quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Isolados: Projetos Ditadura (BBC)

Os projetos herdados da ditadura militar

que ameaçam terras de indígenas isolados 


O Ibama apreendeu toneladas de madeira ilegal na terra indígena de Pirititi em 2018

 

Duas terras onde vivem indígenas isolados estão sob ameaça devido a projetos de desenvolvimento herdados da ditadura militar, mostram dados de um relatório técnico do Instituto Socioambiental (ISA, organização sem fins lucrativos com foco em temas ambientais e indígenas).

Os projetos são a pavimentação da rodovia BR-319, no Amazonas, e a retomada do projeto do Linhão do Tucuruí (uma grande linha de energia passando no meio da terra indígena), em Roraima.

Habitadas por grupos isolados que nunca tiveram contato com não-indígenas, as terras de Jacareúba-Katawixi (AM) e Pirititi (RR) estão em regiões que devem ser afetadas pelos projetos e estão prestes a perder a proteção legal que tinham até agora.

Ambas as terras eram protegidas por Portarias de Restrição de Uso, um mecanismo legal temporário para proteger indígenas isolados decretado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) e que precisa ser renovado periodicamente, normalmente a cada três anos.

A portaria decretada para a terra indígena de Pirititi, no entanto, venceu no domingo (5/12) e foi renovada por apenas seis meses, tempo visto como muito curto por ambientalistas. A da terra indígena de Jacareúba-Katawixi vence nesta quarta (8/12) e a Funai ainda não se manifestou sobre a sua renovação.

Dados e imagens captados por satélites analisados pelo ISA mostram que ambas as regiões já tiveram explosões de desmatamento durante a pandemia com a expectativa dos invasores de que as portarias não fossem renovadas.

"Percebemos um aumento do desmatamento no período anterior ao vencimento das portarias", explica Antonio Oviedo, coordenador do programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA.

"É um padrão mesmo, o desmatamento aumenta com a especulação desses invasores de que essas áreas eventualmente entrem nos cadastros públicos e eles possam requerer a titulação desses terrenos", afirma Oviedo.

 

Acredita-se que a Amazônia tem a maioria das tribos isoladas no mundo

 

O governo afirma que a retomada dos projetos é necessária para a infraestrutura da região. Mas pesquisadores e comunidades locais dizem que outras alternativas poderiam ser estudadas e criticam a falta de um compromisso claro com a mitigação dos impactos das obras.

Diversos estudos apontam para o impacto socioambiental de grandes obras no coração da floresta. Um deles, publicado na revista científica Biological Conservation, mostra que 95% do desmatamento acumulado na Amazônia se concentram em uma distância de 5,5km das estradas na região. Outro, publicado no International Journal of Wildland Fire, aponta que 85% dos incêndios florestais também se concentram nesse raio.

Os ministérios da Infraestrutura e das Minas e Energia (MME) inicialmente não responderam aos questionamentos da BBC News Brasil. Mas após a publicação da reportagem, o MME afirmou que o licenciamento do linhão do Tucuruí seguiu os protocolos de consulta aos indígenas e que foi "escolhido o traçado com menor impacto socioambiental". Já a pasta da infraestrutura afirmou que tem o "compromisso de assegurar que a rodovia (BR-319) seja modelo no respeito à conservação do meio ambiente e traga desenvolvimento sustentável para a região."

 

Estudos demonstram os efeitos prejudiciais da construção de rodovias para os ecossistemas cortados por elas

Sobrevivência ameaçada

A terra indígena de Jacareúba-Katawixi, no Amazonas, é habitada pelos indígenas Katawixi, um grupo isolado que nunca teve contato com não-índios, mas que deixa vestígios de ocupação observados em expedições, como construção de abrigos e colheita de frutos. Seu modo de vida é totalmente dependente da natureza preservada.

Com a portaria de restrição de uso prestes a vencer, a terra está em uma região que deve ser afetada pela pavimentação da BR-319, estrada de 885 km que liga Manaus a Porto Velho por terra.

Iniciada em 1968 e inaugurada em 1976, a rodovia foi idealizada e construída no coração da floresta pelo governo militar como parte de um "plano de integração nacional", que incluía o incentivo à migração e a criação da Transamazônica.

Nos anos seguintes, a BR-319 foi se degradando com a falta de manutenção. Cheia de atoleiros e crateras, seu estado chegou a um ponto que levou ao seu fechamento na década de 1980. Desde 2015 ela tem trechos abertos para o trânsito, mas sem pavimentação.

Em junho de 2020, o governo Bolsonaro publicou um edital para a pavimentação de 52 km da rodovia. Na época, no entanto, não havia um estudo de viabilidade econômica e nem a elaboração de um estudo detalhado de impacto ambiental (chamado EIA/RIMA).

O edital foi questionado na Justiça pelo Ministério Público Federal justamente pela falta do estudo ambiental, mas o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) argumentou que havia um entendimento com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) que tornava o EIA/RIMA desnecessário.

Em abril, o Dnit conseguiu derrubar na Justiça a liminar obtida pelo MPF que impedia a continuação das obras e posteriormente apresentou uma análise de impacto ambiental. No entanto, pesquisadores e ambientalistas questionam a capacidade do governo de mitigar as consequências das obras.

O Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), órgão de monitoramento do próprio governo, fez diversos estudos que apontam para os impactos ambientais do projeto. Um deles traz a projeção de que o desmatamento aumente em 1.200% no entorno com a retomada de obras na estrada.

Nesse cenário, a sobrevivência dos Katawixi está extremamente ameaçada, afirma Elias Bigio, coordenador da Operação Amazônia Nativa (Opan) e ex-coordenador geral de Índio Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC) da Funai.

"Eles estão sob forte pressão de grilagem, de madeireiras e garimpos ilegais. E a violação ao território indígena culmina na morte e no extermínio dessa população", afirma Bigio, que explica que grande parte dos indígenas isolados são sobreviventes de massacres de invasores do passado.

O ministério da Infraestrutura disse em nota que "com a recuperação e a pavimentação, a região terá ganhos econômicos e sociais, proporcionando ao estado do Amazonas a conexão com o restante do Brasil". A pasta também afirma que o processo de licenciamento ambiental "está em fase de análise pelo Ibama" e que "o estudo de impacto ambiental e suas complementações já foram protocolados".

"Além disso, já houve a realização das audiências públicas, conforme preconiza a legislação brasileira, e de vistoria do Ibama e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes", afirma a pasta.

O ministério diz também que "a pavimentação irá permitir uma presença maior de órgãos fiscalizadores, como Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal" e maior presença do Estado na região.

 

Após declínio vertiginoso na ditadura, população waimiri atroari hoje soma 2.160 integrantes


Torres na floresta

A presença dos indígenas isolados Piruichichi (Pirititi) na terra indígena Pirititi, em Roraima, é conhecida desde os anos 1980, a partir dos relatos dos Waimiri-Atroari, grupo com histórico de contato que também vive na região.

Os Pirititi são colocados em situação de extrema vulnerabilidade com o fim da vigência da portaria de restrição de uso e a passagem do Linhão do Tucuruí pela terra indígena, afirma Elias Bigio.

 

Terras indígenas sofrem pressão de desmatamento e de grileiros

 

A primeira portaria foi decretada pela Funai em 2012 e vinha sendo renovada a cada três anos desde então. Neste ano, no entanto, a Funai renovou a portaria por apenas seis meses, tempo visto como insuficiente pelos indígenas e por pesquisadores.

"Seis meses é muito pouco. Não dá para fazer estudos, para ouvir a comunidade, para retirar invasores. Só beneficia os madeireiros ilegais e os grileiros", afirma Antonio Oviedo, do ISA.

O MPF entrou com uma ação neste ano de 2021 com recomendações para a proteção do povo indígena isolado, incluindo o avanço do processo de demarcação definitiva da terra e ações de combate aos invasores.

O Linhão de Tucuruí é uma linha de transmissão de energia elétrica de 1.800 km que pretende ligar alguns estados do norte ao sistema nacional de energia. Com o atual traçado, ela cortaria a terra indígena dos Waimiri-Atroari em 125 km.

Apesar da linha ser mais recente, tendo sido leiloada em 2008, explica Bigio, ela também é parte de um projeto para a região que é herança da ditadura militar.

A usina hidrelétrica de Tucuruí, que a linha pretende ligar ao sistema de energia nacional, foi construída em 1974 no Pará como parte de um projeto do governo militar de explorar reservas minerais na Amazônia, o que gerava demanda de grande produção de energia elétrica. Sua segunda etapa foi concluída somente em 2008, ano em que o Linhão foi leiloado.

Os impactos da construção da hidrelétrica estão entre os mais estudados no Brasil, com inúmeras pesquisas que relatam como ela afetou as comunidades ribeirinhas e indígenas no entorno. Além do desmatamento e invasões, a construção hidrelétrica ampliou a presença de mosquitos, trouxe inúmeras doenças, afetou a pesca (essencial para a sobrevivência dos indígenas e dos ribeirinhos) e gerou contaminação com mercúrio, resultado do garimpo trazido para a região.

Já o Linhão de Tucuruí se tornou foco de conflitos ao passar por inúmeras terras públicas e particulares, incluindo áreas de reserva. A construção do linhão exige o desmatamento de certas áreas para a construção de torres de até 300 metros, além de trazer outros impactos apontados pelo próprio Ibama, como poluição, aumento do fluxo de pessoas e de doenças e novas frentes de desmatamento.

O trecho que passa pela terra indígena Pirititi estava com as obras paradas por causa da possibilidade de impacto socioambientais e aguardava aprovação do Ibama. Com as novas direções apontadas pelo governo Bolsonaro, no entanto, o Ibama e a Funai autorizaram a construção do trecho.

"É surpreendente que a Funai esteja fazendo isso", afirma Elias Bigio. "O que deveria ter sido feito era fazer uma consulta técnica, para que a comunidade indígena próxima, com históricos de contato, pudesse participar. Eles não foram ouvidos e a autorização não segue as diretrizes da própria instituição. Há uma portaria da Funai com mais de 80 anos que proíbe empreendimentos em terra de indígenas isolados."

 

Ministério de Minas e Energia diz que o linhão de Tucuruí margeará a BR-174, que atravessa o território waimiri atroari

 

O presidente Jair Bolsonaro já defendeu publicamente que os povos indígenas — 1,1 milhão do total de 213 milhões da população brasileira — deveriam ter suas terras reduzidas. É uma postura que Bolsonaro tem desde antes de se tornar presidente. Em 1998, quando ainda era deputado federal, ele disse ao jornal Correio Braziliense que era uma "vergonha" as forças militares brasileiras não serem "tão eficientes como as norte-americanas" em "exterminar povos indígenas".

Após a publicação da reportagem, o ministério das Minas e Energia disse que "o traçado da linha considerou as alternativas estudadas, tendo sido escolhido o traçado com o menor impacto sócio ambiental" e que o Ibama e a Funai analisaram as medidas de "controle, mitigação e compensação dos impactos identificados" e deram suas aprovações.

Harlison Araújo, assessor jurídico da Associação Comunidade Waimiri Atroari, afirma que os indígenas da comunidade apresentaram uma proposta de compensação ambiental sobre a qual o governo federal ainda não se manifestou. Eles lutam há anos para serem ouvidos pelo governo sobre as obras.

"Se o governo não considerar a proposta, não tem acordo", diz Araújo. "Tratam como se fosse culpa dos índios o projeto não ir para frente, mas foi o governo que não trabalhou direito."

Araújo lembra que não houve consulta prévia à população antes do leilão e que o governo não considerou os 27 impactos irreversíveis, apontados pelo próprio Ibama e pela Funai, e os outros 10 que são apenas mitigáveis.

"[Tanto o Linhão quanto a pavimentação da BR-319] são empreendimentos que se colocam como se os índios fossem um empecilho, como se a vida das pessoas fosse apenas um transtorno no meio do caminho", diz Elias Bigio. "Isso quando é perfeitamente possível se estudar alternativas que respeitem os povos locais e garantam sua proteção."

O MME disse que o processo de licenciamento "contemplou os protocolos da consulta aos indígenas foram seguidos, e estão sendo integralmente cumpridos" e que o governo "dialoga com a comunidade indígena sobre a proposta de criação de grupo de trabalho referente às compensações ambientais."

A pasta disse também que o sinal verde para o projeto "é um avanço significativo no processo que interligará Boa Vista ao Sistema Interligado Nacional, levando à capital de Roraima a segurança e a qualidade do sistema elétrico disponível nas outras capitais do país."

 

BBC News Brasil em São Paulo

Leticia Mori, 8 de dezembro de 2021

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Economia com alma para a Amazônia (O Globo)

 

Economia com alma para a Amazônia

 

Dom Cláudio Hummes, Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB.


Os alertas de que o desmatamento na Amazônia Legal derrubou mais de 500 quilômetros quadrados de florestas, somente em abril de 2021, devem inquietar-nos ainda mais se desejarmos garantir vida com dignidade para todas as pessoas. No contexto da pandemia, o desmatamento está intimamente vinculado a outras violações de direitos humanos e da natureza, como a grilagem de terras, a mineração em territórios indígenas, a precariedade dos serviços de saúde e a criminalização dos defensores e defensoras de direitos.

Na encíclica “Laudato Si”, que está para completar seis anos de publicação, nosso querido Papa Francisco assinalou que todas as coisas estão interligadas, são interdependentes. Humanidade e natureza não podem ser assumidas como se uma não dependesse da outra. Por isso, a economia não pode se abster de incluir as questões ambientais nas suas definições e práticas, pois isso, lembra o Papa, aumentará ainda mais as situações históricas de injustiças, empobrecimento e violência. Os gritos ecoados como consequências do desmatamento na Amazônia são um apelo para toda a sociedade, mas especialmente para as diferentes esferas de governo, sobre a urgência em repensar os modelos econômicos injustos e insustentáveis.

Sensível a esta realidade, jovens, economistas, universidades, pastorais e a sociedade civil responderam a um outro chamado do Papa Francisco: “estabelecer um pacto para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã.” Essa é a economia de Francisco, um movimento que está refletindo e atuando com experiências concretas para promover a dignidade humana e o cuidado com a Casa Comum, e para que a economia não seja um emaranhado de estatísticas sem vida. Por isso, é necessário dar uma nova alma à economia. E qual pode ser o novo rosto da economia? Quais pactos podemos firmar em nossas comunidades, cidades, no Brasil e no mundo?

Esse pacto precisa respeitar as comunidades tradicionais, especialmente povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos da Amazônia. Na exortação “Querida Amazônia”, o Papa também indica que estes irmãos e irmãs não são pessoas que devem ser convencidas sobre nossos projetos, mas antes de tudo precisam ser escutados, porque são os principais interlocutores para promover políticas justas e democráticas. Escutar os povos e comunidades para dar uma nova alma à economia é um dever de justiça, porque são eles que conhecem suas realidades e, como sujeitos de direitos, imaginam e já estão construindo a sociedade do bem viver, ainda que ameaçados. Se não ouvirmos os povos tradicionais, a Amazônia continuará sendo um território destinado à exploração desenfreada a serviço da economia de poucos para poucos.

Além do direito à participação em qualquer projeto, especialmente aqueles relacionados à economia, comunidades tradicionais também são detentoras de conhecimentos abandonados pela nossa sociedade modernizada, e foram elas as responsáveis pela conservação da floresta e toda a sua biodiversidade. Por isso, nenhum projeto, mesmo aqueles erigidos sobre a ótica da qualidade de vida, devem ser realizados sem reconhecer o mundo de símbolos e visões potentes que esses povos construíram ao longo de suas histórias. A prepotência de nossas sociedades urbanas e modernas, com uma economia que explora recursos sem reconhecer os limites da Casa Comum, coloca em risco não apenas a continuidade da vida na Amazônia, mas de toda a humanidade.

No Brasil, a economia de Francisco é também chamada de economia de Francisco e Clara, porque reconhece a presença das mulheres na construção de novas economias. Santa Clara foi companheira de São Francisco de Assis na contemplação, no cuidado com os empobrecidos e empobrecidas e no amor a todos os seres da Casa Comum. Os novos pactos para “realmar” a economia e cuidar da Amazônia precisam fortalecer as experiências que nossas comunidades estão realizando junto com mulheres, jovens, associações, empreendimentos solidários.

Na Amazônia e em outros biomas, a economia de Francisco e Clara já é uma realidade porque as pessoas estão organizadas para produzir e comercializar a partir da economia solidária, da agroecologia ou experiências pilotos de transição energética. A Igreja Católica no Brasil, através de vários dos seus organismos, sempre acompanhou esses grupos e agora, inspirada pelo Papa Francisco e atenta às urgentes demandas sociais, quer contribuir ainda mais para transformar a realidade e promover justiça socioeconômica com distribuição justa de renda, sem jamais destruir a Amazônia e outros biomas.

Por isso, a Igreja continuará acompanhando e exigindo dos governos que adotem medidas de cuidado integral com a Amazônia e toda a Casa Comum, especialmente nesse momento histórico em que são discutidos diversos projetos de lei e outras políticas públicas para superar a crise econômica agravada pela pandemia do novo coronavírus. A economia não deve ser um emaranhado de números ou uma promessa de desenvolvimento a qualquer custo, mas antes de tudo um serviço para promover a justiça e superar as desigualdades sociais, sem jamais esquecer que para isso precisamos de salvaguardar o meio ambiente e toda a sua biodiversidade.

Que o exemplo de São Francisco de Assis e Santa Clara inspire-nos a ser cuidadores e cuidadoras da vida e promotores de uma nova economia.

 

O Globo Opinião

Dom Cláudio Hummes, em 03/06/2021 às 17:28hs

Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB

Sob a Inspiração do Papa

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Cheias no Amazonas (Folha de São Paulo)

  

Cheias no Amazonas

Impulsionado pelas mudanças climáticas, rio Negro registra cheia histórica em Manaus

 

Principal cidade da Amazônia, Manaus registrou nesta terça-feira (1º) a maior cheia desde o início das medições no rio Negro, há 119 anos. Por causa das mudanças climáticas, seis das dez maiores cheias nesse período ocorreram no século 21.

A capital amazonense já sofre com inundações há um mês. A cota de inundação severa (29 metros) foi ultrapassada no dia 30 de abril. A previsão é de que a situação se estabilize e que as águas comecem a baixar em breve, um processo longo que deve levar algumas semanas. As medições e os alertas de cheia são de responsabilidade do Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM).

No centro, algumas ruas da região do porto estão interditadas. A prefeitura montou passarelas sobre as calçadas e vias alagadas e transferiu a tradicional feira de peixes para uma balsa. Já os comerciantes improvisaram barreiras com sacos de areia e vêm jogando cal na água parada para tentar neutralizar o cheiro insuportável de fezes.

 

População caminha sobre madeira no centro de Manaus em meio a cheia recorde do rio Negro - Alberto César Araújo/Amazônia Real

 

Nos igarapés, o represamento das águas pelo rio Negro provoca um acúmulo de lixo, que em alguns trechos chega a cobrir toda a superfície. Os moradores mais próximos dependem de pinguelas estreitas para transitar e, dentro das casas, lançam mão de plataformas de madeira (marombas) para suspender móveis e eletrodomésticos em meio ao fedor.

Segundo a Defesa Civil, cerca de 450 mil pessoas foram afetadas pelas cheias no Amazonas, o equivalente a 10% da população do estado. A cheia atingiu 58 dos 62 municípios amazonenses. Um deles, Anamã, no rio Solimões, está com todo o casco urbano alagado há algumas semanas.

Além de Manaus, foram registradas cheias recordes em Parintins (rio Amazonas), em São Gabriel da Cachoeira (rio Negro) e em Manacapuru (rio Solimões).

Pesquisa do Instituto Igarapé publicada em 2018 mostrou que o Amazonas é o estado do país com o maior número de pessoas deslocadas em decorrência de fenômenos naturais desde o ano 2000, seguido por Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Foram 840.252 deslocados ao longo de 18 anos, dos quais 84% em decorrência de inundações. Manaus apareceu como a 6ª cidade com maior número de desabrigados e desalojados por desastres naturais do país: 59.756, dois quais 81% vítimas de enchentes.

Responsável pelo sistema de alerta hidrológico do Amazonas, a pesquisadora em geociência do Serviço Geológico Luna Gripp afirma que não há dúvidas de que os eventos extremos estão se tornando mais frequentes.

“Em menos de três anos, já repetimos um evento que deveria ocorrer a cada 50 anos, se considerarmos o que ocorria antigamente”, diz Gripp, ao lembrar que houve uma grande cheia em 2009, logo superada pela de 2012. "Os movimentos extremos estão mais frequentes e também cada vez com maiores magnitudes”.

Uma diferença neste ano, segundo a pesquisadora, é que as chuvas acima da média no início do ano atingiram simultaneamente as cabeceiras do rio Negro e do Solimões, os principais afluentes do rio Amazonas. O resultado é que tanto São Gabriel quanto Parintins registraram níveis recordes, apesar de estarem a 1.172 km de distância, em linha reta.

 

Cheia do rio Negro provoca alagações no bairro do Educandos, em Manaus - Alberto César Araújo - 24.mai/Amazônia Real

 

“A frequência das grandes enchentes está aumentando, assim como a frequência de grandes vazantes”, corrobora o ecólogo Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), que atribui as mudanças ao aquecimento global.

No longo prazo, o pesquisador afirma que um dos fatores que mais impactam a mudança no regime de chuvas na Amazônia é a chamada Circulação Walker.

Desde os anos 1990, o aumento da temperatura no Atlântico Sul vem intensificando a circulação de vento de leste para oeste, causado pela diferença de temperatura da superfície do Atlântico Sul e a parte leste do Pacífico, que está ficando mais fria, aumentando essa amplitude.

São esses ventos vindos do Atlântico que transportam o vapor d’água que gera chuva para a Amazônia. Com a intensificação da Circulação Walker, a tendência é de que entre ainda mais água na maior bacia hidrográfica do mundo, segundo Fearnside.

 

Centro de Manaus durante cheia histórica do rio Negro - Michael Dantas/France Presse

 

Por outro lado, o desmatamento tende a diminuir as chuvas na Amazônia, mas esse é um fenômeno mais paulatino e regionalizado, afirma o pesquisador. Ele cita o caso do rio Tocantins, cuja bacia já está bastante desmatada.

Nesse caso, ocorre um paradoxo: ao mesmo tempo em que a supressão de árvores diminui a precipitação pluviométrica, a ausência da cobertura vegetal faz com que a água das chuvas escoe rapidamente para os rios, aumentando as cheias.

Não é o caso da enchente de Manaus, provocada tanto pelo rio Negro quanto pelo Solimões, que represa o primeiro no Encontro das Águas, a alguns quilômetros do centro. Longe de grandes estradas e do agronegócio, ambas bacias ainda sofrem pouco com o desmatamento da floresta amazônica.

 

Folha de São Paulo

Fabiano Maisonnave

02 de junho de 2021 às 10h06

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Isolados: Presença Missionária (Veja)

 

Governo defende presença de missionários em áreas de índios isolados


Em resposta a questionamentos do STF, AGU diz que as atividades religiosas promovidas pelos missionários são consideradas essenciais

 

Maloca de índios isolados na Terra Indígena Vale do Javari


A permanência de missões religiosas em comunidades indígenas e a defesa do governo para que continuem nessas áreas, mesmo no pior momento da pandemia, provocou indignação em membros da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e indigenistas. Na visão da entidade, nem pesquisadores, muito menos missionários, deveriam estar, nesse momento, em terras indígenas, especialmente aquelas em que há presença de povos indígenas isolados, tendo em vista a vulnerabilidade socioepidemiológica desta população – o que mostra o desconhecimento da gestão Jair Bolsonaro em relação ao básico desta política pública.

Um parecer da Advocacia Geral da União (AGU), respondendo a um questionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.622, de autoria da APIB e do Partido dos Trabalhadores (PT) em dezembro de 2020, é revelador da imperícia.

A ADI alega a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei 14.021 de 2020, que permite a presença de missionários em territórios habitados por povos indígenas isolados durante a pandemia do novo coronavírus.

Em resposta, o governo destaca que “a interação de índios isolados com missionários depende de (i) consulta e autorização da autoridade administrativa da Funai e (ii) avaliação por equipe médica e do aval do médico responsável, exigências que neutralizam os riscos apontados na inicial. As atividades desenvolvidas por missões religiosas consubstanciam exercício do direito fundamental às liberdades de culto e de expressão religiosa (art. 5º, VI, da CF)”, destacou a AGU.

Na avaliação da APIB, ao afirmar que os povos indígenas isolados devem ser consultados para manifestarem se querem ou não ser convertidos pelas missões religiosas, a União sugere que se viole a principal diretriz da política de proteção e localização de povos isolados do país, criada em 1987: a diretriz do não contato. Também mostra que a própria AGU dá o caminho de como aproximar missionários e povos indígenas isolados.

Uma carta de médicos sanitaristas que atuam junto a povos isolados afirma, nos autos, que o aval do médico responsável, como quer a União, não é suficiente para garantir a integridade física de tais populações, visto que não há condições para o acompanhamento da equipe, nem a avaliação política sobre as consequências de um possível contato.

A história recente mostra que muitos evangelizadores não obedecem as regras estabelecidas e entram em territórios indígenas sem a devida autorização da Fundação Nacional do Índio (Funai) ou, sequer, de outros povos indígenas que costumam manter contato mais recorrente com os não indígenas. Há relatos de funcionários da Funai que têm sido pressionados pelo governo a levar evangelizadores até povos isolados, como missionários da “Jovens com uma Missão” (Jocum), por exemplo.

Outro argumento que causou perplexidade entre os membros da APIB e entre os indigenistas de um modo geral, foi a defesa da AGU para justificar a presença de missionários em territórios de povos isolados afirmando que a religiosidade também é importante para a saúde dos povos indígenas, como se a única religiosidade possível fosse a cristã evangélica.

Para a APIB, os indígenas isolados possuem sua própria religiosidade, que lhes permite viver de forma saudável mental e socialmente. A suposição de que os missionários seriam os portadores da única religiosidade para os índios isolados desconsidera as crenças e religiões indígenas, seus usos, costumes e tradições, garantidos no artigo 231 da Constituição Federal.

A APIB não nega a afirmação da OMS trazida aos autos pela AGU de que “… partindo-se de uma abordagem integral e ampliada da saúde humana, que enfatiza seus aspectos subjetivos e psicológicos para além do modelo físico e mecanicista do processo saúde-doença, não são poucos os pesquisadores que apontam a influência positiva da religiosidade no bem-estar dos indivíduos.” A questão para a APIB, porém, é a de que tais populações que vivem em isolamento não necessitam de uma religiosidade cristã vinda de fora de seus costumes para tanto.

Segundo a APIB, o direito à vida, à autodeterminação e à saúde dessas populações está garantido na Constituição de 1988, tanto quanto o direito à liberdade religiosa, a qual pode ser exercida em qualquer local do território nacional sem que se coloque em risco a vida dessas populações. Também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos garante que a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença e a liberdade de professar sua religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

A APIB destaca ainda o trecho da defesa da AGU dizendo que as atividades missionárias são consideradas essenciais durante a pandemia, o que classificou como um absurdo, tendo em vista que neste momento da crise sanitária provocada pelo coronavírus, o distanciamento social se faz ainda mais necessário. Portanto, nada mais prudente do que manter em isolamento os indígenas que já vivem longe do convívio com outros povos como estratégia que, milenarmente, tem se mostrado crucial para a manutenção de suas integridades físicas.

“Cumpre frisar que a permissão prevista no dispositivo questionado está em conformidade com a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas voltadas ao enfrentamento da Covid-19. Esse diploma estabelece, em seu artigo 3º, § 9º, a necessidade de que se resguardem as atividades essenciais. O Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a mencionada lei, considerou como essenciais as atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”.

Chamou a atenção também da APIB as várias confusões feitas pela AGU entre comunidades isoladas e índios isolados, ao longo da defesa, mostrando sua inaptidão sobre as políticas para povos isolados. Os membros da APIB destacaram ainda que em nenhum momento da manifestação da AGU, nos autos, a área técnica da Funai que trabalha em Brasília e na Amazônia com o tema de populações indígenas isoladas ou de recente contato foi consultada.

 

Veja

Matheus Leitão

15 de abril de 2021, às 09h54

Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog.