Isolados
Mortandade e Guerra
entre Aldeias
O
sertanista José Meirelles quando trabalhava na base da Frente de Proteção
Etnoambiental Envira, na foz do Igarapé Xinane com o rio Envira Foto - Arquivo
Pessoal
RIO - Responsável por
fiscalizar durante 22 anos um imenso território com a presença de ao menos
quatro etnias desconhecidas no Acre, o sertanista José Meirelles faz uma
previsão sombria das consequências do contato feito entre índios isolados e uma
aldeia localizada no rio Envira, na fronteira com o Peru, revelado pelo GLOBO.
Há relatos de índios com
tosse, dores de cabeça e cansaço na aldeia Terra Nova, onde foi feito o contato
com os isolados. A Funai diz que já enviou uma equipe ao local para investigar
o caso.
O contato, considerado
raro por indigenistas, acontece em meio ao momento de maior risco desses povos
originários por conta do avanço da Covid-19 dentro das florestas.
Por experiências
passadas, Meirelles arrisca a cravar "99,9% de chances" de que algum
desses isolados tenha contraído gripe de algum indígena que more nessa aldeia
e, de volta para suas malocas, espalhado a doença.
- E eu não estou nem
falando de coronavírus. A probabilidade desses índios terem escapado de pegar
gripe é a mesma de eu ganhar na Mega-Sena. E, se pegaram, podem estar todos
mortos - afirma.
Fotos mostram índios
isolados na fronteira do acre
Índios
isolados no Rio Envira disparam flecha contra aeronave, entre a fronteira do
Acre e o Peru, em foto de 2008. Foto - Gleison Miranda/Funai
Ricardo
Stuckert e José Meirelles flagraram movimento de isolados na floresta do Acre. Foto
- RICARDO STUCKERT / Agência O Globo
Índios
atiraram flechas na tentativa de afastar a aeronave. Foto - RICARDO STUCKERT /
Agência O Globo
As fotos
foram feitas durante um voo de helicóptero próximo à fronteira com o Peru. Foto
- RICARDO STUCKERT / Agência O Globo
Maloca de
palha registrada durante o sobrevoo feita por José Meirelles. Foto - RICARDO
STUCKERT / Agência O Globo
Uma das
características desses índios é ter parte da frente da cabeça raspada e cabelos
grandes atrás. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo
Vista
aérea da região em que os índios foram encontrados. Foto - RICARDO STUCKERT /
Agência O Globo
Meirelles aposta que
pelas descrições feitas pelo cacique Cazuza Kulina ao GLOBO tem conviccção de
se tratar do mesmo grupo que avistou em 2008 durante um sobrevoo quando era
coordenador na Fundação Nacional do Índio (Funai) da Frente Ambiental de
Proteção Etno-Ambiental do rio Envira, e depois em 2016, já fora da Funai.
- Eu conheço o cacique
Cazuza há mais de 30 anos e confio nele. Certamente aconteceu o contato. E pela
descrição dele de que levaram vidro de garrafa para cortar cabelo é quase certo
de serem os isolados que avistamos em duas oportunidades. Eles têm a cabeça
raspada até o meio e cabelos grandes atrás, provavelmente pertencem a um grupo
do tronco linguístico pano.
De acordo com o sertanista,
esse grupo de isolados vive numa área de difícil acesso, no centro da floresta,
no Alto Rio Humaitá, e se dividem em até seis aldeias. Ele estima que há cerca
de 400 indígenas isolados vivendo por lá.
- Os homens andam nus,
usando apenas uma casca de árvore em volta da cintura, onde amarram o pênis. Já
as mulheres usam uma saia feita de algodão tingido, provavelmente tecido e
fiado por elas - afirma Meirelles.
O sertanista conta,
ainda, ter conhecimento desses índios desde 1989 e que eles transitam na
fronteira entre Brasil e Peru. Há também indicações de que eles têm o hábito de
se mudar num raio de até 10km de tempos em tempos.
'Carecas-cabeludos de pés
grandes'
No voo que fez com o
fotógrafo Ricardo Stuckert, no final de 2016, Meirellies diz ter percebido que
eles têm pés grandes também, além do corte de cabelo diferenciado.
- Essa informação de que
os homens têm cortes de cabelo diferentes é muito relevante. Mostra claramente
que eles pertencem a uma etnia que ainda desconhecemos.
Meirelles participou de
várias situações nas quais pôde registrar a presença de índios isolados nesta
área do rio Envira. Na mais marcante e tensa delas, em 2014, ficou frente a
frente a um grupo de isolados, em imagens que correram o mundo. (ASSISTA AO
VÍDEO ABAIXO).
- Ali, no terceiro dia de
contato, eles já estavam gripados. Foi preciso deixá-los de quarentena por
dias, até se curarem, para voltar à aldeia deles. Agimos rápido com apoio
médico - conta. Esse mesmo grupo, 10 anos antes, tinha flechado Meirelles no rosto
durante uma emboscada na mata enquanto saía para pescar.
Confira os principais
trechos da entrevista:
Qual o risco de um
contato desse tipo em meio à pandemia?
Nessa altura do
campeonato eu não estou nem preocupado com a Covid. Se esses índios estiveram
na aldeia, dormiram lá, apareceu um monte de gente, pegaram roupa, comeram
macaxeira, eu tenho 99,9% de certeza que eles pegaram uma gripe. Como já faz
uns dez dias, se isso ocorreu, já deve ter um monte de gente morta na aldeia.
O que fazer em uma
situação dessas?
Isso é um problema
seríssimo. Eu não sei o que a Funai vai fazer em relação a isso, pois ali é uma
região de difícil acesso, eles vivem no centro da mata, esses índios não vivem
na beira de rio. Eles vivem onde começa o enrugamento da Cordilheira dos Andes.
Numa situação dessas, não tem que colocar um servidor da Funai numa canoa velha
para subir. Tinha que ter acionado um helicóptero para que essa tal equipe que
está indo para lá não fique presa na seca dos rios, em pleno verão amazônico. É
um trabalho delicado, qualquer mal-entendido, qualquer atitude mal pensada pode
levar ao desastre, até porque uma guerra pode estar em curso por lá...
Como assim guerra?
Se essa hipótese da qual
estou falando se confirmar e começar a morrer gente, o que os índios isolados
vão pensar? Aqueles malditos índios que visitamos botaram feitiço na gente pra
matar. E daí sabe o que vai acontecer? Os homens que não estiverem doentes vão
voltar lá e flechar os madiha que deram roupas contaminadas por "feitiço”,
no entendiimento deles. Então, além da gripe e da mortandade, a gente vai
assistir a uma guerra. Olha o tamanho da encrenca.
Indígenas e a Pandemia
de Covid-19 no Brasil
Indígena
Yanomami usa uma máscara enquanto aguarda para fazer teste de Covid-19 em um
pelotão especial de fronteira, na terra indígena de Surucucu, em Alto Alegre,
Roraima Foto - ADRIANO MACHADO / REUTERS
A
assistente de enfermagem indígena Witoto, Vanda Ortega, 32 anos, cuida de um
paciente durante uma visita ao Parque das Tribos, comunidade indígena nos
subúrbios de Manaus, no Amazonas. Ortega vai de casa em casa equipada com
luvas, um jaleco de proteção e uma máscara na qual se lê “Vidas indígenas
importam”; mensagem inspirada no slogan “Black Lives Matter”; de militantes
negros nos EUA Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP
Soldado do
Exército distribui máscaras faciais a membros da etnia Yanomami na terra indígena
de Surucucu, em Alto Alegre, Roraima Foto - NELSON ALMEIDA / AFP
Equipe
médica das Forças Armadas realiza um teste rápido para Covid-19 em um indígena
na base do pelotão especial de fronteira, em Alto Alegre Foto - NELSON ALMEIDA
/ AFP
Enfermeiras
indígenas da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) da etnia Arapiuns e
da etnia Tapuia realizam um teste rápido para COVID-19 no chefe Domingos, da
tribo Arapium, nas margens do baixo rio Tapajós, no município de Santarém, oeste do Pará Foto - TARSO
SARRAF / AFP
A técnica
de enfermagem indígena Kambeba, Neurilene Cruz, 36 anos, realiza testes para
COVID-19 às margens do rio Negro, na aldeia Três Unidos, estado do Amazonas. Foto
- BRUNO KELLY / REUTERS
Indígenas
Sateré Mawé preparam ervas medicinais para tratar pessoas com sintomas da
COVID-19 na comunidade Wakiru, no bairro de Tarumã, uma área rural a oeste de
Manaus. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP
O líder
indígena André Sateré, 38 anos, coleta ervas medicinais como carapanaúba,
caferana e sara tudo, todas nativas da floresta amazônica, para tratar pessoas
que apresentam sintomas do novo coronavírus. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP
O líder
indígena Valdiney Sateré, 43 anos, colhe caferana, planta nativa da floresta
amazônica usada como erva medicinal para tratar pessoas com a COVID-19 em sua
comunidade. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP
Javier
Alexandre Andres Cruz, 26 anos, um indígena Tikuna contaminado com a COVID-19, é
atendido em uma ambulância depois de chegar de jato da UTI de Tabatinga a
Manaus. Foto - BRUNO KELLY / REUTERS
Indígenas
sateré-mawé usam um smartphone para entrar em contato com um médico no estado
de São Paulo para receber orientação em meio à pandemia de coronavírus, na
comunidade Sahu-Ape, a 80 km de Manaus. Lar da maioria dos povos indígenas do
país, o Amazonas é uma das regiões que foram mais afetadas pela pandemia. Foto -
RICARDO OLIVEIRA / AFP
Indígenas
participam do funeral do chefe Messias Kokama, 53, do Parque das Tribos, que
morreu pelo novo coronavírus, em Manaus. Foto - BRUNO KELLY / REUTERS
O chefe
Leno, da tribo Kunaruara, faz um remédio natural com infusão de mel, em sua
aldeia, ao lado do rio Tapajós, no município de Santarém. Foto - TARSO SARRAF /
AFP
Funcionário
da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) verifica a temperatura dos
membros da etnia Tikuna, em Lago Grande, Amazonas. Foto - AFP
Alguns índios da
aldeia disseram que estão com sintomas de gripe...
Os kulina madiha ficam
distante uns quatro ou cinco dias de canoa do município de Feijó. Trocaram
muitas peças com a cidade, certamente tem muito vírus da gripe entre eles. Eu
me lembro do contato que fizemos com os isolados em 2014, que chegaram na
aldeia mexendo em tudo. No terceiro dia, eles já estavam gripados. Se não fosse
o Dr. Douglas (o médico sanitarista Douglas Rodrigues, que trabalha no Xingu) vir
de São Paulo para me ajudar, teria ficado ruim. E olha que eram apenas sete
índios, mas a gente conseguiu tratar. Lá, nessa localidade de agora deve ter
uns 400 índios.
Já havia registro desses
índios isolados nessa região?
É um grupo grande. Não
tem só uma aldeia. São várias aldeias, cinco, seis, sei lá. Provavelmente tem
umas 400 pessoas, vamos dizer assim. Pelas características do cabelo comprido,
testa raspada... é o único grupo isolado que ainda tem por lá, nessa área.
Captamos imagens deles em dois sobrevoos, um quando estava na Funai, em 2008, e
outro em 2016, quando estava acompanhado do fotógrafo Ricardo Stuckert. Eles
atiraram muitas flechas contra o helicóptero e as imagens correram o mundo pela
BBC.
O cacique me disse que
não entendeu bem a fala deles...
Por conta das fotos, do
tipo de roçado e das festas deles, eu desconfio que fazem parte de grupos
identificados como pano. Madiha (Kulina) é outro tronco linguístico, eles não
entenderiam mesmo, apenas algumas palavras podem ser semelhantes.
Como o senhor vê as
ações do governo no combate à Covid-19 nas aldeias?
Com muita tristeza. Pode
ter certeza que deve ter alguém no governo Bolsonaro que está achando tudo isso
ótimo.
O
Globo
Daniel Biasetto
17 de agosto de 2020 às 20:51