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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Direito Real de Uso (Dia a Dia)

 Ribeirinhos ganham direito inédito de uso da terra no Amazonas após 16 anos de luta

Em março, 15 comunidades ribeirinhas do Rio Manicoré, no Amazonas, conquistaram, de maneira coletiva, uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU); é a primeira vez que isso ocorre no Estado.


 

Porto de comunidade ribeirinha no Rio Manicoré. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

 

Liderados por uma professora e uma agricultora familiar, 15 comunidades tradicionais das florestas públicas de Manicoré, município no sul do Amazonas, conquistaram em março o reconhecimento e o direito de uso coletivo do território após 16 anos de luta. É a primeira vez na história do Amazonas que povos tradicionais ganham uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) coletiva por tempo indeterminado.

Também é a primeira vez que a concessão é aplicada a famílias que não vivem em uma unidade de conservação. A reportagem é da Mongabay.

“Criamos o Território de Uso Comum do Rio Manicoré, uma experiência inédita de proteção”, diz o procurador do Estado Daniel Viegas, chefe da Procuradoria do Meio Ambiente, explicando que, para emitir a CDRU aos ribeirinhos do Rio Manicoré, o governo amazonense teve que alterar a legislação fundiária estadual.

 

Parte destes ribeirinhos luta, desde 2006, para que o território seja transformado em Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Mas, por medo e desinformação espalhados por madeireiros e grileiros, a maioria dos comunitários não aprova a reserva.

 

Formado por um mosaico de três Terras Indígenas, nove Unidades de Conservação e quase 9 mil km2 de florestas públicas não destinadas (é nesta área que vivem os ribeirinhos), a região do Rio Manicoré é uma das mais preservadas da Amazônia brasileira.

Além da preservação ambiental de uma área de extrema importância para a Amazônia, a CDRU ajudará a manter o modo de vida tradicional dos cerca de 4 mil ribeirinhos que vivem no território, entre extrativistas, agricultores familiares e artesãos de canoa e remo.

“O Manicoré vive do açaí, castanha, tucumã, banana, cacau e da roça. Vivem todos bem, do que a natureza dá, sem desmatar”, afirma a agricultora familiar Maria Clea Delgado, presidenta da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim), uma das responsáveis pela conquista da Concessão.

 

Mulher ribeirinha na região do Rio Manicoré; moradores se deslocam pelo território por meio de canoas e barcos. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

 

Quando a Mongabay visitou as comunidades, em junho, os comunitários se preparavam para a Festa do Açaí da comunidade do Estirão, a uma hora de barco do município de Manicoré.

“Todo mundo planta açaí aqui”, diz o agroextrativista Manoel Tomé Correa, exibindo com orgulho a pequena plantação de açaí da família — que inclui tios, os pais, dois irmãos e os sobrinhos, todos vizinhos.

 

“A Festa do Açaí do Estirão é a melhor festa do Rio Manicoré, um dia e uma noite de festa. Tem forró, tem a dança do açaí. Todo o dinheiro conseguido na festa vai para a nossa associação comunitária”, conta o agroextrativista.

 

Toda a família de Manoel nasceu na comunidade e trabalha coletando açaí, castanha e andiroba. Do açaí, eles fazem o suco e o creme; da andiroba, extraem o famoso óleo do fruto, usado para quase tudo no Amazonas: de repelente natural a remédio para curar dor de garganta. Tudo o que colhem e coletam do próprio quintal é vendido em Manicoré ou para atravessadores que percorrem o rio em busca dos produtos da floresta.

“Tem que preservar a floresta para depois não faltar. Aqui, a gente vive tranquilo. Mas estão destruindo aí para dentro, a gente ouve. Se destruírem, como vamos sobreviver?”, diz Manoel, que nunca saiu da comunidade.

Para a gestora ambiental Cristiane Mazzetti, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil, a CDRU é uma importante conquista na luta dos povos do Rio Manicoré.

 

“Apesar de a CDRU não ser um instrumento de conservação ambiental, ela tem objetivos que se aproximam dos de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, como a garantia da permanência das populações tradicionais e a manutenção das suas atividades sustentáveis, além do próprio reconhecimento do território”, explica Mazzetti.

 

O procurador do Estado Viegas concorda. “Por meio da regularização fundiária, a Concessão de Direito Real de Uso produz efeitos sobre a proteção ambiental, já que o texto da CDRU traz limites para a exploração no território”, afirma.

De acordo com a Lei n 9985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), populações tradicionais que vivem em reservas, florestas nacionais e demais unidades de conservação podem fazer uso dos recursos naturais de forma racional e desenvolver atividades econômicas sustentáveis, como o extrativismo, mas fica proibida a caça e a pesca profissional e a exploração dos recursos minerais.

 

O agricultor Manoel Tomé Correa mostra o óleo de andiroba feito pela família em uma comunidade no Rio Manicoré. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

 

“Balsas de madeira entram e saem toda semana”

Apesar da conquista, o objetivo da Caarim, formada por parte dos 4 mil ribeirinhos que habitam a área, é o de transformar a região em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

“Lutamos para que aqui seja uma RDS por causa das invasões e do desmatamento no nosso território. Queremos proteção”, explica a professora municipal Marilourdes Cunha da Silva, fundadora da Caarim.

Quem navega pelas águas que cortam a extensão territorial do município de Manicoré consegue avistar balsas que chamam atenção pelos nomes — Dona Raimunda, Fátima, Rosa —, mas também pela quantidade de toras de madeira que carregam. Algumas também levam gado e tratores.

“Tem muito madeireiro na região oferecendo dinheiro para a gente cortar árvores nativas. Por um angelim desse tamanho, estão pagando 400 reais”, conta um ribeirinho ao avistar um angelim de cerca de 30 metros de altura, nativo da região e cobiçado pelos madeireiros. “Tem gente que aceita cortar porque é um dinheiro rápido, mais rápido que plantar uma roça e ter que esperar meses para colher”, diz o morador, que por segurança não será identificado.

“Balsas com madeira entram e saem daqui toda semana. Três, quatro balsas carregadas de madeira saindo do Rio Manicoré toda sexta-feira. Isso [vem acontecendo] mesmo depois da CDRU”, relata uma moradora. Por segurança, ela também não será identificada.

Na altura do Rio Madeira, nas margens da área urbana de Manicoré, há, ainda, dragas de garimpo revirando o solo e poluindo as águas do rio.

 

Balsa com toras de madeira no Rio Manicoré em agosto de 2022. Foto: Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim)

 

“Já me ofereceram trabalho aí nessas balsas de garimpo do Madeira, mas eu disse não. Depois disso, uns homens apareceram na porta de casa com um amigo meu para tentar me convencer”, conta um ribeirinho que nasceu em uma das comunidades e hoje vive na área urbana.

 

De fato, o trânsito de balsas demonstra que a paisagem preservada das florestas de Manicoré tem mudado na última década: o território por onde se estende o município registrou mais de 150 km2 desmatados apenas no primeiro semestre de 2022. A quantidade já é maior que o desmatamento ocorrido nos doze meses de 2021, quando o município bateu recorde histórico, com 134,7 km2 devastados, segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes/Inpe).

 

“A gente já fotografou [as balsas de madeira], mandou para o MPF, fez ofício pedindo para fiscalizar e nunca recebemos nenhuma resposta. É por isso que queremos que essa área seja uma RDS, para frear esse desmatamento”, diz a presidenta da Caarim, Maria Clea.

 

Quanto ao garimpo, dados da Agência Nacional de Mineração levantados pela Mongabay mostram que existem 19 requerimentos de lavra garimpeira para uso industrial ativos em Manicoré.

Sobre as denúncias, a reportagem procurou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Ministério Público do Amazonas. O IBAMA não respondeu os questionamentos e o MP-AM afirmou que as denúncias dos comunitários são objeto de inquérito civil no Ministério Público Federal.

“Agora, estamos preocupados em como será o desmatamento nesse semestre. Estamos vendo que se os próximos meses forem igual a maio e abril, os desmatadores virão com tudo”, diz Clea.

Em março, mês em que o território do Rio Manicoré passou a ser protegido pela CDRU, o Greenpeace flagrou um desmatamento de 1.900 hectares no meio da floresta nativa. Em agosto, a organização voltou a sobrevoar a região e registrou uma queimada de grandes proporções na área desmatada, cuja fumaça chegou inclusive a encobrir o céu de Manaus, a cerca de 330 quilômetros dali.

 

Queimada registrada em agosto de 2022 dentro da CDRU do Rio Manicoré em área desmatada em março. Foto: Christian Braga/Greenpeace

 

O levante de mulheres ribeirinhas

Maria Clea e Marilourdes lutam há 16 anos pela criação da RDS do Rio Manicoré. Elas se conheceram ao acaso em 2006, durante um deslocamento de voadeira, espécie de canoa motorizada, pelo Rio Manicoré — os rios funcionam como ruas e estradas para os ribeirinhos, uma vez que não há vias terrestres que liguem uma comunidade a outra. Algumas comunidades estão a horas de barco da sede do município.

“Começamos a conversar sobre a situação do Manicoré e descobrimos que nós duas tínhamos criado associações em nossas comunidades. Pensamos: ‘Por que a gente não cria uma associação geral?’”, conta Clea, conhecida na região por histórias como a vez em que entregou nas mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma carta pedindo energia elétrica para as comunidades do Rio Manicoré.

Antes de fundarem oficialmente a Caarim, o primeiro passo da dupla foi descobrir “quem era o dono do rio”, como diz Clea, uma vez que os ribeirinhos que habitam o local há décadas não têm escritura das terras por essas serem florestas públicas não destinadas.

“Descobrimos que as terras são do estado (Amazonas) e buscamos orientação do Incra para saber o que poderia ser feito para nos proteger. Foi aí que nasceu a ideia de se criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável”, explica a agricultora.

A professora Marilourdes lembra com orgulho que, quando nasceu a Central das Associações, ribeirinhos de todas as comunidades apoiavam a criação da reserva.

“Nos primeiros anos, nossas reuniões tinham mais de 400 ribeirinhos, mas lá por volta de 2014, começou um movimento contrário. Começaram a espalhar uma conversa de que, se fosse aprovada a reserva, o ribeirinho seria proibido de caçar, pescar, tirar madeira para construir sua casa ou canoa, essas coisas. O comunitário ficou com medo de perder suas terras e a luta foi retrocedendo”, diz Marilourdes.

Segundo as lideranças, os boatos foram espalhados por políticos da região e pessoas ligadas a madeireiros ilegais vindos de Santo Antônio de Matupi, distrito de Manicoré.

A tensão entre apoiadores e não apoiadores piorou em 2015, quando aconteceu uma audiência pública sobre a proposta de criação da RDS do Rio Manicoré e a maioria dos presentes foi contra. “Fomos impedidas de falar nessa audiência pública”, afirma Clea.

Comunitários que apoiavam a Caarim na época relataram ter sofrido intimidações de anônimos, como ter suas voadeiras empurradas no rio para longe de suas comunidades.

O episódio conseguiu desarticular por cerca de quatro anos a luta da professora e da agricultora.

“De 2015 para cá, aumentou muito a grilagem de terras, a pesca ilegal, a extração de madeira da floresta. Os madeireiros colocaram a motosserra para funcionar quando viram que aquela audiência pública não deu em nada”, diz Clea.

 

Considerada uma das áreas mais preservadas da Amazônia, Manicoré tem registrado recordes de desmatamento desde 2015; no primeiro semestre de 2022, foram mais de 150 km2 de vegetação nativa cortados.

 

Dia a Dia Notícia

01 de setembro de 2022 às 12:56hs

terça-feira, 21 de abril de 2020

Avanço Ilegal da Soja (DW)


Amazônia
O Avanço Ilegal da Soja (DW)

Maior produtor do grão do país, Mato Grosso vive alta de desmatamento e de ilegalidade. Na safra 2018/2019, 64% das novas áreas plantadas estavam no bioma amazônico.

Plantação de soja no Mato Grosso. A soja ocupa 10 milhões de hectares do Mato Grosso.

Nos campos de soja de Mato Grosso, a temporada de colheita da planta está no fim. Parte da safra, com previsão de render 34 milhões de toneladas, já começa a embarcar rumo ao principal consumidor: China. Em Sorriso, norte do estado, o grão enche os silos, as construções mais altas da cidade. De lá até Sinop pela BR 163, lavouras contínuas de soja se estendem por quilômetros, ocupando até terrenos na área urbana – ao lado de restaurantes, casas e centros de compras.
No principal estado produtor do país, o plantio de soja ocupa 10 milhões de hectares, área maior que Portugal. "O Mato Grosso se desponta devido à estabilidade do clima, tem as estações de chuva e de seca", afirma Tiago Stefanello, presidente do Sindicato Rural de Sorriso e representante da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja).
Em 2019, Mato Grosso também se destacou em outro ranking. Depois do Pará, o estado é o segundo maior responsável pelo desmatamento da Floresta Amazônica. Medições feitas pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) no programa Prodes, que verificou o desmatamento anual de julho de 2018 a agosto de 2019, mostram um aumento de 25% nas taxas de desmatamento em relação ao período anterior.

A produção de soja na Amazônia. Assistir ao vídeo 09:03.

A ilegalidade predomina: em 85% das áreas, o corte foi clandestino. "Mais da metade do desmatamento (56%) aconteceu em grandes propriedades rurais. Foram desmatamentos grandes, facilmente detectados pelo sistema de monitoramento via satélite", comenta Vinícius Silgueiro, coordenador de Geotecnologias do Instituto Centro de Vida (ICV).
Questionado sobre uma possível relação entre desmatamento e expansão da soja, Stefanello diz não acreditar nas taxas divulgadas pelo Inpe. "Tem um monte de parque, de terra indígena que queima e colocam tudo na conta do produtor", responde à DW Brasil.
Onde o corte da floresta foi autorizado, não há dúvidas sobre a intenção de quem desmatou. "Os municípios que lideram o desmatamento legal estão na zona de expansão da soja. É quem tem dinheiro para viabilizar as emissões de autorizações e licenciamento de forma mais rápida", complementa Silgueiro.

Relações indiretas
Pesquisadores rastreiam há décadas a ligação entre o sumiço da Floresta Amazônica e a expansão da soja e apontam que, atualmente, a conversão direta da mata nativa em área de cultivo é menos comum que em períodos anteriores à Moratória da Soja. Declarada em 2006, os signatários do acordo firmaram o compromisso de não comprar soja de áreas desmatadas.
"A influência da soja nessa dinâmica pode ser entendida como indireta, porque seu avanço sobre as pastagens pode estimular o avanço da pastagem para as florestas", comenta Nathália Nascimento, que acaba de publicar um artigo sobre a pesquisa desenvolvida no Inpe.

Infográfico da Produção Global de Soja.

"Alguns estudos recentes apontam que, com a soja ocupando áreas de pastagens, a pecuária busca novos espaços e leva a mais desmatamento", pontua Nascimento. "Mas isso também depende do contexto da região", ressalta.
Stefanello afirma que entre os associados produtores de soja de Sorriso "muito raramente se fala em abertura ilegal". "O que a gente nota e vê, é que a soja está indo para as áreas que eram de pecuária. As pecuárias extensivas que, nos anos anteriores faziam as queimadas, jogavam pasto para o boi, hoje a viabilidade da agricultura é melhor que a pecuária", responde.
De uma forma ou de outra, a lavoura segue rumo à floresta. Na safra 2018/2019, 64% das novas áreas plantadas no Mato Grosso foram no bioma amazônico, somando 144 mil hectares, segundo mapeamento feito pela Universidade Estadual de Mato Grosso, disponível para consulta pública.

Avanço pelo portal
Nomeada a capital do agronegócio brasileiro por decreto federal, Sorriso está no chamado portal da Amazônia. Nesta área de transição entre cerrado e bioma amazônico, o projeto de ocupação populacional iniciado no governo militar atraiu majoritariamente agricultores do sul do país.

Vista aérea de campos de plantação. Plantação de soja na Amazônia: pesquisadores rastreiam há décadas a ligação entre o sumiço da floresta e a expansão da soja.

"Esses colonos foram assentados nessa região, e não teve nenhuma política de assentamento, de treinamento dessas pessoas. O que eles tinham de riqueza era a floresta", pontua Domingos de Jesus Rodrigues, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). "Então tiraram a madeira, depois veio a pecuária e, mais tarde, a soja."
A família de Stefanello chegou nessa época. "As famílias eram obrigadas pelo governo a abrir ou perdiam a terra. Hoje a gente é obrigado a preservar", argumenta.
Foi na década de 1990 que a soja iniciou sua soberania. O trabalho de pesquisa e adaptação de espécies feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) foi fundamental para que o estado se tornasse o maior produtor nacional na safra 2000/2001.

Pressão sobre a agroecologia
Na contramão deste cenário, a poucos quilômetros de Sinop – que também se considera capital do agronegócio e está dentro da Amazônia – os moradores do assentamento 12 de outubro tentam levar a agroecologia adiante.
"Como a gente está nesse local, o portal da Amazônia, a gente tinha mais esperança de produzir de forma saudável", afirma Marciano Manoel da Silva, assentado ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Produtor de hortaliças e vegetais sem uso de agrotóxicos, Silva diz que o assentamento sofre constantes ameaças. "Nós sentimos o cheiro do veneno que é passado ao redor, nas fazendas, de avião. O assentamento a todo momento está sendo seduzido pelo agronegócio, com falsas promessas de pessoas para arrendar sítio e plantar soja", detalha.

Futuro de bom senso
Do campus de Sinop da UFMT, a bióloga Ana Lúcia Tourinho acompanha o mapa do desmatamento com preocupação. "Nós estamos vendo a fragmentação da Amazônia, aumento do desmatamento e do fogo. A perspectiva não é positiva, mas de perdas drásticas", analisa.
Tourinho ressalta que essas perdas acabam reduzindo os próprios serviços prestados pela floresta à economia do país. "A mata nos presta serviços como o de polinização, onde a vida segue acontecendo livremente, sem que a gente precise pagar por isso", detalha.
Além disso, frisa a bióloga, é preciso considerar a íntima ligação entre floresta e produção de água. "As árvores tiram a água do fundo, de graça, e devolvem para a atmosfera", explica, fazendo menção à origem de boa parte das chuvas que caem na região.
O pesquisador da UFMT Domingos de Jesus Rodrigues é categórico: "Se a floresta desaparecer, vai ser uma perda muito grande, principalmente para a população humana. Porque nós teremos desertificação, redução de chuvas, aumento de calor, e isso contribuirá negativamente para a sobrevivência dessas populações", resume as principais conclusões de estudos científicos feitos nas últimas duas décadas.
O bom senso, defende, é que dois lados dialoguem. "Porque precisamos de alimento, mas também precisamos da preservação ambiental", afirma. "A preservação da floresta garante a sustentabilidade do agronegócio", resume.

Nádia Pontes (de Sinop e Sorriso), 21 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Desenvolver sem Desmatar (DW)


Amazônia
Desenvolver a Economia sem Desmatar (DW)

Autor de livro sobre práticas sustentáveis na Amazônia explica por que associar desenvolvimento econômico ao desmatamento é uma falácia e indica novos caminhos para gerar riqueza sem destruir.

Árvores verdes. Ricardo Abramovay propõe formas de conservar a mata e ao mesmo tempo gerar crescimento econômico.

Quem defende o desmatamento de áreas na Amazônia costuma dizer que ele é necessário para levar progresso à região e desenvolvê-la economicamente. Essa foi uma das teses do regime militar para o bioma e segue presente em setores do Governo Federal e em parte dos empresários do agronegócio. Sob essa lógica, manter a floresta reduz a possibilidade de um país carente, como o Brasil, gerar riqueza.
O conflito entre preservar a floresta e desenvolver a região, porém, é uma ideia errada e fora de lugar, afirma Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). Ele lançou em outubro o livro “Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza”, em que analisa e propõe formas de conservar a mata e gerar crescimento econômico ao mesmo tempo.

Como desenvolver a região da Amazônia sem desmatar?
Primeiro, é necessário corrigir os rumos do que já se faz. Os produtores de soja devem reiterar o compromisso da Moratória da Soja e respeitar a regra de que não se compra soja de terras recentemente desmatadas. A pecuária precisa se tornar racional e sustentável.
Hoje, a pecuária na Amazônia é em grande parte de baixíssima produtividade. E interromper as atividades ilegais ligadas ao garimpo e à exploração clandestina de madeira. Essas são as premissas, não adianta sonhar com outra coisa se não conseguimos nem um mínimo de organização empresarial civilizada em torno daquilo que já existe.

E como ir além disso para gerar mais riqueza na região?
A verdadeira alternativa é a economia da floresta em pé, em substituição à economia da destruição da natureza que predomina hoje. Essa economia do conhecimento da natureza é composta de elementos que já existem de maneira precária ou que ainda não existem, mas são potenciais.
Os que existem de maneira precária e precisam ser desenvolvidos referem-se às cadeias de valor baseadas em produtos da floresta em pé. O açaí é o exemplo mais emblemático, o rendimento de um hectare de açaí é muito superior ao de um hectare de soja [R$ 26,8 mil para o açaí e R$ 2,8 mil para a soja por ano em 2015].

Foto de Ricardo Abramovay. "A verdadeira alternativa é a economia da floresta em pé", Ricardo Abramovay.

Há outras cadeias de valor relativamente existentes, como castanha do Pará, borracha e piscicultura, mas exploradas em condições muito precárias. A piscicultura de peixes de água doce em cativeiro na Amazônia tem a vantagem sobre as formas mais conhecidas de piscicultura em cativeiro, como o salmão. Os peixes da Amazônia criados em água doce não são carnívoros, logo o impacto ambiental é mais baixo.
Além disso, o turismo ecológico no mundo cresce 15% ao ano, e na Amazônia ele tem um potencial de crescimento imenso. E você tem também todo um potencial de moléculas da biodiversidade para a produção de fármacos. O Brasil vive o paradoxo de ser o país com a maior diversidade do mundo e ter uma indústria farmacêutica concentrada na produção de genéricos, pouco voltada a inovações para as principais moléstias do século 21. É outro potencial para a valorização da floresta em pé que não estamos aproveitando.

Qual a relação entre desmatamento e crescimento econômico?
Quando o Brasil se destacou pelo combate vigoroso ao desmatamento, reduzido em 80% na Amazônia entre 2004 e 2012, ao mesmo tempo a produção agropecuária da região aumentou devido à tecnologia avançada aplicada nas áreas de produção de soja, sobretudo em Mato Grosso.
Se o desmatamento avança, quais são seus protagonistas? Às vezes dizem que quem desmata são os pobres que não têm alternativa de vida, mas não é assim. Desmatar é caro, exige investimento, máquinas, contratar trabalhadores. O desmatamento hoje é feito por grupos organizados, que, diante da mensagem de que a suposta indústria de multas não vai parar  suas atividades, se organizam na expectativa de terem legalizados direitos que não lhes foram reconhecidos sobre terras públicas. Essa é uma explicação importante para a explosão do desmatamento em 2019.
É claro que no desmatamento a economia cresce de alguma forma, você vende madeira, têm exploração de garimpo, mas é um crescimento baseado em ilegalidade e muito menor do que quando você tem condições legais para exercer as atividades econômicas. Um ambiente institucional que coíba o desmatamento ilegal é um ambiente em que investidores responsáveis poderão agir.

Que políticas públicas o Estado brasileiro deve desenvolver para incentivar a economia da floresta em pé?
A primeira é uma sinalização clara de que haverá fiscalização e que não será tolerada a permanência de atividades ilegais. É importante mudar a narrativa do governo federal, porque ela forma uma cultura empresarial. E a narrativa do governo hoje é que, se a Amazônia não for desmatada, os 25 milhões de pessoas que moram lá vão morrer de fome. Uma narrativa perniciosa que estimula os atores locais a adotarem as piores práticas.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

Também é preciso valorizar o trabalho feito por organizações não governamentais, que junto com as populações tradicionais na floresta são os atores dessa economia do conhecimento da natureza. E apoiar a junção entre comunidade científica, organizações não governamentais e empresários voltados à exploração sustentável da floresta. Hoje existem algumas iniciativas fazendo isso, como o Centro de Empreendedorismo da Amazônia, mas sem qualquer tipo de apoio ou sequer entusiasmo governamental.
E também apoiar o multilateralismo democrático, destruído por razões ideológicas pelo atual governo. O Fundo Amazônia era uma das expressões mais emblemáticas da cooperação entre três países democráticos, Noruega, Alemanha e Brasil, para enfrentar o desmatamento.

Qual é o formato para estimular a inovação na exploração sustentável da floresta?
Uma proposta, do Carlos Nobre e do Ismael Nobre, são os laboratórios de inovação da Amazônia, para descentralizar o processo de inovação e multiplicar as possibilidades de junção entre conhecimentos tradicionais e científicos vindo da academia e das organizações que fazem pesquisa. As universidades têm papel importante, mas sozinhas não são capazes de fazer isso. Existe uma comunidade de pessoas com doutorado em municípios da Amazônia que podem ser a base para isso.
Agora, o formato exato ainda ninguém sabe, é por meio da experimentação, que precisa de apoio governamental. Nos Estados Unidos, quando se tem desafios dessa natureza, a Darpa (agência de pesquisa do departamento de Defesa) lança editais com desafios para estimular processos de experimentação. É importante estimular que grupos procurem dar respostas ao desafio.

Há um embate entre setores do agronegócio e ambientalistas sobre o grau de desmatamento a ser admitido na Amazônia: o desmatamento zero versus o desmatamento de até 20% nas áreas privadas, permitido pelo Código Florestal. Qual é a saída?
A pressão institucional para o desmatamento zero, não o desmatamento ilegal zero, é imensa. Ela se baseia na ideia de que os produtores [e consumidores] de soja querem dissociar o produto de qualquer perigo de desmatamento na Amazônia. E existem condições técnicas de a produção de soja se expandir no Brasil e no mundo sem desmatar a Amazônia e o Cerrado.
Autorizar algo na Amazônia que não seja a economia da floresta em pé pode satisfazer as necessidades de um produtor individual, mas não os interesses do país e da preservação do ecossistema. Não há razão para não aderir ao desmatamento zero integral. Mas o dado importante é que o desmatamento que ocorreu em 2019 não foi o desmatamento desses 20% [autorizados por lei]: 90% do desmatamento de 2019 foi ilegal.

Como você avalia a postura do agronegócio brasileiro em relação à Amazônia?
Há um conjunto de empresários interessados em interromper a devastação na Amazônia, favoráveis ao desmatamento dos 20% [permitidos], mas apoiam a Moratória da Soja, não apoiam a invasão de terras públicas. Por outro lado, há um conjunto de atores econômicos oportunistas incentivando políticas predatórias. A oposição hoje não é bem agronegócio versus ambientalistas, porque uma parte do agronegócio está junto com os ambientalistas, mas dentro do próprio agronegócio.

Bruno Lupion, 15 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

Gado, Soja, Desmatamento (DW)


Amazônia
Gado e Soja no Ciclo do Desmatamento (DW)

Agricultura e pecuária pressionam a Amazônia há décadas e são fruto do modelo adotado pelo regime militar para "desenvolver" a região, que já perdeu uma área de floresta equivalente a mais de duas Alemanhas.

Gado em fazenda na Amazônia. Presente na Amazônia desde o século 17, pecuária na região foi incentivada pelo regime militar.

A Floresta Amazônica passou por diversas tentativas de colonização ao longo da história do Brasil, mas foi durante o regime militar que o "desenvolvimento" da Amazônia se tornou uma prioridade para o governo, sob o lema "integrar para não entregar". A ocupação do bioma impulsionou o avanço de fronteiras agrícolas por regiões antigamente cobertas por florestas.
Até a década de 1970, apenas uma área pouco maior do que a de Portugal, que tem cerca de 92 mil quilômetros quadrados, havia sido desmatada na região. Com o discurso de expandir e modernizar, o regime militar impulsionou obras de infraestrutura que se tornaram responsáveis pela devastação do bioma. A construção de estradas na floresta abriu caminho tanto para o chamado progresso como para o desmatamento, que, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2018 já atingia uma área superior a duas Alemanhas: 783 mil quilômetros quadrados na Amazônia Legal.
Cinco décadas depois, Sorriso, no Mato Grosso, se tornou a capital da soja e do agronegócio, e o pasto passou a ser a cobertura que ocupa 80% da área desmatada desde então.
A expansão agropecuária na região ocorreu como um efeito dominó, diz o geógrafo Hervé Théry, da Universidade de São Paulo (USP). O modelo mais comum começa com a abertura da floresta por madeireiros, que levam árvores de maior valor econômico. Em seguida, chegam os pecuaristas e pequenos agricultores.
"Os dois grupos são culpados pelo desmatamento, porém, os grandes têm muito mais meios e fazem mais estragos. Os pequenos se instalam para produzir alimentos para a família e para vender. Depois de um tempo, a fertilidade da terra diminui e eles precisam ir para outro lugar. Geralmente, colocam capim e vendem para os pecuaristas", explica Théry.

Gráficos comparam cobertura florestal na Amazônia entre 1985 e 2017.

Os últimos a chegar neste modelo são os sojicultores, que compram áreas desmatadas utilizadas anteriormente para a criação de gado. Ao longo dos anos, as fronteiras deste ciclo são pressionadas cada vez mais para o norte.

Pasto e gado
Um dos primeiros atores neste processo de expansão sobre a floresta, a pecuária está presente na Amazônia desde o século 17, quando foi introduzida por ordens religiosas. Apesar de ter uma presença histórica no bioma, de acordo com a geógrafa Susanna Hecht, do Instituto Superior de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, em Genebra, na Suíça, a pecuária inicialmente era voltada para fornecer alimento e, apenas após o golpe militar de 1964, passou a ser utilizada para a ocupação de terras.
Em suas políticas de desenvolvimento da Amazônia, o regime militar ofereceu uma série de incentivos legais e fiscais para a expansão da atividade econômica no bioma. Grandes empresas também foram beneficiadas. Um exemplo emblemático foi a fazenda-modelo da montadora alemã Volkswagen no sul do Pará, denunciada na imprensa internacional pelo desmatamento causado na região no final da década de 1970.
Devido à necessidade de pouca mão de obra, à facilidade de implementação e a uma logística mais simples para seu escoamento, a pecuária se tornou a atividade ideal na política de integração do regime militar, explica Hecht. "Historicamente, a pecuária assumiu um papel importante de incorporação de terra, tomando terras públicas e as transformando em propriedades privadas, além de ser um mecanismo de especulação de terra", pontua.

Soja
Anos depois, chegou a vez da soja entrar na Amazônia. Isso só foi possível graças ao avanço de pesquisas agronômicas no desenvolvimento de sementes e técnicas que possibilitaram o cultivo do grão em regiões tropicais. A expansão da commodity começou no sul do país e seguiu avançando para o norte, entrando primeiro no Cerrado e, posteriormente, no bioma amazônico.
"A demanda contínua na década de 1990 e início dos anos 2000 criou uma dinâmica de desmatamento em que a soja substituiu os pastos existentes, estimulando novos desmatamentos para a criação de gado na Amazônia", afirma a cientista política Regine Schönenberg, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

Além do aumento da demanda mundial pelo grão, melhorias na rede de infraestrutura e, principalmente na BR-163, conhecida como rodovia da soja, que liga o Mato Grosso a Santarém, no Pará, impulsionaram a expansão da atividade na região.
Por serem os últimos a chegar neste ciclo, os produtores de soja argumentam que não contribuem para o desmatamento. Na opinião do geógrafo Antonio Ioris, da Universidade de Cardiff, essa retórica é uma falácia devido à sinergia entre os setores.
"Em termos retóricos, pega bem para o setor de grãos dizer que não desmata. Nessa lógica, eles tentam se eximir de responsabilidades. Mas, ainda que muitas vezes não seja o sojicultor que desmata a floresta, o pecuarista desmata sabendo que a terra vai ganhar valor e que poderá vendê-la para o sojicultor”, explica Ioris.
Nesse ciclo, pesquisadores destacam um dos principais fatores que contribuem para continuidade deste processo: a grilagem e posterior legalização destas terras. "Pode demorar um pouco mais ou um pouco menos, mas no final das contas essa terra acaba sendo regularizada, e quem está lá ou seus familiares passam a ser os proprietários", afirma a geógrafa Neli Aparecida de Mello-Théry, da USP.

Clarissa Neher, 15 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.