De pipoca a jaguar:
O brasileiro fala
tupi o dia inteiro sem saber
Cidades, fauna, flora
e cotidiano: o Tupi está em tudo
Se você já falou para
alguém que estava na pindaíba no final do mês ou que em determinado dia acordou
um pouco jururu, esteve falando tupi e talvez não saiba.
Muito do que se fala
hoje é herança de uma língua chamada geral, ou brasílica, que até o final do século
18 era a mais falada no território brasileiro, bem à frente do português.
A relação dos
brasileiros com essa língua geral, que tinha origem no tupi e foi mapeada
gramaticalmente pelos jesuítas, foi cortada à força quando a equipe do Marquês
de Pombal a chamou de demoníaca em documentos oficiais de 1758, proibindo seu
uso em todo o território.
Mas pouco mais de 200
anos não foram capazes de apagar a rica cultura das linguagens originárias
brasileiras, que se mantêm presentes no português moderno e são alvo de uma
luta indígena para a manutenção delas entre o seu povo.
Ao cruzar a fronteira
com o Brasil pela primeira vez de carro, a paraguaia Liz Benitez diz que tomou
um susto quando percebeu que, em todas as placas, ela lia nomes de lugares em
tupi.
Liz é professora de
guarani, uma língua derivada do tupi que é falada pela maior parte da população
em seu país e reconhecida desde 1992 como língua oficial do Paraguai,
juntamente com o espanhol.
“Eu me surpreendi que
o tupi fosse tão nativo do Brasil. Desde a primeira cidade em que entrei, Foz
do Iguaçu (fruto da junção do fonema ‘Y’, que significa rio, com a palavra
‘guaçu’, que significa grande), até por exemplo Ponta Porã (fruto da junção das
palavras Ponta e ‘Porã’, que significa bonita). Eu via nossas línguas
originárias em tudo”, diz.
Assim como Liz, que
montou uma página no Instagram chamada Dicas de Guarani, o
estudante de filosofia Matheus da Silva, é um apaixonado por descobrir a origem
de palavras. Ele também criou a conta de Instagram Tupinizando para
compartilhar com seus compatriotas brasileiros suas descobertas enquanto
estudava tupi.
O vídeo de maior
sucesso, que já foi visto por mais de 250 mil pessoas, mostra o significado dos
nomes de cinco estados brasileiros que derivam do tupi.
“Pernambuco é o meu
preferido em termos de sonoridade e significa ´fenda do mar´, em referência aos
recifes presentes naquela área”, conta.
Matheus revela ainda
que Paraná (mar ou rio muito grande), Paraíba (rio ruim), Sergipe (no rio dos
siris) e Tocantins (bico de tucano) são todos exemplos que vêm do tupi e que mostram
uma das características mais apreciadas nessa língua por quem a estuda: o seu
caráter descritivo na hora de criar novas palavras.
A palavra pipoca
(junção de ‘pira’, que significa ‘pele’ com ‘poca’, que significa
‘arrebentar’), por exemplo, descreve exatamente o que acontece com o milho
quando é aquecido: sua pele arrebenta.
O mesmo vale para
cutucar, originária de "kutuk", que significa furar e que, segundo
Liz, até hoje é usada nas manchetes de jornais do Paraguai para descrever
crimes à faca.
Muito da nossa fauna
e flora também tem nomes que vieram do tupi. Alguns dos casos mais curiosos vêm
de palavras que tiveram seus significados em tupi adotados em outras línguas,
mas não vingaram no Brasil.
É o caso de ananas,
que significa fruta excelente e foi adotado no francês pra definir abacaxi ou
de jaguar, que é a palavra usada em inglês para definir o que chamamos de onça.
Para além da luxuosa
marca de automóveis, o que não faltam são outras marcas no mercado brasileiro
que têm suas origens no tupi.
Piracanjuba (peixe da
cabeça amarela), mococa (casa do mocó, um roedor da Caatinga) e catupiry (muito
bom) são apenas algumas delas.
Como Matheus relata
ter descoberto desde que começou a estudar tupi antigo: “o brasileiro fala tupi
o dia inteiro sem saber”.
A mortandade
progressiva das línguas originárias
Apesar do tupi antigo
ser parte importante do português moderno, a língua foi deixando de ser falada
após a proibição de 1758 e acabou sendo considerada morta no início do século
20.
Além dos brasileiros
urbanos em geral, que perderam de vez essa conexão com suas origens, boa parte
das comunidades indígenas hoje têm apenas o português como língua nativa. E
esse processo de apagamento não parou no passado.
“Dentro de um idioma,
toda uma visão de mundo é construída. Ao tentar destruir (a língua geral)
tentava-se apagar os resquícios do que os europeus chamavam de barbárie, mas
que na verdade era uma riqueza cultural incompreendida”, relata o indígena
potiguara e professor de tupi Romildo Araújo.
Segundo ele, devido à
violência desse processo, muitos conhecimentos desapareceram e continuam
desaparecendo à medida que “a colonização avança”.
“Devido ao avanço em
terras indígenas continua havendo esse processo em que os indígenas vão
perdendo não só o meio ambiente, mas as formas de reprodução da sua cultura. Se
não houver políticas de Estado que impeçam esse processo, aquilo que aconteceu
lá no século 18 pode acontecer com os nossos povos também no século 21”, diz.
Romildo faz parte de
um grupo de indígenas que tentam revitalizar as línguas originárias em suas
comunidades.
Ele dá aula de tupi
para crianças, adolescentes e adultos em uma escola estadual indígena do
município de Marcação, na Paraíba, e diz que existem meios para inserir línguas
originárias no currículo.
Segundo Romildo, a
comunidade indígena se preocupa em cuidar do seu idioma e em criar meios para
que ele se mantenha vivo ou seja fortalecido, mas precisa de ajuda.
“Isso envolve a
participação do Estado. Ele pode ser responsável tanto pela preservação quanto
pelo desaparecimento dos nossos idiomas. É um direito do povo indígena ter
acesso a sua cultura, que foi suprimida pelo processo colonial”, diz ele.
“Esse processo (de
desaparecimento dos idiomas) pode ser revertido através da formação de
professores e contratação de professores indígenas e da criação dessas
disciplinas em escolas indígenas. ONGs e universidades podem desempenhar ações
como criação de dicionários, gramáticas, pesquisas, coletas e compartilhamento
de dados referentes aos idiomas”, sugere.
No Paraguai, a
inclusão da alfabetização em guarani no ensino formal a partir de 1994 foi um
marco importante.
“Aqui o colonialismo
não deu conta do apagamento da língua, e por isso o Paraguai é um fenômeno
muito interessante que é estudado por pesquisadores. O guarani é falado em todo
o país por indígenas e não indígenas”, conta Liz Benitez.
A professora
considera que a reforma dos anos 1990, que reconheceu a língua como oficial do
país, foi importante ao declarar que o guarani é tão importante quanto o espanhol.
Outro ponto
importante, em sua opinião, foi a consequente aproximação da população com suas
origens: “o guarani é a língua da privacidade, da família, e conseguir entender
as histórias da sua avó com certeza te aproxima dos seus ancestrais”, acrescenta.
Década Internacional
das Línguas Indígenas
O problema do
desaparecimento das línguas originárias é tão grave que fez a ONU declarar, em
2022, a Década Internacional das Línguas Indígenas.
“Um ano não é
suficiente para haver mudanças efetivas, para que mais línguas indígenas sejam
reconhecidas, revitalizadas e mais utilizadas. Um período de dez anos parece
ser mais adequado para criar uma mudança de longo prazo, para permitir que as
gerações mais jovens usem suas línguas indígenas”, diz Jaco Du Toit, chefe da
seção de Acesso Universal à Informação na Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (Unesco), órgão que coordena as ações da
iniciativa.
Jaco explica que,
quando se fala em preservação de línguas indígenas não existe um só caminho.
“Existe uma gama
muito ampla de campos em que precisamos intervir, vai da educação ao empoderamento
digital, da saúde à Justiça, da cultura à igualdade de gênero, precisamos de
uma abordagem muito holística quando olhamos para a década”, detalha.
“Os governos precisam
estar envolvidos no processo, a sociedade civil e o setor privado também são
importantes, mas os agentes mais significativos e que precisam sempre fazer
parte do processo são as pessoas indígenas.”
Adauto Candido
Soares, que é coordenador do setor de Comunicação e Informação da UNESCO no
Brasil, considera a Funai como o parceiro mais estratégico nesse processo.
“Nós temos uma
parceria com a Funai, que administra o Museu do Índio e nesse espaço eles têm
uma base de dados enorme com gramáticas, publicações, gravações e documentos
com relação às línguas indígenas”, revela Adauto, que diz ver no governo atual
uma chance de avançar mais na questão.
O professor Romildo
lembra que, enquanto ainda não existem muitas políticas públicas voltadas para
resolver a questão do desaparecimento das línguas indígenas, a Funai é
realmente uma parceira-chave no resgate dessa cultura.
“Estamos esperando
para os próximos quatro anos da Funai uma maior contribuição nessa parte de
resgate e fortalecimento das linguagens indígenas”, diz.
Como um exemplo de
como a iniciativa privada pode ajudar, Adauto cita o caso da Motorola.
Em parceria com a
Unesco, a empresa de telefonia anunciou em dezembro, na abertura da Década
Internacional das Línguas Indígenas, em Paris, que adicionou duas novas línguas
aos seus aparelhos: o kaingang, língua de uma etnia indígena numerosa que vive
no Sul do Brasil e o nheengatu — variação da língua geral nascida na Amazônia
que, diferentemente do que aconteceu no resto do país, não morreu e é tão
falada até hoje que foi considerada a língua oficial dos municípios de São
Gabriel da Cachoeira (AM) e Monsenhor Tabosa (CE).
“Estamos até buscando
uma parceria com a Anatel, para fazer com que essas línguas possam estar também
nos outros fabricantes de celulares. Eles gostaram muito da iniciativa, e a
gente está tentando articular com eles. A Motorola disponibilizou, inclusive,
toda a base de dados aberta para que as outras empresas possam utilizar e
colocar em seus celulares essas duas línguas”, revela o coordenador.
Adauto diz que esse é
um reconhecimento importante para as línguas indígenas, mas que essa não é a
principal conquista dessa ação.
”Nós temos um bom
número de falantes de línguas indígenas no território brasileiro, essas pessoas
não podem ser excluídas digitalmente”, declara, exemplificando um problema que
a simples adição dessas línguas a aparelhos celulares pode ajudar a resolver.
Jamille Bastos
BBC News em Londres
9 de fevereiro de 2023