quarta-feira, 22 de abril de 2020

Caos Fundiário (DW)


Amazônia
O Caos Fundiário (DW)

É difícil saber a quem pertence cada parte dos mais de 5 milhões de quilômetros quadrados da região. Uma consequência de dois séculos de ocupação e exploração desordenadas, algo que se estende até hoje.

Vista aérea de ônibus em estrada margeada por florestas destruídas. Rodovia Transamazônica, uma tentativa de integrar a Amazônia

Uma fragilidade na gestão do território da Amazônia Legal, que se estende por 5,2 milhões de quilômetros quadrados, é saber quem é o dono de cada parte daquela terra. Apesar do avanço de tecnologias de georreferenciamento e gestão de informação, ainda não há no Brasil um sistema unificado com dados espaciais e cartorários sobre essas terras. Além disso, parte das áreas públicas na região ainda não teve sua finalidade definida, e outra parte sequer foi registrada.
O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), órgão federal responsável pelo ordenamento fundiário nacional, estima que na Amazônia Legal existam 450 mil quilômetros quadrados de terras públicas federais não destinadas, área equivalente a 1,3 vez o território da Alemanha. Essas glebas podem vir a ter funções variadas, como terras indígenas, unidades de conservação, quilombos, áreas militares, assentamentos de reforma agrária ou terrenos particulares.
Além disso, normas e fiscalização ineficazes sobre o registro cartorário de terras favoreceram a multiplicação de títulos fraudulentos. Em 2009, uma análise de cerca de 10 mil matrículas de imóveis suspeitas do Pará concluiu que eles, somados, representavam uma área de 4,9 milhões de quilômetros quadrados – ou quatro vezes o tamanho total do estado, segundo Jerônimo Treccani, professor de direito da Universidade Federal do Pará que participou do levantamento.

Raízes históricas
O caos fundiário na região da Amazônia se explica parcialmente pela história da ocupação de terras no Brasil. Entre a Independência, em 1822, e a Lei de Terras de 1850, houve uma política de acesso livre à terra – os interessados a ocupavam e, depois, pediam a regularização ao governo do Império. Isso beneficiou fazendeiros ricos, que usavam mão de obra escrava para estabelecer o domínio territorial.
Após a proclamação da República, a responsabilidade de organizar os registros fundiários passou para os governos estaduais, que criaram suas próprias normas e órgãos para regular o tema. A partir de 1970, com a criação do Incra, o governo federal voltou a ser responsável pela gestão fundiária de parte do território, e normas e critérios de medição diferentes passaram a coexistir, o que perdura até hoje.
Outro problema foi o modelo jurídico de ocupação da Amazônia adotado pelo regime militar, que estimulou a migração para a região com o objetivo de proteger esse território de supostas ameaças estrangeiras e desenvolver a economia do país.

Fragilidade jurídica na ditadura
Sob os militares, terras de tamanhos variados na Amazônia foram concedidas a particulares, mas eles não recebiam o título de propriedade. No lugar, o governo dava a esses posseiros uma licença de ocupação, vinculada ao cumprimento de certas condições por determinado período, como produção agrícola ou desmatamento de percentual da área. Nesse regime, o título de propriedade seria concedido apenas após alguns anos e se as cláusulas tivessem sido cumpridas.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59

Contudo, o poder público não manteve a estrutura administrativa necessária para fiscalizar essas condições e conceder os títulos posteriormente, e os ocupantes das terras passaram a realizar transações informais para transferir o controle dessas áreas. Segundo Treccani, cerca de 100 mil licenças de ocupação foram concedidas na Amazônia durante a ditadura, mas a conversão delas em propriedade efetiva "foi muito baixa". Esses processos se acumularam, e muitos ainda não tiveram sua situação resolvida.
A principal estratégia de ocupação da Amazônia foi a abertura de estradas no modelo "espinha de peixe": às margens das rodovias, em 100 quilômetros para ambos os lados, eram concedidos a particulares, com ramais aberto mata dentro. Segundo o projeto do regime militar, os lotes à beira da rodovia seriam menores, de 100 hectares, e destinados à agricultura familiar. Atrás dessa primeira fileira, haveria lotes de 500 hectares. Por fim, no fundo dessas faixas, ficariam os lotes maiores, de 3 mil hectares.
Segundo Treccani, esse modelo durou pouco. Com os problemas enfrentados pela principal rodovia aberta na época, a Transamazônica, que ficava fechada durante metade do ano por causa de condições climáticas, e a redução da estrutura do Incra a partir do final da década de 1970, muitos camponeses decidiram deixar seus lotes e o repassaram a outros posseiros. "Hoje você tem as grandes fazendas na beira da estrada, e os colonos, lá no fundo", diz.
A falta de segurança jurídica e de registros precisos também acabou por estimular conflitos de terra, com grandes grileiros tentando se apropriar à força de terras ocupadas por camponeses ou populações tradicionais que não detêm o título de propriedade sobre as áreas.

Tentativa de regularização
Uma iniciativa para reduzir o problema fundiário na Amazônia se deu a partir de 2009, com o programa Terra Legal, que teve apoio da Alemanha, através do Ministério para Cooperação Econômica e Desenvolvimento.

Gráfico mostra desmatamento em estados da Amazônia

O programa tinha três objetivos principais: definir a destinação de áreas públicas federais na Amazônia, emitir títulos de propriedade para regularizar a situação de pequenos posseiros na região e fazer um mutirão de georreferenciamento das glebas.
Em dezembro de 2018, o programa havia emitido cerca de 41 mil documentos fundiários, correspondentes a mais de 150 mil quilômetros quadrados de terras públicas. Desse montante, foram concedidos 24 mil títulos de propriedade para produtores rurais, em sua maioria agricultores familiares, em uma área de cerca de 17 mil quilômetros quadrados.
No governo Bolsonaro, o Terra Legal foi extinto e o Incra assumiu a regularização fundiária na região. O órgão afirma que há hoje cerca de 105 mil processos de regularização fundiária na Amazônia Legal com o georreferenciamento pronto que aguardam análise.

Lacunas nos registros
O sistema de registro fundiário no país começou a melhorar apenas a partir de 2001, quando uma nova lei exigiu que os proprietários registrassem suas terras em cartórios da mesma comarca onde a gleba estava e com o georreferenciamento dos novos registros.
Porém, ainda não há um sistema unificado que reúna a delimitação geográfica dos terrenos e o status jurídico da terra registrado em cartório. Além disso, os governos federal e estaduais não têm clareza de quais áreas estão integradas ao patrimônio público.
No Pará, por exemplo, apenas 20 das 623 áreas incorporadas ao patrimônio do estado nos últimos 30 anos estão no Sigef (Sistema de Gestão Fundiária), um sistema federal que registra as informações georreferenciadas de limites de imóveis rurais, segundo Treccani. Parte das áreas públicas federais também ainda não foi registrada em cartório.
Essa ausência de registro de áreas públicas favorece que particulares tentem declarar como suas partes desses terrenos. Na nova sistemática de regularização fundiária federal, estabelecida em dezembro de 2019, áreas públicas poderão ser transferidas a particulares sem vistoria no local, somente a partir da análise dos documentos apresentados pelo interessado e cruzamento de dados com outros sistemas do governo.

Evolução populacional na Amazônia

"Se eu posso declarar onde eu estou, mas o governo não tem conhecimento pleno daquilo que foi incorporado ao patrimônio público, é provável e quase seguro que o pretendente poderá estar localizado em terras nas quais o Incra ou os governos estaduais não tenham informações seguras do ponto de vista documental e espacial, e é muito possível que haja titulação [aos particulares] de áreas que já foram tituladas [como pertencentes ao poder público] no passado", diz Treccani.
Em nota à DW Brasil, o Incra afirma que está desenvolvendo um novo sistema informatizado para conduzir os pedidos de regularização fundiária que incluiu o cruzamento com outros sistemas do governo federal. O órgão também diz que uma nova versão do Sigef, mais moderna e integrada a outras bases de dados, está em fase de testes e deve entrar em funcionamento até o final de fevereiro [2020].
Em maio de 2016, a então presidente Dilma Rousseff editou um decreto determinando a criação de um novo sistema, o Sinter (Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais), que reuniria todas as informações dos serviços de registros públicos de imóveis, incluindo dados jurídicos registrados em cartórios, informações fiscais apuradas pela Receita Federal e limites georreferenciados de sistemas municipais, estaduais e federais, mas sua implementação ainda não foi concluída.

Mudanças recentes
No início, o Terra Legal tinha o intuito de priorizar a concessão de títulos a pequenos proprietários que estavam em terras públicas antes de 2004. O programa dispensou a realização de vistoria em áreas de até quatro módulos fiscais (cerca de 320 hectares em alguns municípios na Amazônia), concedeu o direito de pedir o título a quem estivesse nessas áreas antes de 2004 e definiu o limite de 1.500 hectares como tamanho máximo do terreno a ser regularizado.
Ao longo do tempo, mudanças nas regras ampliaram o limite de área que poderia ser regularizada e empurraram a data limite da ocupação para mais adiante. Sob o governo Michel Temer, o programa foi estendido a todo o país, o tamanho máximo da área foi ampliado para 2.500 hectares e o prazo de ocupação foi adiado para julho de 2008.
Bolsonaro estabeleceu novas regras na medida provisória 910/19, editada em dezembro. A norma já está em vigor, mas para virar lei deve ser votada no prazo de 120 dias pelo Congresso, que pode alterar ou derrubar o texto. O dispositivo dispensa a vistoria de pré-regularização para áreas de até 15 módulos fiscais (1.400 hectares em alguns municípios na Amazônia) e estende o prazo de ocupação para até dezembro de 2018 se o solicitante pagar o valor máximo pela terra.
Em setembro de 2019, também foi criado o Comitê Gestor de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, que tem recursos provenientes do Fundo da Petrobras para atuar na titulação e regularização fundiária. Segundo o Incra, porém, a mudança na direção do órgão em outubro de 2019 atrasou o início dos trabalhos do comitê, que ainda não tomou nenhuma medida concreta.

Bruno Lupion, 22 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Avanço Ilegal da Soja (DW)


Amazônia
O Avanço Ilegal da Soja (DW)

Maior produtor do grão do país, Mato Grosso vive alta de desmatamento e de ilegalidade. Na safra 2018/2019, 64% das novas áreas plantadas estavam no bioma amazônico.

Plantação de soja no Mato Grosso. A soja ocupa 10 milhões de hectares do Mato Grosso.

Nos campos de soja de Mato Grosso, a temporada de colheita da planta está no fim. Parte da safra, com previsão de render 34 milhões de toneladas, já começa a embarcar rumo ao principal consumidor: China. Em Sorriso, norte do estado, o grão enche os silos, as construções mais altas da cidade. De lá até Sinop pela BR 163, lavouras contínuas de soja se estendem por quilômetros, ocupando até terrenos na área urbana – ao lado de restaurantes, casas e centros de compras.
No principal estado produtor do país, o plantio de soja ocupa 10 milhões de hectares, área maior que Portugal. "O Mato Grosso se desponta devido à estabilidade do clima, tem as estações de chuva e de seca", afirma Tiago Stefanello, presidente do Sindicato Rural de Sorriso e representante da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja).
Em 2019, Mato Grosso também se destacou em outro ranking. Depois do Pará, o estado é o segundo maior responsável pelo desmatamento da Floresta Amazônica. Medições feitas pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) no programa Prodes, que verificou o desmatamento anual de julho de 2018 a agosto de 2019, mostram um aumento de 25% nas taxas de desmatamento em relação ao período anterior.

A produção de soja na Amazônia. Assistir ao vídeo 09:03.

A ilegalidade predomina: em 85% das áreas, o corte foi clandestino. "Mais da metade do desmatamento (56%) aconteceu em grandes propriedades rurais. Foram desmatamentos grandes, facilmente detectados pelo sistema de monitoramento via satélite", comenta Vinícius Silgueiro, coordenador de Geotecnologias do Instituto Centro de Vida (ICV).
Questionado sobre uma possível relação entre desmatamento e expansão da soja, Stefanello diz não acreditar nas taxas divulgadas pelo Inpe. "Tem um monte de parque, de terra indígena que queima e colocam tudo na conta do produtor", responde à DW Brasil.
Onde o corte da floresta foi autorizado, não há dúvidas sobre a intenção de quem desmatou. "Os municípios que lideram o desmatamento legal estão na zona de expansão da soja. É quem tem dinheiro para viabilizar as emissões de autorizações e licenciamento de forma mais rápida", complementa Silgueiro.

Relações indiretas
Pesquisadores rastreiam há décadas a ligação entre o sumiço da Floresta Amazônica e a expansão da soja e apontam que, atualmente, a conversão direta da mata nativa em área de cultivo é menos comum que em períodos anteriores à Moratória da Soja. Declarada em 2006, os signatários do acordo firmaram o compromisso de não comprar soja de áreas desmatadas.
"A influência da soja nessa dinâmica pode ser entendida como indireta, porque seu avanço sobre as pastagens pode estimular o avanço da pastagem para as florestas", comenta Nathália Nascimento, que acaba de publicar um artigo sobre a pesquisa desenvolvida no Inpe.

Infográfico da Produção Global de Soja.

"Alguns estudos recentes apontam que, com a soja ocupando áreas de pastagens, a pecuária busca novos espaços e leva a mais desmatamento", pontua Nascimento. "Mas isso também depende do contexto da região", ressalta.
Stefanello afirma que entre os associados produtores de soja de Sorriso "muito raramente se fala em abertura ilegal". "O que a gente nota e vê, é que a soja está indo para as áreas que eram de pecuária. As pecuárias extensivas que, nos anos anteriores faziam as queimadas, jogavam pasto para o boi, hoje a viabilidade da agricultura é melhor que a pecuária", responde.
De uma forma ou de outra, a lavoura segue rumo à floresta. Na safra 2018/2019, 64% das novas áreas plantadas no Mato Grosso foram no bioma amazônico, somando 144 mil hectares, segundo mapeamento feito pela Universidade Estadual de Mato Grosso, disponível para consulta pública.

Avanço pelo portal
Nomeada a capital do agronegócio brasileiro por decreto federal, Sorriso está no chamado portal da Amazônia. Nesta área de transição entre cerrado e bioma amazônico, o projeto de ocupação populacional iniciado no governo militar atraiu majoritariamente agricultores do sul do país.

Vista aérea de campos de plantação. Plantação de soja na Amazônia: pesquisadores rastreiam há décadas a ligação entre o sumiço da floresta e a expansão da soja.

"Esses colonos foram assentados nessa região, e não teve nenhuma política de assentamento, de treinamento dessas pessoas. O que eles tinham de riqueza era a floresta", pontua Domingos de Jesus Rodrigues, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). "Então tiraram a madeira, depois veio a pecuária e, mais tarde, a soja."
A família de Stefanello chegou nessa época. "As famílias eram obrigadas pelo governo a abrir ou perdiam a terra. Hoje a gente é obrigado a preservar", argumenta.
Foi na década de 1990 que a soja iniciou sua soberania. O trabalho de pesquisa e adaptação de espécies feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) foi fundamental para que o estado se tornasse o maior produtor nacional na safra 2000/2001.

Pressão sobre a agroecologia
Na contramão deste cenário, a poucos quilômetros de Sinop – que também se considera capital do agronegócio e está dentro da Amazônia – os moradores do assentamento 12 de outubro tentam levar a agroecologia adiante.
"Como a gente está nesse local, o portal da Amazônia, a gente tinha mais esperança de produzir de forma saudável", afirma Marciano Manoel da Silva, assentado ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Produtor de hortaliças e vegetais sem uso de agrotóxicos, Silva diz que o assentamento sofre constantes ameaças. "Nós sentimos o cheiro do veneno que é passado ao redor, nas fazendas, de avião. O assentamento a todo momento está sendo seduzido pelo agronegócio, com falsas promessas de pessoas para arrendar sítio e plantar soja", detalha.

Futuro de bom senso
Do campus de Sinop da UFMT, a bióloga Ana Lúcia Tourinho acompanha o mapa do desmatamento com preocupação. "Nós estamos vendo a fragmentação da Amazônia, aumento do desmatamento e do fogo. A perspectiva não é positiva, mas de perdas drásticas", analisa.
Tourinho ressalta que essas perdas acabam reduzindo os próprios serviços prestados pela floresta à economia do país. "A mata nos presta serviços como o de polinização, onde a vida segue acontecendo livremente, sem que a gente precise pagar por isso", detalha.
Além disso, frisa a bióloga, é preciso considerar a íntima ligação entre floresta e produção de água. "As árvores tiram a água do fundo, de graça, e devolvem para a atmosfera", explica, fazendo menção à origem de boa parte das chuvas que caem na região.
O pesquisador da UFMT Domingos de Jesus Rodrigues é categórico: "Se a floresta desaparecer, vai ser uma perda muito grande, principalmente para a população humana. Porque nós teremos desertificação, redução de chuvas, aumento de calor, e isso contribuirá negativamente para a sobrevivência dessas populações", resume as principais conclusões de estudos científicos feitos nas últimas duas décadas.
O bom senso, defende, é que dois lados dialoguem. "Porque precisamos de alimento, mas também precisamos da preservação ambiental", afirma. "A preservação da floresta garante a sustentabilidade do agronegócio", resume.

Nádia Pontes (de Sinop e Sorriso), 21 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Fundo Amazônia (DW)


Fundo Amazônia
Alta Floresta sofre com a paralisia

Comunidades rurais eram as maiores beneficiadas com recursos do fundo. Cidade já esteve em lista inglória de maiores desmatadores e conseguiu virar a página com apoio de projetos bancados pela iniciativa.
   
Pedro Lopes da Silva era garimpeiro, e o projeto financiado pelo Fundo Amazônia mudou sua mentalidade.

O ano de 2020 seria promissor para Pedro Lopes da Silva. Aos 75 anos, ele se preparava para receber novos integrantes de um projeto que, desde 2010, fez brotar florestas do tamanho de mais de 2.700 campos de futebol em cidades do extremo norte de Mato Grosso.
Seria o décimo ano de vida do projeto Sementes do Portal, onde Silva atua desde o início. Em sua nova fase, o plano era dobrar a área de vegetação recuperada e aumentar a renda dos participantes da iniciativa. Seriam mais de 2 mil famílias envolvidas no total, pequenos produtores rurais que coletam sementes e fazem o plantio para restauro da mata e produção de sistemas agroflorestais.
Mas toda a expectativa foi frustrada. Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência e o Ministério do Meio Ambiente paralisou o Fundo Amazônia no início de 2019, o Sementes do Portal parou também.
É do fundo que vem o dinheiro pago pelo trabalho de todas as famílias beneficiadas. Em troca, elas oferecem a garantia de que a Floresta Amazônica não é derrubada – sem terem que devolver o dinheiro investido.
Estabelecido em 2008 com doações principalmente de Noruega e Alemanha, o Fundo Amazônia financiou mais de 100 projetos de combate ao desmatamento e geração de renda no Brasil. Depois de assumir a pasta do Meio Ambiente, Ricardo Salles tentou reformular as regras desse acordo que, até então, era voltado exclusivamente para a proteção da maior floresta tropical do mundo. Até hoje, nenhuma proposta concreta foi apresentada.
Em 2019, ano de alta de 29,5% de desmatamento na Amazônia, o fundo não aprovou sequer um novo projeto. Procurado, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu aos questionamentos da DW Brasil.

Do garimpo ao restauro
Pedro Lopes da Silva chegou à região de Alta Floresta como garimpeiro. A entrada para o projeto fez com que mudasse sua mentalidade. As mãos, que já reviraram a terra e poluíram o ambiente com mercúrio, passaram a coletar e plantar sementes que viraram árvores.
"Tive conhecimento para dar valor ao meio ambiente. A mata, os rios, as águas não são separados da gente, a gente faz parte da natureza", explica. "E também é uma fonte de renda", adiciona.
Na casa de sementes que coordena, os latões de papelão estão praticamente vazios. A essa altura, época das chuvas, o plantio estaria a todo vapor. As famílias estariam recebendo o pagamento pelas primeiras sacas de sementes coletadas.
A paralisia do projeto Sementes do Portal desanimou o grupo. A proposta, que em 2020 entraria na sua terceira fase, foi uma das primeiras aprovadas pelo Fundo Amazônia, em 2010.
"O Fundo era um recurso que realmente apoiava as comunidades nesta região amazônica", comenta Ana Carolina Bogo, do Instituto Ouro Verde, ONG executora do Sementes do Portal.  "Não existem mais recursos disponíveis desta forma, que não exigem devolução do dinheiro", lamenta.
Na casa de Diversina Silveira de Jesus, que faz parte do projeto, o verde começa a voltar nas áreas de nascentes. O assentamento onde mora já funcionou como estoque de madeira que era extraída da mata. A família transformou o lugar numa agrofloresta, com pés de limão, banana e outros frutos.
Aos poucos, ela convenceu o marido a entrar para o Sementes do Portal. José Quadros de Jesus conta que já derrubou muita área de floresta para "patrões" que grilaram terras públicas.
"Eu exerci essa profissão por muito tempo, só derrubando, formando fazenda, plantando capim", admite Jesus. "Era só para abrir, só para segurar as propriedades para o fazendeiro", conta sobre o passado. Hoje, ao lado da esposa, ele diz que gostaria de ajudar a recuperar a floresta que ele mesmo ajudou a derrubar.

Passado inglório
Em Alta Floresta, a história do desmatamento desenfreado estimulou uma mudança de rumo. Em fevereiro de 2008, o município apareceu na primeira lista elaborada pelo Ministério do Meio Ambiente que reunia os maiores desmatadores da Amazônia.
"Isso trouxe uma insegurança jurídica para o município, uma instabilidade, se isso iria inviabilizar a parte econômica, se os produtores poderiam comercializar sua carne", relembra José Alessandro Rodrigues, funcionário da prefeitura.
O ponto de virada foi apostar numa estratégia que recuperasse áreas desmatadas e ajudasse o produtor a legalizar suas terras por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), previsto no Código Florestal. O dinheiro para viabilizar a proposta veio do Fundo Amazônia.
"O projeto Olhos D'água da Amazônia conseguiu efetivar mais de cinco mil hectares de área em parceria com os produtores do município e deu a condição de regenerar essas áreas, ou fazer o restauro, ou fazer sistemas agroflorestais", explica Rodrigues, diretor executivo da iniciativa da prefeitura municipal de Alta Floresta.

O pecuarista Valdemir Rugeri beneficiou-se do plantio de árvores.

Cinco anos depois, Alta Floresta saía da lista inglória. O município tinha cumprido a meta imposta pelo MMA para "limpar o nome": reduzir o desmatamento e regularizar pelo menos 80% das propriedades por meio do CAR.
O pecuarista Valdemir Rugeri foi um dos beneficiados. Perto de uma nascente, a área que reflorestou já tem árvores altas. Desde então, a água passou a correr ali todos os meses do ano.
"No futuro vai ficar melhor ainda porque fica uma lembrança de que já foi ruim, mas hoje se torna uma coisa boa para o nosso município, para o país, e acho que para o mundo", opina.

Futuro incerto
Alta Floresta tenta agora manter essa posição favorável, de cidade que abandonou o desmatamento. Mas, com o fim do Fundo Amazônia, a pressão vem de todos os lados.
"Esse modelo de agronegócio que era mais na área central do Mato Grosso, baixada cuiabana, tem subido e a soja já está muito presente na região. Tem algumas comunidades em que ela já tomou conta", avalia Ana Carolina Bogo. "A gente tem observado isso… Arrendamento de área, as pessoas saindo, a soja vem fazendo essa pressão da saída".
Renato Farias, do Instituto Centro de Vida, lamenta o apoio que a agricultura familiar perde com o fim do Fundo Amazônia. "A nossa região tem um potencial incrível em termos de produção da agricultura familiar. Uma agenda dessa vinculada a um trabalho como o Fundo Amazônia deu um salto muito grande para a região", comenta.
Na casa de sementes da comunidade Jacamim, coordenada por Pedro Lopes da Silva, o desejo é que a movimentação trazida pelos coletores volte. "Eu queria que o Fundo Amazônia continuasse", diz Pedro, antes de fechar o imóvel.
"Praticamente o primeiro recurso chega na mão do coletor de semente. E é um recurso bem distribuído", afirma o coordenador de uma das 12 casas do projeto.

Nádia Pontes (de Alta Floresta), 20 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

domingo, 19 de abril de 2020

Amazônia e Madeira (DW)


Amazônia
O Dilema da Madeira

Especialistas apontam que 50% da madeira retirada do bioma têm origem ilegal, e grande parte é destinada ao mercado nacional. Além de impactos ambientais, a exploração caminha lado a lado com violência.

Caminhão leva madeira retirada da floresta. Parte da madeira explorada ilegalmente na Amazônia é retirada de áreas protegidas.

A chacina em que morreram nove trabalhadores rurais no município de Colniza (MT), em abril de 2017, virou notícia no Brasil e no exterior. Ordenada por um madeireiro conhecido, a emboscada pretendia expulsar os moradores do local e abrir caminho para a exploração ilegal de madeira na região.
Meses depois, um relatório da ONG Greenpeace revelou que as madeireiras do acusado de ser o mandante do massacre – que mais de dois anos depois do crime continuava foragido – operavam normalmente, inclusive a Madeireira Cedroarana que processava madeira para exportação. Apesar da chacina e de indícios anteriores do envolvimento da empresa na exploração ilegal, nos quatro meses após o crime, pelo menos 11 carregamentos foram enviados para os Estados Unidos e a Europa. Na época, entre os seus principais clientes figuravam os EUA, Alemanha, França, Holanda, Dinamarca e Bélgica.
O massacre de Colniza é apenas um entre tantos outros casos da violência enraizados na exploração ilegal de madeira na Amazônia. A dificuldade de rastreamento da origem desta madeira, que acaba sendo legalizada ao longo de sua cadeia produtiva por meio de fraudes e falta de controle, impulsiona um negócio lucrativo e altamente destrutivo.
A Interpol estima que o comércio de madeira ilegal global movimente entre 51 bilhões e 152 bilhões de dólares por ano, ou seja, entre 208 bilhões e 622 bilhões de reais. Um estudo do Instituto Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) de 2016 indicou que, entre 2008 e 2015, um volume equivalente a 590 milhões de reais de madeira, levando em conta o valor da árvore em pé na floresta, foi retirado ilegalmente de Unidades de Conservação na Amazônia.

Mercado interno é o principal consumidor
Embora a exportação costume chamar mais atenção, o principal destino da madeira amazônica é, de longe, o mercado interno, que absorve cerca de 70% da produção. Entre as espécies mais cobiçadas estão ipê, mogno (ameaçada de extinção), cedro, jatobá e maçaranduba. Além de móveis, elas são usadas na construção, na fabricação de embarcações e em pisos.

Infográfico do desmatamento na Amazônia brasileira.

Especialistas estimam que mais da metade da madeira amazônica comercializada tenha origem ilegal. Um estudo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), confirmou uma superestimação no volume de árvores de determinadas espécies em planos de manejos florestais já licenciados, além de erros na identificação de espécies, o que gera créditos falsos de movimentação de madeira.
"Há vários estudos sobre o tema, mas, de maneira geral, todos concluem que mais de 50% da madeira produzida na Amazônia tem origem ilegal", afirma Carolina Marçal, da campanha para a Amazônia do Greenpeace.

Fraudes para regularizar madeira ilegal
Fraudes e falta de controle na documentação impulsionam o "aquecimento" do produto ilegal. Segundo André Campos, coordenador de pesquisa de cadeias produtivas da ONG Repórter Brasil, há uma série de maneiras de burlar o sistema de documentação e controle para legalizar a exploração ilegal.
Entre as fraudes mais comuns está a aprovação de planos de manejo que não condizem com a realidade da área, devido, por exemplo, à quantidade errada de árvores listadas ou ao fato de a área já ter sido completamente desmatada. Teoricamente, o aval da proposta dependeria de uma avaliação, que nem sempre é realizada ou envolve a corrupção de agentes públicos.
A partir deste plano de manejo, os madeireiros recebem créditos florestais correspondentes para a venda da madeira explorada. Campos relata que nesta etapa já houve inclusive casos de ação de hackers para adicionar créditos fictícios a empresas produtoras.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

"O produto vem acompanhado de uma documentação que, teoricamente, atesta a sua legalidade, mas, devido a todos esses processos de fraude e falta de controle, há baixa confiabilidade na comprovação documental. No fundo desse funil, ainda é difícil saber a real origem desta madeira, pois ela passou por várias mãos desde a exploração até a venda", explica Campo. "A ilegalidade entra no mercado legal por conta desta falta de políticas de rastreabilidade", acrescenta.
Parte da madeira explorada ilegalmente é retirada de áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas, e costuma vir acompanhada de violência e morte, como no caso de Colniza. Além de conflitos sociais, essa extração predatória também tem impactos ambientais.
"Quando não há um manejo sustentável adequado ocorre a degradação da floresta, que traz um prejuízo para o equilíbrio daquele ecossistema", diz Marçal.

Problema para quem respeita a lei
Essa atividade irregular também prejudica a exploração legal. "Quem está fazendo tudo certo é quem mais sofre, pois quem age irregularmente acaba vendendo a madeira mais barata por não ter os custos do manejo. Não tem como o manejo ficar em pé se houver essa competição desleal", observa Edson Vidal, especialista em manejo de florestas tropicais da Esalq/USP.
Segundo os especialistas, os primeiros passos para coibir a exploração ilegal são a revisão no processo de licenciamento e o monitoramento de toda a cadeia produtiva até o produto final comercializado. Na primeira fase, Vidal sugere o estabelecimento de métodos mais eficientes para a verificação de planos de manejo, por exemplo, com a utilização de tecnologias de imagens. Outra opção seria o teste de DNA da madeira como uma garantia ao comprador.
Para que essas mudanças aconteçam, diz Marçal, o mercado e os consumidores têm um papel fundamental de pressionar o Estado para garantir a aplicação de procedimentos previstos pela lei e acabar com fraudes que possibilitam o aquecimento da madeira ao longo de sua cadeia produtiva.
"Cabe ao mercado exigir garantias de que a madeira não esteja atrelada à exploração predatória da floresta, à violência e a mortes. O consumidor final deve tentar comprar um produto que tenha minimamente garantia de procedência. A grande responsabilidade, porém, continua sendo do Estado", acrescenta Marçal.

O papel das certificações
Enquanto esse cenário não muda, Marçal recomenda a certificação como meio de oferecer garantias sobre a procedência da madeira. Vidal também considera esse modelo interessante. Os dois pontuam, porém, a pouca quantidade de madeireiras certificadas na Amazônia e seu baixo impacto num vasto mercado.

Vista aérea mostra toras cortadas ilegalmente da floresta amazônica em Anapu, Pará.

Segundo Aline Tristão, diretora executiva do FSC Brasil, das cerca de 2 mil empresas de manejo florestal legal que operaram na região, apenas 15 são certificadas pela FSC. "Menos de 1% da Amazônia brasileira está certificada", ressalta.
Por ser uma adesão voluntária, ela acredita que o rigor e as exigências para adquirir o certificado possam afastar muitos madeireiros. O FSC, Forest Stewardship Council, é uma organização independente, não governamental, sem fins lucrativos, criada para promover o manejo florestal responsável.
Campos, por sua vez, é crítico das certificações. Além de haver casos de madeireiras envolvidas em fraudes com produtos certificados, um dos principais problemas seria a permissão para certificar apenas parte da produção. "Apesar de ser interessante em diversos aspectos, o selo FSC é usado às vezes para vender uma imagem que não corresponde ao grosso do que são os negócios de determinadas empresas."
Tristão pondera que existem mecanismos de controle para evitar o uso incorreto do selo e que é possível garantir a separação de produção. Além disso, a diretora executiva do FSC Brasil ressalta que, se forem comprovadas irregularidades, a empresa perde a certificação. "O sistema FSC tem uma série de critérios, o primeiro é atender às leis, não só ambientais, mas também sociais e trabalhistas, além de acordos internacionais", defende.

Clarissa Neher, 19 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.