Fascismo
Nos últimos anos, “fascista” se tornou um dos adjetivos mais
populares e talvez menos compreendidos do debate político brasileiro. Usado na
maioria das vezes para desqualificar (ou xingar) adversários políticos, a
utilização atual do termo guarda pouca ou nenhuma referência com a ideologia
criada na Itália do início do século XX por Benito Mussolini e que inspiraria
outros extremismos - como o nazismo - e serviria de catalisador para o mais
sangrento conflito de nossa história, a Segunda Guerra Mundial.
Mas o que de fato é o fascismo e quem são (ou eram)
fascistas? Neste vídeo, nossa repórter Nathalia Passarinho primeiro explica as
origens desta ideologia e se ela se enquadra à esquerda ou à direita do
espectro político. Depois, porque alguns pesquisadores identificam elementos do
fascismo em movimentos atuais de extrema direita – e porque alguns consideram
que a ideologia ficou no passado. E no fim, conta como o uso desses termos se
transformou num insulto tão usado na briga política do Brasil e de outros
países.
O que é ser fascista?
Nos
últimos cinco anos, a palavra “fascista” foi usada mais de 400 vezes em
discursos de deputados brasileiros na Câmara. “Eu fui chamada de fascista
indiretamente por uma parlamentar...” (Carla Zambelli). “Todos nós da bancada que
defende a democracia e que se opõe a um governo antidemocrático e fascista...” (André
Figueiredo).
Na forma como ele é usado hoje para xingar adversários políticos, tem pouco ou às vezes nada a ver com a ideologia criada na Itália do início do século XX por Benito Mussolini. Essa ideologia inspirou outros extremismos - como o nazismo - e foi o catalisador para o mais sangrento conflito na história, a Segunda Guerra Mundial. Aliás, o tema voltou aos holofotes na Itália com a chegada ao poder da primeira-ministra Giorgia Meloni, cujo partido tem raízes no fascismo. Mas como fascista virou um insulto tão comum? Precisamos voltar no tempo.
O cenário é a Europa logo depois da Primeira Guerra Mundial. O
conflito sangrento deixou cerca de 20 milhões de mortos, 20 milhões de feridos
e uma Europa destruída. Também sacudiu as instituições políticas da região. Na
Rússia os bolcheviques implantavam a primeira experiência comunista com a
revolução de 1917. Ao mesmo tempo, na Itália, Benito Mussolini, um
ex-socialista, criava o movimento que ficaria conhecido como fascismo. O
objetivo principal era combater o socialismo. O nome se baseava na palavra de
origem latina fasces. Uma espécie de machado com gravetos amarrados usado na
Roma antiga como símbolo de autoridade e unidade do Estado.
Mussolini e seus aliados eram conhecidos como os “camisas-negras”.
Passaram a atuar como um partido na política italiana, mesmo que suas propostas
não fossem muito claras e que, por vezes, não passassem de atos de violência. Para
se ter uma ideia, Mussolini foi questionado certa vez pelo jornal italiano Il
Mondo sobre quais seriam suas principais propostas políticas. Em resposta, o
líder fascista disse: “Nosso programa é quebrar os ossos dos democratas do Il
Mondo, e quanto antes, melhor”.
Em 1921, com poder crescente, o Partido Fascista foi
convidado a integrar a coalizão do governo italiano. No ano seguinte, num
momento de caos político na Itália, os camisas-negras marcharam por Roma. Mussolini
se apresentou como o único homem capaz de restaurar a ordem. Foi assim que ele
chegou ao poder, com apoio de grandes empresários e do Vaticano. Aos poucos
desmontou todas as instituições democráticas. Em 1925, virou ditador e assumiu
o controle de todos os poderes do Estado. O regime parlamentar e democrático
italiano daria lugar a um Estado totalitário, sem liberdades individuais ou
políticas.
Depois do início do movimento fascista italiano, seria a vez
do líder nazifascista Adolf Hitler chegar ao poder na Alemanha em 1933. Hitler
propunha remédios extremistas para os problemas do pós-guerra e culpava
abertamente comunistas, judeus, ciganos e minorias religiosas por essas mazelas.
Em 1920, ele fundou o movimento nazista com bandeiras nacionalistas,
antissemitas, anticomunistas e anticapitalistas.
Em 1932, com a Alemanha em frangalhos política e
economicamente, os nazistas viraram o maior partido do Parlamento. No ano
seguinte, Hitler virou chanceler da coalizão de governo e, como Mussolini,
desmontou as instituições democráticas. Virou um ditador. Em 1939, os fascistas
italianos e os nazistas alemães assinaram um pacto militar, e a Alemanha invadiu
a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. A ascensão de Mussolini e
Hitler fez com que analistas no mundo todo passassem a tentar entender a
ideologia responsável pelo genocídio de milhões de pessoas e por uma guerra que
abalaria as estruturas do mundo todo.
Ao longo de décadas, estudiosos conseguiram identificar
alguns ingredientes típicos do caldeirão fascista. Vou listar alguns: um líder
forte, um contexto de crise socioeconômica, algum apoio das elites
capitalistas, o militarismo, o racismo, o pragmatismo, ou seja, adotar e
abandonar ideias a depender das circunstâncias, o Anti-intelectualismo, o
controle da sociedade, as paixões mobilizadoras, a propaganda, a mentira, o
medo generalizado, a violência, a religião, o anticomunismo e o nacionalismo. Há
dezenas de milhares de livros e artigos em torno do tema.
Mas, nas palavras do historiador americano Robert Paxton, “no
final das contas, nenhuma interpretação do fascismo parece ter conseguido
satisfazer a todos de forma conclusiva”. É que o fascismo tem muita coisa em
comum com outras formas de poder totalitárias, ditatoriais, populistas,
autoritárias e tirânicas. Para Robert Paxton, o fascismo vem da preocupação
obsessiva de um determinado grupo social com a decadência e a humilhação. Disso
surge um partido de base popular formado por militantes nacionalistas, que
recebe algum tipo de cooperação, mesmo que ambígua, das elites tradicionais. O
avanço do fascismo se dá com a rejeição às liberdades democráticas; a limpeza
étnica, uma expansão internacional violenta; e desrespeito às leis e à ética.
No mundo acadêmico e político - inclusive na Itália e na
Alemanha -, há praticamente um consenso de que o fascismo e o nazismo são de
extrema direita. Ou seja, estão no lado completamente oposto do comunismo nessa
espécie de escala ideológica. O próprio Museu do Holocausto em Israel, fundado
em homenagem aos mais de 6 milhões de judeus mortos pelo regime liderado por
Hitler, classifica o nazismo como de direita. O museu avalia que o clima de
frustração após a Primeira Guerra Mundial e a percepção de ameaça do comunismo,
“criou solo fértil para o crescimento de grupos radicais de direita na
Alemanha, gerando entidades como o Partido Nazista”.
Para Kevin Passmore, autor de Fascismo: Uma Breve Introdução,
o fascismo é um movimento de extrema direita justamente porque se opõe com
hostilidade extrema ao socialismo e ao feminismo. O fascismo alega que esses
movimentos priorizam “classes ou gêneros em vez da nação”. Essa oposição
aproxima os fascistas a setores conservadores no campo da direita, que são contrários
a mudanças econômicas, sociais, políticas, morais ou culturais. Mas os
fascistas estão dispostos a ir bem além e atropelar os interesses conservadores
– inclusive família, propriedade e religião – se isso for necessário para
garantir o que enxergam como os interesses da nação.
Por outro lado, um grupo bem pequeno de especialistas elenca
semelhanças entre o fascismo e o comunismo. E parte desses especialistas (e
alguns políticos) se baseia nisso para alegar que o fascismo é de esquerda. O
argumento é que tanto o comunismo quanto o fascismo contestam o capitalismo
liberal e são totalitários, ou seja, controlam todos os aspectos da vida das
pessoas.
O “socialista” no nome do partido liderado por Hitler,
Partido Nacional-Socialista, é frequentemente citado nos debates de internet
que falam no nazismo como um movimento de esquerda. O próprio Hitler comentou o
tema em uma entrevista a George Sylvester Viereck, em 1923. Hitler explicou por
que se declarava um “Nacional Socialista” uma vez que o programa de seu partido
era a antítese do que era comumente associado ao socialismo. Ele respondeu que
queria tomar a expressão “socialismo” dos socialistas.
Estudiosos concordam que associar Hitler ao socialismo não
faz sentido. O linguista brasileiro Izidoro Blikstein, especialista na análise
do discurso nazista e totalitário, explica que a base do nazismo está no termo “nacional”,
não no “socialista”. Ou seja, o mais importante era a defesa do que eles
enxergavam como “próprio dos alemães”. É a chamada teoria do arianismo. “Dizer
apenas que Hitler era um político de direita é apequenar o nazismo. Foi mais do
que direita ou esquerda. Foi uma doutrina arquitetada para defender uma raça,
embora esse conceito seja discutível e pouco científico”, avalia Bilkstein.
Já a historiadora Denise Rollemberg diz que é bastante
complicado classificar o nazifascismo no espectro político atual. Ela explica:
“O nazismo nasce no meio de uma crise
de referências muito grande após a Primeira Guerra. Os valores muitas vezes vão
se embaralhar, e esses conceitos de direita e esquerda atuais não resolvem bem
o problema. (...) Eles rejeitavam o que era a direita tradicional da época e
também a esquerda que estava se estabelecendo. Eles procuravam se mostrar como
um terceiro caminho.”
Isso nos leva a outro grande debate: dá para chamar de
fascista pessoas ou movimentos extremos dos dias de hoje? Ou será que o termo
só serve para se referir àquele contexto do início do século XX? É algo em
discussão no próprio berço do fascismo.
A Itália elegeu em 2022 como premiê Giorgia Meloni, a
primeira líder de extrema direita ali desde a queda de Mussolini. Meloni
rejeita veementemente essa conexão e diz que a ideologia fascista ficou para a
história. Mas ela pertence ao Irmãos da Itália, partido que tem raízes no
movimento fascista e tem como símbolo as chamas tricolores, associadas a
Mussolini.
O cientista político Gianlucca Passarelli explicou essa
aparente ambiguidade à BBC: “O partido dela não é fascista. Fascista significa
chegar ao poder e destruir o sistema. Ela não fará isso, nem poderia. Mas há
alas do partido ligadas ao movimento neofascista. Ela sempre ficou no meio
desses dois lados”.
O historiador Emilio Gentile é considerado o maior especialista
vivo em fascismo na Itália. Para ele, os termos fascismo ou fascista só devem
ser adotados para descrever os movimentos de massa organizados militarmente que
tomaram o poder entre a Primeira e a Segunda Guerra, que negaram a soberania
popular e transformaram completamente a sociedade com objetivos imperialistas. Ou
seja, promoveram a dominação política, econômica e cultural de outros países e territórios.
Seria um erro, na visão de Gentile, usar essas palavras para falar dos
movimentos violentos de extrema direita de hoje. O motivo é que isso nos
impediria de entender o que há de novo nesses movimentos atuais e o perigo que
eles representam, argumenta o historiador italiano. Ele disse: “O problema hoje
não é o retorno do fascismo, mas quais são os perigos que a democracia pode
gerar por si só, quando a maioria da população - ao menos, a maioria dos que
votam - elege democraticamente líderes nacionalistas, racistas ou antissemitas.”
Isso não é um consenso.
O especialista em radicalismo e populismo Federico
Finchelstein enxerga vários paralelos entre o fascismo histórico do início do
século XX e líderes que ele classifica como populistas no século XXI. Esses
líderes costumam se apresentar como solução messiânica dos problemas nacionais e
como representantes autênticos da vontade do povo. Finchelstein argumenta que o
populismo é uma forma autoritária de democracia que reformulou o fascismo
depois do fim da Segunda Guerra, em 1945. Ele, inclusive, cita como exemplos
desse “novo populismo” o trumpismo nos Estados Unidos e o bolsonarismo no
Brasil.
Já que estamos falando de Brasil, vamos relembrar a história
do fascismo no país. Aqui, esse movimento era chamado de integralismo. Inspirada
em Mussolini, a Ação Integralista Brasileira, a AIB, surgiu em 1932 com um
discurso marcado por anticomunismo, nacionalismo, antiliberalismo, defesa do
cristianismo, conservadorismo, corporativismo, antissemitismo e culto ao seu
líder e fundador, o escritor Plínio Salgado. Para ele, o liberalismo
político-econômico e o comunismo eram faces da mesma moeda. O Brasil chegou a
ter quase 200 mil filiados ao movimento integralista, chamados de
camisas-verdes, em alusão aos camisas-negros italianos. Todas as sedes do
movimento eram decoradas com fotos de Plínio Salgado, e cartazes com os
dizeres: “O integralista é o soldado de Deus e da pátria, homem novo do Brasil
que vai construir uma grande nação”.
Para Robert Paxton, a AIB “foi a coisa mais próxima a um
partido de massas fascista nativo da América Latina”. Mesmo depois que o
partido foi extinto por Getúlio Vargas, que Plínio Salgado perdeu uma eleição
presidencial e morreu, em 1975, o integralismo não acabou.
O historiador brasileiro Leandro Pereira Gonçalves explica
que o movimento se pulverizou nos anos 1970 e fez nascer vários pequenos grupos
neofascistas. Um deles reivindicou a autoria de um ataque a bomba contra a sede
do grupo humorístico Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, em 2019. Além disso,
o lema do integralismo, “Deus, Pátria, Família”, voltou à tona como lema da
Aliança Pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro tentou criar, sem
sucesso.
O bolsonarismo, por sua vez, é caracterizado por alguns
pesquisadores como um movimento neofascista ou pós-fascista. Veja a descrição
do historiador argentino Federico Finchelstein: “No Brasil, uma ideologia com
propagandas golpistas, muito próxima do fascismo, tem se intercalado com o
nacionalismo e o messianismo”. Messianismo, nesse caso, seria a crença em um
líder que chegaria para salvar a todos e tornar a vida melhor. A associação do
bolsonarismo com o fascismo, no entanto, é fortemente negada por apoiadores de
Bolsonaro. Veja o que escreveu no Twitter o filho dele e deputado federal
Eduardo Bolsonaro:
“Qualquer um que se oponha ao PT será
chamado de nazista, fascista. Não se trata de um conceito, mas sim uma
tentativa de caluniar o oponente. Tática do vale-tudo! Os rótulos (fascista, negacionista
etc.) não fazem qualquer sentido, não têm conexão com a realidade, apenas
servem para controlar a narrativa.”
Segundo o autor Wilson Gomes, a estratégia política de chamar
adversários de fascistas, genocidas ou comunistas busca o pânico moral e
satanizar os adversários. “Você transforma o adversário, em termos discursivos,
em uma posição inaceitável de um ponto de vista moral”. Será que isso banaliza
o fascismo e o nazismo? É um debate recorrente.
O historiador americano Stanley Payne, um dos maiores
estudiosos do movimento fascista, diz que o fascismo “continua sendo o mais
indefinido dos termos políticos mais importantes”. Aliás, essa indefinição é
ideal para impulsionar o uso indiscriminado do termo – parecido ao que ocorre
com outros termos políticos de difícil definição, como liberal, conservador e
comunista.
Em seu livro Antifascismo, o jornalista e escritor
conservador americano Paul Gottfried argumenta que termos como fascista e
nazista são usados atualmente pela esquerda como instrumento de propagação do
medo. Mas a acusação de fascista não se restringe a políticos ou personalidades
de direita. Até mesmo Lula já foi chamado de fascista por adversários da
direita ou mesmo da esquerda, como Ciro Gomes na campanha presidencial de 2022.
O curioso é que essas referências ao fascismo ou ao nazismo,
além de muitas vezes serem exageradas, academicamente imprecisas e falaciosas,
têm pouco poder de convencimento, na opinião da English Speak Union, ONG
britânica que promove a comunicação e o pensamento criativo.
Amanda Moorghen, pesquisadora da ONG, concluiu que
“Adotar acusações de fascismo como
insulto não ajuda a se aproximar do público nem favorece seu ponto no argumento.
Em vez disso, você aumenta o nível de agressividade do debate, forçando uma
polarização entre 'bom' e 'mau' numa discussão que, por outro lado, poderia ter
posições mais razoáveis dos dois lados”.
Nathalia Passarinho, 7 de janeiro de 2023