Coronavírus
Funai não tem
controle de terras indígenas
Vista área do
Vale do Javari, onde missionários fizeram voos de helicóptero em plena pandemia
de coronavírus Foto: Divulgação/Univaja
O ingresso de missionários em terra indígena com a presença de
povos isolados em meio à pandemia do coronavírus mostra inércia da Fundação
Nacional do Índio (Funai) no controle dessas áreas e revela que o órgão está
entregue a um "proselitismo religioso agressivo" e a um setor do
agronegócio "troglodita". A opinião é compartilhada por dois
ex-presidentes da instituição, Sydney Possuelo e Márcio Meira.
Nesta segunda-feira, O GLOBO mostrou que religiosos da Missão
Novas Tribos do Brasil (MNTB) fizeram voos de helicóptero para o Vale do Javari
sem autorização da fundação, mesmo depois da edição de uma portaria do órgão e
de recomendações do Ministério Público Federal (MPF) de combate ao novo
coronavírus para proteção aos indígenas. Regras da Agência Nacional de Aviação
Civil (Anac) também foram infringidas.
Mais longevo entre os presidentes da Funai, o antropólogo Márcio
Meira (2007-2012) diz que o órgão deveria ir além do procedimento protocolar de
proibir autorizações de ingresso a terras indígenas na crise do coronavírus e defende
ações mais enérgicas do Poder Público e da fundação.
- Aquela região tem forte presença de índios isolados. Do
procedimento protocolar está completamente errado uma vez que vivemos uma
pandemia. A prioridade da Funai hoje é retirar todo mundo de lá. Entrar com a
Polícia Federal e o Ibama e arrancar todos os garimpeiros, madeireiros e
missionários, todos aqueles não indígenas.
O ex-presidente
da Funai Márcio Meira Foto: Funai/Divulgação
Para ele, a crise do coronavírus esconde e ao mesmo tempo
escancara a letargia com que a Funai tem se apresentado diante de questões urgentes
nos conflitos em terra indígena.
- A pandemia do coronavírus está, de certa forma, sendo um biombo
para esconder a ação violenta desenfreada na Amazônia como um todo, não só
contra os povos indígenas, mas também de ambientalistas e lideranças. A mistura
disso tudo com coronavírus é simplesmente terrível.
Na opinião de Meira, o contexto político vivido no país e em
diversos órgãos do governo federal prejudica ainda mais ações efetivas que
protejam os povos indígenas.
- Acho que é uma unanimidade no meio indigenista de que não há,
desde 1988, uma situação pior do que esta de agora contra os povos indígenas,
como estamos vendo neste governo Bolsonaro. O comando da Funai, por exemplo,
foi entregue a grupos do setor do agronegócio mais atrasado, que não tem
compromisso com os direitos humanos e nem o meio ambiente. Não quero generalizar,
eu falo dos trogloditas.
Um grupo de
missionários comprou um helicóptero para explorar áreas indígenas de difícil
acesso e evangelizar índios que ainda não tiveram contato com a civilização.
Órgãos do governo responsáveis pela área dizem que não autorizaram incursão dos
religiosos
O ex-presidente da Funai vê com preocupação a posse de um
missionário ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (Ricardo Dias Lopes) para a
coordenação-geral de índios isolados.
- Esses missionários fazem parte de um segmento de proselitismo religioso
mais agressivo do ponto de vista da imposição, de um discurso de uma religião
sobre a cultura dos povos tradicionais, desrespeitoso.
Meira lembra o episódio da morte de indígenas da etnia Zo’e, no
interior do Pará, quando missionários norte-americanos desrespeitaram as leis
brasileiras e contataram os então nativos isolados.
- Aquele genocídio deu início a uma postura institucional da Funai
que desde então era de proibir qualquer religioso em terra indígena com a
presença de qualquer missionário em áreas de indígenas isolados ou de recente
contato, que é o caso do Javari.
Ao mesmo tempo em que nega ter dado autorização para missionários
entrarem no Vale do Javari, a Funai contemporiza a presença desses religiosos
no local.
"A Funai informa que a presença desta missão na área habitada
pela etnia Marubo refere-se a tempos anteriores à instalação da Unidade
Descentralizada da Funai na região, a Coordenação Regional do Vale do Javari.
Os missionários contam com o consentimento de lideranças indígenas para a
permanência no local", diz nota da fundação enviada ao GLOBO, sem levar em
conta a infração de sua própria portaria.
- A terra indígena é uma terra da União, o órgão responsável por
ela é a Funai. Por esse aspecto jurídico, de domínio e propriedade da terra, o
controle tem que ser da Funai - afirma Meira.
- Ainda que os Marubo tenham sido contactado há muito tempo, por
se tratar de uma terra onde há registro de povos isolados, simplesmente não
poderia entrar ninguém ali sem autorização para praticar proselitismo religioso.
'Se é irregular, tira e bota para fora'.
O indigenista Sydney Possuelo durante expedição com os índios Korubo em 1996. Foto: Arquivo Pessoal.
Ex-presidente da Funai entre 1991 e 1993, o indigenista Sydney Possuelo é considerado uma das maiores autoridades quando se trata de povos indígenas isolados. Ele foi responsável por suspender as autorizações para que missões religiosas entrassem em terras indígenas durante sua gestão e expulsou os missionários da Missão Novas Tribos no episódio dos Zo’e.
- O episódio dos Zo’e foi emblemático. Eu botei todo mundo para fora. Eu cheguei e falei: sai todo mundo daí já, peguem suas coisas e vão embora. Daqui a dois, três dias eu vou chegar com uma equipe e quero todos fora daí. Não está previsto em lei, é tudo irregular, tira e bota para rua. É isso que a Funai tem que fazer - defende.
Possuelo diz que a Funai não tem controle nenhum de quem entra e sai de terras indígenas quando o ingresso é pelos ares.
- A Funai nega a autorização de ingresso e daí? Diz que eles estão lá há tantos anos. E daí? A Funai é o órgão de lei que deve zelar pelos índios. Não ter autorizado não significa que não tenha que ir atrás, saber o que está acontecendo lá no Javari, por que que não houve vigilância? Então, ela que vá à Anac e às autoridades que controlam o espaço aéreo para investigar quem autorizou esses voos. Quem é o piloto? Esse piloto está com a carteira em dia? A manutenção dessa aeronave como estava? - questiona.
Possuelo faz coro ao colega diante da presença de religiosos em
áreas estratégicas dentro da Funai para contato com os povos isolados e de
recente contato.
- Num contexto de pandemia, olha a incoerência de tudo isso! Num
momento que a grande arma para índios e não índios é exatamente o isolamento e
algumas tribos naturalmente estão isoladas, esse isolamento está sendo violado
e quebrado por interesse religioso. É um absurdo. Para você ver o tamanho do
absurdo que nós chegamos é só olhar e ver que temos um missionário na
coordenação de povos isolados da Funai. Nunca um missionário poderia ter um
cargo desses. A menos que a política seja essa: estabelecer o contato. E a
política não é esta, a política vigente é a de não contato - diz.
Segundo ele, falta atitude do Estado e maior controle das
fronteiras e áreas indígenas, que nunca passou por uma fiscalização de qualquer
tipo de autoridade regional.
- O Estado não faz nada porque não quer. Se o Estado quer exercer
a tutela sobre os povos indígenas, se o Estado quer exercer a sua autoridade
sobre o seu patrimônio, pela preservação dos povos indígenas, o Estado
simplesmente age, retira esses missionários e briga na Justiça. O que está
acontecendo é uma "semi-permissão”, o território está semiaberto.
Ele compartilha a opinião de Meira de que invasores de terras se
aproveitam da crise do coronavírus, principalmente na Amazônia.
- Em tempos de coronavírus, a crise serve de pano de fundo para
destruição ambiental. Entre nós e o meio ambiente tem esse véu que se chama
coronavírus, que desvia a nossa atenção enquanto os caras estão lá na Amazônia
destruindo, metendo máquina, acabando com tudo, e a Funai diz "eu não
autorizei" a entrada de ninguém.
O indigenista também critica a postura do governo Bolsonaro em
relação à condução das políticas indígenas.
- Bolsonaro foi o pior inimigo dos povos indígenas de todos os
tempos. O bolsonarismo representa uma política que foi pensada para destruir
todo um histórico da Funai. Tudo que fizemos de bom está sendo destruído - finaliza.
Procurada, a Funai ainda não se manifestou sobre as opiniões de
seus ex-presidentes.
Daniel Biasetto
14 de abril de 2020 às 12:53hs
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