Maruwai
Abandono do Governo
Malocão de reunião foi
adaptado e hoje também serve como sala de aula para crianças e adolescentes -
Jefferson Ferreira
[Áudio]: https://soundcloud.com/projetoluzevida/maruwai-abandono-do-governo
Você consegue imaginar uma escola sem paredes? Ignorados
pelo governo estadual de Antonio
Denaruim (sem partido), essa é a realidade vivida por milhares de
estudantes em Roraima. Das 32 escolas criadas e credenciadas pelo Estado na
Terra Indígena São Marcos (região norte), 18 atendem estudantes do ensino médio
e, destas, apenas cinco têm prédios construídos.
Uma das escolas "sem paredes", na comunidade de
Maruwai, município de
Pacaraima, na Terra Indígena de São Marcos, conta com 82 crianças e
adolescentes. A Escola Estadual Indígena José Joaquim fica localizada a 150 km
da capital Boa
Vista e também a 150 km de Pacaraima, cidade que faz fronteira
entre Brasil e Venezuela.
Fundada em 1987, inicialmente a escola recebeu o nome de
Elias Fraxe e atendia 20 alunos entre a 1ª e a 4ª séries. Em 2004, a
instituição passou a se chamar Escola
Estadual Indígena José Joaquim, em homenagem a um dos fundadores da
comunidade. Atualmente, atende alunos do ensino fundamental ao médio.
Até hoje, porém, não existe uma estrutura fixa para
a instituição de ensino. A comunidade conta com barracões construídos pelos
moradores e tem sete salas de aulas improvisadas. A estrutura não tem paredes,
o que dificulta a concentração dos estudantes e impede as aulas durante os
períodos de chuva.
Área do posto de saúde que serve como sala de aula improvisada / Jefferson
Ferreira
O único prédio com paredes é o posto de saúde, que também é
utilizado como sala de aula improvisada pelos moradores da comunidade. Um laboratório de informática com dez computadores com acesso à
internet também está, teoricamente, à disposição dos estudantes.
Mas pela falta de estrutura adequada não é possível ter um bom atendimento aos
alunos.
A cozinha da comunidade também foi adaptada para que pudesse
ser usada como sala de aula. Há cadeiras, mas não há suporte ou mesas para que
todos os estudantes apoiem cadernos e livros.
Cozinha da comunidade virou sala de aula improvisada / Jefferson Ferreira
Localizados no centro da comunidade, os barracões de telhado
de palha ficam expostos durante todo o dia a barulhos do cotidiano, como
máquinas, motosserras, roçadeiras e tratores.
Além das chuvas e do barulho externo, os educandos também
sofrem com as pragas que, ano a ano, atingem a comunidade. Pium, carapanã e
maruim são comuns na região.
A falta de estrutura torna o trabalho inviável para os
professores e atrapalha o aprendizado dos 36 alunos do ensino
fundamental I, 35 do fundamental II e 11 do ensino médio. As turmas são
multisseriadas, ou seja, há apenas uma professora para alunos de diversas
séries.
Sala de aula de estudantes adolescentes da comunidade / Jefferson Ferreira
Além da falta de estrutura física, hoje a escola tem
escassez de materiais e livros didáticos atualizados para todas as
séries; não há funcionários na secretaria nem merenda escolar todo
mês.
Há mais de 30 anos, os moradores cobram o básico do governo:
uma escola como qualquer outra.
"Esperamos que a nossa solicitação e o nosso sonho de
muito tempo venha se concretizar, com a tão esperada construção do prédio
escolar completo com sete salas de aulas, diretoria, secretaria, copa,
cozinha, biblioteca, sala de leitura, laboratório de informática com
computadores, internet, sala de professores e miniauditório para reuniões. Que
tenhamos materiais didáticos, materiais escolares, materiais
permanentes, livros didáticos, merenda escolar e transporte escolar.
Também é necessário ter pessoal de apoio, como merendeira, zelador e
secretário. Enfim, uma escola toda climatizada e com banheiros", diz um
relatório sobre a comunidade, elaborado pelos moradores.
Jefferson Ferreira, da etnia Macuxi, é presidente da Associação dos Povos
Indígenas de Roraima (APIRR). Professor e estudante do curso de
Licenciatura Intercultural pela Universidade
Federal de Roraima (UFRR), ele explica que a comunidade se sente
abandonada pelos governos municipal, estadual e federal.
Sobre o governo estadual, conta que apenas os professores são
disponibilizados pelo Estado, ainda assim de forma precária. “O que ele tem nos
dado aqui é o apoio com recursos humanos. São profissionais com contrato
temporário. Apenas três professores efetivos. Todo ano tem seletivo e as aulas
sempre começam atrasadas”, diz Ferreira.
“Sem a escola, nós estamos
abandonados”
Jeans da Silva, da etnia Macuxi, tem 43 anos e também é
morador da comunidade Maruwai. Pai de crianças e adolescentes, ele sonha com a
escola para que seus filhos possam ter uma formação de qualidade. "A
escola é importante para as crianças porque é da escola que temos os nossos
futuros, da escola que vai sair doutores, enfermeiros, médicos, advogados,
professor, grandes lideranças e outros profissionais. Tudo passa pela escola.
Sem a escola, nós estamos abandonados. Hoje a construção da escola é de suma importância
para nossa comunidade", explica.
Sala de aula, diretoria, secretaria e biblioteca improvisados pelos moradores
da comunidade / Jefferson Ferreira
A questão dos profissionais da educação também é
marginalizada pelo governo estadual, segundo Jeans: "Não há espaços
para os professores desenvolverem suas atividades pedagógicas e educacionais.
Não temos apoio de nada, temos apenas os professores do quadro temporário e
isso é uma grande dificuldade para desenvolvermos as atividades todos os anos.
Não tem concurso, o último aconteceu em 2002. Teve outro em 2008,
mas não foi específico para os povos indígenas".
“Não há espaço para os professores
desenvolverem suas atividades”
"Dessa maneira não vamos avançar com a educação, não
vamos ter educação de qualidade que nós tanto esperamos e sonhamos. Atualmente
a nossa escola está abandonada pelo Estado, pelo Município e pela União. Não temos
materiais didáticos, não temos materiais de secretaria, não temos espaços
físicos. As escolas das comunidades são construídas com cobertura de palha. O
Malocão feito pela comunidade para fazer suas reuniões é aproveitado como sala
de aula", detalha Jeans.
A construção da nova escola
Sem ter as demandas atendidas pelo governo estadual, os
moradores decidiram construir a escola por conta própria. Todas as 40 famílias
que moram na comunidade estão participando da obra, que começou há 6 meses. A
meta é que o prédio esteja pronto até o final de 2020.
Mães e pais reunidos no prédio que estão construindo para a nova escola, agora
com parede e telhado resistentes / Jefferson Ferreira
Ivanete Silva dos Santos, também da etnia Macuxi, é mãe de
uma adolescente de 15 anos e está diretamente envolvida na construção da
escola.
Cansada de ver os cadernos do filho molharem durante o
período de chuvas, se juntou aos demais moradores para erguer a escola nunca
construída pelo governo estadual.
Valdinei da Silva Oliveira tem 58 anos e é da etnia
Wapichana. Ele explica que só não está todos os dias trabalhando na construção
da escola porque não é sempre que tem material para a construção. O
telhado está inacabado por falta de telhas para a cobertura. A falta
de cimento, portas e janelas também está atrasando a entrega do prédio.
“Temos profissionais formados e
esperamos o concurso público”
"Sou pai, construtor e professor daqui. Essa escola foi
fundada em 1987 e até hoje não recebeu nenhuma construção que é da competência
do governo. Hoje já temos profissionais formados e estamos esperando o concurso
público", explica Valdinei.
Construção da escola deve acabar no final de 2020. Enquanto isso, as aulas
são dadas no malocão / Jefferson Ferreira
Falta de estradas e pontes deixam os moradores ilhados
As estradas e pontes que dão acesso à comunidade estão em
péssimas condições, o que atrapalha a chegada da merenda escolar e dos
materiais de construção para a escola, além de dificultar a vida dos
professores, que precisam viajar 150 km até Boa Vista para receber o salário.
Com a precariedade, o transporte escolar tem muita dificuldade de acessar a
comunidade e a demora na volta dos professores para o território acaba
atrasando a continuidade das aulas.
A comunidade também se preocupa com os professores que não
tem qualquer segurança para buscarem os salários na capital do estado.
“O governo nunca fez um levantamento
das nossas demandas e produção nas comunidades”
“O governo diz que não constrói estradas e pontes porque os
indígenas não tem produtos agrícolas para o escoamento. Mas isso não é
verdade. O governo nunca fez um levantamento das nossas demandas e
da nossa produção nas comunidades” explica Jefferson Ferreira,
presidente da APIRR.
Segundo ele, o governo não constrói as estradas e pontes por
conta de interesses outros, já que na região há feiras todos os anos - tanto no
Baixo quanto no Médio e Alto São Marcos - onde são vendidos produtos agrícolas
das comunidades indígenas da região.
Jeans explica que para chegar a Boa Vista é preciso
atravessar o Rio Uraricoera, que liga Maruwai à capital de Roraima de balsa, o
que segundo ele é um transtorno. O trajeto conta com um trecho de balsa;
travessia da Ponte do Maruwai que está numa situação precária; e travessia por um
igarapé sem ponte, passando pela Comunidade Pato. “Quando a balsa quebra nós
ficamos ilhados por meses. No período do inverno ficamos isolados porque onde
moramos é de difícil acesso”, explica Jeans.
Merenda escolar
“A merenda escolar não tem chegado de forma correta,
recebemos apenas alguns itens. Quando vem frango, não tem feijão, não tem arroz.
Quando vem arroz, falta leite, falta macarrão. Vem sardinha que é enlatado e
isso não é alimento saudável para nossas crianças. Sempre vem faltando algo
para complementar a merenda escolar. Às vezes chega verdura
toda machucada e sem condições de aproveitamento”, conta Jeans, pai
de crianças e adolescentes que estudam na escola.
Governo Federal
“O governo federal
de Jair Bolsonaro quer tirar o recurso do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) para investir em ação
social. Eu não concordo porque é pouco dinheiro para investir na educação, não
temos dinheiro para comprar merenda, para pagar o professor, e nem pra
construir, o governo quer tirar 5% do FUNDEB nacional para pagar bolsa família.
Não concordo”, pontua Jeans.
Jefferson Ferreira, da APPIR, também discorda das políticas
implementadas pelo governo de Jair Bolsonaro. “Sobre os professores do processo
seletivo, o governo Bolsonaro aprovou lei, que trata da reforma administrativa, onde congela os investimentos e
salários dos trabalhadores. Esperamos o concurso público específico e
diferenciado para os professores indígenas. Mas desse jeito, acho que nunca
vamos conseguir com tantas aprovações no congresso contra os profissionais da
educação. Isso vai impactar o nosso estado e o nosso país”, desabafa.
“O governo federal quer acabar com os direitos dos povos
indígenas, tudo que conquistamos como nosso direito, o governo federal quer
acabar. Está fazendo de tudo para tirar aquilo que é nosso garantido em lei”,
finaliza o presidente da APIRR.
“Vai ter um colapso na educação
escolar indígena”
As entrevistas levaram quase um mês para serem feitas e
enviadas já que as condições de internet na comunidade são muito
precárias. Jeans, emocionado, desabafa para a reportagem do Brasil de
Fato ao fim da conversa: “O Estado de Roraima está abandonado na
educação. Daqui mais uns anos vai ter um colapso na educação escolar indígena
se não cuidarmos enquanto é tempo".
Nota da Secretaria de Educação e Desporto de Roraima
Procurada para responder ao teor da reportagem, a Secretaria
de Educação e Desporto de Roraima enviou uma nota para o Brasil de Fato,
informando que "a educação indígena tem suas peculiaridades, dentre elas,
o direito de a comunidade indígena definir sobre a abertura e formalização de
uma escola, independente de haver uma unidade já em funcionamento próximo à
comunidade. Esse é o caso da Escola Estadual Indígena José Joaquim, localizada
no município de Pacaraima".
Segundo a Secretaria, à época da criação da escola,
"a comunidade solicitou, mesmo sabendo da dificuldade em obter de imediato
um prédio escolar. Hoje a unidade de ensino atende a 80 alunos no Ensino
Fundamental Anos Iniciais (1° ao 5° ano) e Anos Finais (6° ao 9° ano). E tem 15
professores que lecionam o conteúdo estabelecido na legislação educacional
vigente e seguem as diretrizes da educação nacional".
E prossegue a nota oficial: "Em relação à estrutura
física, a Seed informa que o Governo de Roraima está trabalhando para mudar a
realidade dos prédios escolares da rede estadual de ensino tão necessitados de
reformas, reparos e manutenção. Esse é o caso da Escola Estadual Indígena
José Joaquim. Será feito o levantamento da necessidade de estrutura física,
mobiliária e de equipamentos em geral para serem adotadas as medidas, como abertura
de processo, por exemplo".
Sobre a falta de merenda escolar, a nota da Secretaria diz
que Roraima, por conta da pandemia de Covid, segue com aulas remotas, e que
"em período de aula regular, a merenda escolar é a mesma ofertada a todos
os estudantes da rede, com o envio de gêneros não perecíveis e produtos da
agricultura familiar para o preparo da alimentação escolar".
Brasil
de Fato
Martha Raquel e Rogério Jordão
São Paulo (SP), 17 de outubro de 2020 às 10:10hs