wild Frank”, do Canal Discovery da Espanha. Myrupu herdou o “dom” espiritual e os conhecimentos medicinais do pai, Raimundo, morto em 2018.

— Eu já estava acostumado com a presença de uma câmera, mas não é a mesma coisa que fazer ficção, atuar para um diretor, nada disso — compara o xamã.

Entre os turistas que passaram pela Praia do Tupé estava a italiana Romina Bianconi. Formada em Design de Produto, ela aproveitou um intercâmbio em Salvador, em 2013, para esticar na Amazônia, conhecer a cultura indígena e montar um projeto de tese. Apaixonou-se por Myrupu e os dois acabaram se casando, em 2017, na Itália. Hoje passam nove meses na floresta e resto do ano com a família dela, na Umbria.


Cena do filme "A Febre", de Maya Da-Rin Foto: Divulgação


Agora, porém, Myrupu e Romina têm um motivo para esticar a temporada italiana: Yusiò Celeste, a primeira filha do casal, de três meses.

— Para alguém que não nasceu e cresceu lá, os desafios não são poucos. Chega-se com outros costumes... Mas, por amor, um pouco de mente aberta e flexibilidade, você consegue se adaptar a muita coisa — explica Romina, que colabora num projeto de melhoria da infraestrutura da aldeia. — Ainda há muitos desafios, mas, agora temos eletricidade. Quando cheguei, não havia nem água encanada.

 

Filme de ação, só pra ver

Myrupu só tem planos de voltar ao Brasil em março. Até lá, pretende continuar ajudando a promover “A febre” por festivais — o filme já tem convites para Tessaloniki (Grécia) e Marrakech (Marrocos). Também quer exercer seu trabalho como xamã onde for requisitado. E não acalenta planos de se tornar ator profissional, porque exigiria um “investimento financeiro que não tem”, diz. Mas avisa que está aberto a ofertas que envolvam a cultura indígena ou o conhecimento do xamã.

— Só não me chamem para fazer filmes de ação, com muitas perseguições e brigas. São os meus favoritos, mas não tenho talento para esse tipo de coisa — ri.

E diz que seu grande orgulho é poder chamar a atenção para a causa indígena:

— Este troféu, que pretendo carregar comigo pelo resto da vida, me deu a chance de ser porta-voz dos povos indígenas, que são invisíveis. É uma possibilidade de levar nossa cultura a outros continentes, como um pedido de socorro.

 

O GLOBO

Carlos Helí de Almeida

01 de dezembro de 2019 às 14:40