Amazônia
União dos Povos da Floresta (DW)
Com
um passado de trabalho análogo à escravidão, ex-seringueiros se organizam e
viram fornecedores importantes da indústria de cosméticos. Um exemplo de como
lucrar diretamente com uma Amazônia preservada.
Projeto engloba toda a cadeia de produção, desde coleta,
beneficiamento em usina na comunidade e transporte.
No
novo galpão, as máquinas na usina recém-instalada sob o comando de Maria José
Pinto Costa estão prontas para rodar. O fim das chuvas na Amazônia anuncia o
início da produção, que, devido à pandemia do novo coronavírus, precisou de
adaptação.
É da
mata que vem a andiroba e o murumuru, que, sob o comando de Zefa, como Maria
José é chamada, são transformados num óleo valioso vendido para a indústria de
cosméticos. As sacas de sementes vêm da Reserva Extrativista (Resex) Médio
Juruá, no Amazonas, a quase três horas de avião monomotor da capital Manaus.
A
unidade de conservação, que fica no município de Carauari, tem cerca de dois
mil moradores. Muitas famílias chegaram à região a partir de 1900 para viver da
seringa, no auge do ciclo da borracha. Atualmente, mais de 400 famílias, de
dentro e dos arredores da reserva, trabalham na coleta das sementes fornecidas
para a usina.
"Tudo
vem da natureza. A gente depende dela", resume Zefa. "É uma coisa que
a gente preserva muito, tanto a andiroba como o murumuru. Às vezes, derrubam. A
gente não quer isso", comenta ela, na entrada da usina, que fica na
comunidade Roque, a maior da reserva.
Os
contratos de 2020 já estão fechados. Até o fim do ano, a cooperativa formada
pelos coletores deve produzir 20 toneladas de óleo de andiroba e 15 toneladas
de manteiga de murumuru.
"A
gente recebe uns 250 mil quilos de sementes por ano", detalha Sebastião
Feitosa da Costa, presidente da Codaemj, Cooperativa de Desenvolvimento
Agro-Extrativista e de Energia do Médio Juruá. "O óleo é usado em
cosméticos, mas outras empresas estão sinalizando interesse", pontua
Costa, mencionando a indústria do plástico.
Uma
história da independência
Sebastião
Pinto de Sousa, de 64 anos, assistiu ao começo dessa trajetória. Basto, como é
conhecido, nasceu na região e foi um dos responsáveis pela criação da reserva
extrativista, na década de 1990.
A vida numa reserva extrativista na Floresta Amazônica.
Assistir ao vídeo12:03
"Antes
de a reserva existir, a gente cortava seringa, no tempo dos patrões. A gente
era obrigado a vender toda a produção para eles", relembra Basto.
Autoproclamados donos da terra, os "patrões" expulsavam os
seringueiros que não obedeciam às ordens e, em troca do látex, forneciam
alimentos superfaturados.
Na
época, com a influência de setores da Igreja Católica, os seringueiros passaram
a se organizar em busca da liberdade. "Nós soubemos que Chico Mendes tinha
a reserva extrativista lá no Acre", conta Basto.
Emocionado
ao relembrar o assassinato de Chico Mendes a mando do fazendeiro Darly Alves da
Silva, em 1988, Basto diz que a Resex Médio Juruá se espelhou na luta de
Mendes. "Ele teve um papel muito importante", conclui.
Raimundo
Pinto de Sousa, 68 anos, irmão de Basto, também viveu aqueles tempos.
"Hoje, a gente chega aqui, em qualquer comunidade, o cara tem um freezer,
uma televisão, uma geladeira", cita exemplos sobre a melhora da qualidade
de vida. "Só os patrões tinham antigamente. Tudo o que a gente tem hoje,
graças a Deus, nas nossas casas, a gente não deve nada a ninguém".
Saber
tirar, saber deixar
À
frente da gestão da Resex, Manoel Silva da Cunha, filho de seringueiro, cresceu
na região. Dividido entre o trabalho na sede do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (Icmbio), em Carauari, e o monitoramento em campo
dentro dos 2,8 mil quilômetros quadrados da reserva, Cunha conhece bem o rio
Juruá e as 14 comunidades dentro da área.
Quando
iniciaram o plano para extrair sementes, em 2005, havia dúvidas.
Questionava-se, por exemplo, se a coleta de forma mais potencializada poderia
desequilibrar o ecossistema. Quinze anos depois, o gestor comemora. "Hoje,
mais árvores ‘filhotes' crescem debaixo das adultas do que aqueles anos do começo
do manejo", revela.
O
resultado, segundo Cunha, mostra que o uso não atrapalhou o crescimento das
espécies. "E isso a gente sabe que foi baseado nas regras que a gente
criou. Pode coletar, mas não é de qualquer jeito", afirma.
Embora
o desmatamento e o fogo pareçam ameaças distantes que os moradores acompanham
por notícias na televisão, alguns medos são discutidos nas comunidades.
"Isso
das mudanças climáticas, é algo que a gente tem muito medo, de
desequilibrar", diz Cunha. "O que a gente tira como comunidade, como
família de extrativista, vem dos recursos naturais. E se desequilibra qualquer
recurso, é direto na renda da família."
O
segundo ponto na lista de preocupações são ações e projetos mal pensados pelo
governo federal. "E mal planejadas, que podem desestruturar todo um
mecanismo de uma região", diz Cunha, citando como exemplos a construção de
barragens, exploração de gás, petróleo e minério.
Bom
futuro
Eulinda
Martins Fidelis de Lima, moradora da comunidade Nova União, prefere pensar no
que a floresta tem a oferecer. Ela costuma ser a campeã no número de latas
coletadas, medida usada pelos moradores, equivalente a 12 quilos.
"Quanto
mais levantar o preço da nossa produção, para nós é melhor. Quanto melhor o
preço, mais a gente se anima para coletar", comenta, sob pés de murumuru,
dentro da mata, depois de um dia de trabalho na companhia de familiares.
Comunidade Nova União, localizada na Resex Médio Juruá
Na
outra margem do rio, a uma hora de barco, Quilvilene da Cunha, de 25 anos,
jovem líder comunitária, faz parte da primeira turma de universitários do curso
de pedagogia oferecido na região. Neta de pioneiros que fundaram a Resex, ela
quer manter a geração dela unida.
"Nós,
povos da floresta, temos que nos unir, do jeito que o Médio Jurá fez, lutar
pelas coisas que nós mesmos queremos. Por que não têm outros olhares aqui pra
gente preocupados com as dificuldades que passamos", comenta, depois de
uma tarde de aula.
O
futuro está garantido, segundo ela, se a floresta permanecer. "A gente
vive na da floresta. Tira o sustento dela. Então a gente cuida para ter sempre.
E não serve só para a gente que mora aqui, influencia até em outros lugares, que
precisam da chuva, por exemplo", argumenta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário