Dessana
Regis
Myrupu premiado em Locarmo
Regis Wyrupu,
ator indígena premiado no Festival de Locarno por papel no filme "A Febre". Foto:
Divulgação/Festival de Locarno
Líder espiritual dos dessana,
grupo indígena da região amazônica do Alto Rio Negro, Regis Myrupu entrou pela
primeira vez em uma sala de projeção já adulto, dez anos atrás, para assistir a
uma comédia romântica em um shopping de Manaus. Mas só foi se dar conta do que
era cinema de verdade há dois meses, no meio do alvoroço do Festival de
Locarno, na Suíça, de
onde saiu com o prêmio de melhor interpretação masculina por sua participação
em “A febre”, da carioca Maya Da-Rin.
Trailer do Filme
— Foi em lá, em Locarno,
que conheci o mundo dos filmes. Demos entrevistas, tiramos fotos. Era tudo
muito novo para mim — lembra o xamã de 39 anos, que até então só conhecia a
curiosidade das câmeras dos turistas e documentaristas que visitavam sua
comunidade, Praia do Tupé, nos arredores de Manaus. — Nunca tinha pensado em
fazer um longa-metragem, quanto mais em ganhar um prêmio por ele. Mas o
xamanismo nos ensina que as coisas acontecem no seu tempo.
Floresta Cultural
O júri da mostra suíça
encantou-se pela performance de Myrupu como Justino, vigia de um porto de
cargas que vive na periferia da capital amazonense, cuja rotina é afetada pela
perspectiva da partida da filha e a presença de uma criatura misteriosa. Mesmo
Maya Da-rin pensava em trabalhar com integrantes da etnia ticuna, mas acabou
convencida pela presença física de Myrupu, depois de fazer contato com mais de
500 indígenas de diversas aldeias urbanas da região.
— Mais importante do que
dizer um texto era a habilidade de se movimentar no espaço, e o Regis tem uma
precisão muito grande nos gestos — descreve a cineasta, que há dez dias viu “A
febre” levar o prêmio de melhor filme na mostra Crouching Tiger do Festival de
Pingyao, na China. — O olhar e a presença dele me contagiaram desde o início.
Ali achei a alma do Justino, pessoa de uma integridade muito grande que se
sente deslocada, num ambiente que não o reconhece.
O roteiro foi ajustado à
realidade de Myrupu que, assim como Justino, vive entre a cidade e a floresta.
Nascido em Pari-Cachoeira, aldeia próxima à fronteira da Colômbia, ele foi
registrado como Reginaldo Fontes Vaz, mas adotou o sobrenome indígena Myrupu,
que significa “o soprar do vento”. Morou anos com a família no município de
Barcelos, antes de ir para a Praia do Tupé, onde coordena, desde 2014, o projeto
Floresta Cultural Herisãrõ, que busca o turismo sustentável com a “missão de
divulgar e manter viva a cultura indígena”.
A iniciativa atrai
turistas de todo o mundo, e suas atividades, que incluem danças cerimoniais, já
foram captadas por programas de TV como “Índio Presente”, produzido pela
brasileira Amazon Pictures, e o reality show “Wild Frank”, do Canal Discovery
da Espanha. Myrupu herdou o “dom” espiritual e os conhecimentos medicinais do
pai, Raimundo, morto em 2018.
— Eu já estava acostumado
com a presença de uma câmera, mas não é a mesma coisa que fazer ficção, atuar
para um diretor, nada disso — compara o xamã.
Entre os turistas que
passaram pela Praia do Tupé estava a italiana Romina Bianconi. Formada em
Design de Produto, ela aproveitou um intercâmbio em Salvador, em 2013, para
esticar na Amazônia, conhecer a cultura indígena e montar um projeto de tese.
Apaixonou-se por Myrupu e os dois acabaram se casando, em 2017, na Itália. Hoje
passam nove meses na floresta e resto do ano com a família dela, na Umbria.

Cena do filme
"A Febre", de Maya Da-Rin Foto: Divulgação
Agora, porém, Myrupu e
Romina têm um motivo para esticar a temporada italiana: Yusiò Celeste, a
primeira filha do casal, de três meses.
— Para alguém que não
nasceu e cresceu lá, os desafios não são poucos. Chega-se com outros
costumes... Mas, por amor, um pouco de mente aberta e flexibilidade, você
consegue se adaptar a muita coisa — explica Romina, que colabora num projeto de
melhoria da infraestrutura da aldeia. — Ainda há muitos desafios, mas, agora temos
eletricidade. Quando cheguei, não havia nem água encanada.
Filme de ação, só pra
ver
Myrupu só tem planos de
voltar ao Brasil em março. Até lá, pretende continuar ajudando a promover “A
febre” por festivais — o filme já tem convites para Tessaloniki (Grécia) e
Marrakech (Marrocos). Também quer exercer seu trabalho como xamã onde for
requisitado. E não acalenta planos de se tornar ator profissional, porque
exigiria um “investimento financeiro que não tem”, diz. Mas avisa que está
aberto a ofertas que envolvam a cultura indígena ou o conhecimento do xamã.
— Só não me chamem para
fazer filmes de ação, com muitas perseguições e brigas. São os meus favoritos,
mas não tenho talento para esse tipo de coisa — ri.
E diz que seu grande
orgulho é poder chamar a atenção para a causa indígena:
— Este troféu, que
pretendo carregar comigo pelo resto da vida, me deu a chance de ser porta-voz
dos povos indígenas, que são invisíveis. É uma possibilidade de levar nossa
cultura a outros continentes, como um pedido de socorro.
O GLOBO
Carlos Helí de Almeida
01 de dezembro de 2019
às 14:40