segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Educação Indígena: USP, FOIRN, NADZOERI (Jornal da USP)

 

USP assina acordo com associações indígenas para colaborar em escolas no Amazonas

 

São Gabriel da Cachoeira - Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real
 

Acordo de cooperação é resultado de 14 anos de parceria entre Faculdade de Educação e povos baniwa-koripako, da região do Rio Negro; atividades servirão à formação docente, assessoria local em política educacional e produção de novos conhecimentos de base intercultural

A Faculdade de Educação (FE) da USP celebrou um termo de cooperação técnica, não com universidades, mas com dois órgãos indígenas sediados em São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Trata-se da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e da Organização Baniwa e Koripako Nadzoeri – integrante da Foirn e responsável pelo Içana, território dos povos baniwa-koripako na região do Rio Negro. O foco da cooperação são ações de educação escolar indígena nessa região do Brasil.

Publicado no Diário Oficial em 2 de setembro de 2022, o acordo foi idealizado pelas associações indígenas em parceria com o Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional (Ceunir), da FE. Prevendo intercâmbios com docentes, pesquisadores, estudantes, técnicos e líderes das três entidades, o acordo também propõe ações conjuntas de pesquisa, ensino e extensão. Essas atividades servirão à formação docente, à assessoria local em política educacional e à produção de novos conhecimentos de base intercultural, em colaboração com as comunidades federadas à Nadzoeri e à Foirn.

Para o professor Elie Ghanem, coordenador do Ceunir, a importância da iniciativa é dupla. “Além de estender a capacidade de atuação da Feusp para fazer interlocuções, extensão e pesquisa no Alto Rio Negro brasileiro, traz para a atenção da faculdade a riqueza e atualidade dos conhecimentos, problemas e inovações que se podem encontrar nas escolas indígenas contemporâneas – objetos de atenção crescente nas mais diversas áreas de pesquisa científica”, afirma. Além disso, o professor ressaltou que “enquanto a cooperação acadêmica costuma se limitar aos arranjos entre instituições de educação superior, a parceria da FE com a Foirn e a Nadzoeri intensifica relações entre a USP e as organizações da sociedade civil, beneficiando uma rede com dezenas de escolas indígenas municipais e estaduais”.

O acordo tem duração de cinco anos, podendo ser renovado. “[O ato] reflete a intenção de uma parceria científica duradoura com esses grupos indígenas, já que as relações de colaboração que o documento reconhece foram impulsionadas – e impulsionaram – linhas de pesquisas em Educação Escolar Indígena”.

 

Padrão do catálogo de obras de Denilson Baniwa. Disponível neste link.

Trabalho de campo em 2018 na Escola Baniwa Eeno Hiepole, comunidade Canadá, bacia do Içana. Ao centro, em pé: Diana Pellegrini, Elie Ghanem e Antônio Góes Neto, pesquisadores do Ceunir. Ao centro, ajoelhado, Nelson Thomé Baniwa, então coordenador da escola, acompanhado dos colegas docentes e de estudantes do ensino médio - Foto: Arquivo Ceunir

 

Parceria formalizada

São Gabriel da Cachoeira, já alcunhada “a cidade mais indígena do Brasil”, situa-se no extremo noroeste do Amazonas (na região apelidada Cabeça do Cachorro) e faz fronteira com a Colômbia e a Venezuela. É o município de referência da chamada área etnográfica do Alto Rio Negro. Ali, vivem mais de 20 etnias e falam-se 19 línguas, num complexo sistema regional. Essa variedade de povos configura redes ancestrais de relações e trocas culturais, econômicas, matrimoniais, linguísticas, ecológicas, sociais e cosmológicas.

A colaboração da FE com órgãos indígenas e indigenistas de São Gabriel em temas de educação escolar e política educacional remonta a 2008, quando o professor Elie Ghanem, hoje coordenador do Ceunir, prestou assessoria à elaboração do Plano Municipal de Educação local. De acordo com informações do centro, havia intenso e qualificado apoio da prefeitura e de parceiros nacionais e internacionais para a criação de projetos escolares experimentais. Na época, a discussão se dava em nível comunitário para que os projetos fossem implantados nas escolas – todas indígenas – da ampla rede pública municipal. Essa experiência, com seus sucessos, dificuldades e transformações, veio a se tornar emblemática entre os casos-modelo da chamada “educação escolar indígena diferenciada”, bandeira reivindicada pelos grupos originários desde a Constituição de 1988.

Seguiram-se, a partir de 2011, pesquisas coordenadas por Ghanem, com fomento da Fapesp e do CNPq, das quais resultaram as primeiras dissertações, teses e artigos produzidos na convivência com escolas e comunidades kotiria, tuyuka, baniwa-koripako. O mais recente ciclo, realizado entre 2018 e 2021, destinado a identificar atores e condições-chave na seleção dos saberes a ensinar, envolveu cinco escolas baniwa-koripako do rio Içana e afluentes, além de ampliar comparações para escolas guarani de São Paulo e guarani-kaiowá, do Mato Grosso.

“As conversações levaram ao todo cinco anos. Os trâmites foram reanimados depois que se atravessaram os períodos mais difíceis da pandemia no Amazonas e em São Paulo. À distância, os laços se fortaleceram no enfrentamento solidário da crise e no luto diante da perda de eminentes lideranças do rio Negro pela covid-19, como foi o caso do diretor da Foirn Isaías Fontes, baniwa, que estivera presente e ativo nas reuniões preliminares sobre a cooperação”, afirmam os pesquisadores do Ceunir.

 

O professor Juvêncio “Dzoodzo” Cardoso faz a assinatura solene do Termo de Cooperação da Nadzoeri-Foirn com o Ceunir na Escola Baniwa Eeno Hiepole, comunidade de Canadá, rio Ayari, bacia do Içana - Foto: Lay Cardoso

 

Desenvolvimento Sustentável


Dos encontros na Maloca da Foirn, em fev. 2020, participaram lideranças baniwa como André Fernando, Juvêncio Cardoso, Isaías Jairo da Silva, Nelson Thomé, Isaías Fontes, Mônica Apolinário e Bonifácio José, além de outros professores e acadêmicos indígenas, dos pesquisadores do Ceunir e de parceiros convidados - Foto: Juvêncio Cardoso

 

Depois da publicação no Diário Oficial, as entidades inauguraram uma agenda de diálogo para detalhar os planos de ação de forma participativa. As partes devem buscar juntas fontes diversas para custear as atividades.

“Essa parceria tem a perspectiva de subsidiar e fortalecer a implementação de ações dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental dentro do território indígena, visando sempre o desenvolvimento territorial sustentável indígena, como parte da política nacional”, afirma o professor baniwa Juvêncio “Dzoodzo” Cardoso, coordenador da Nadzoeri. Ele se refere à Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) de Terras Indígenas, instituída pelo Decreto nº 7.747/2012. O primeiro PGTA dos Baniwa-Koripako, começado em 2015, foi concluído e publicado em 2021 e confere uma importância estratégica à educação escolar.

Cardoso lembra que o acordo surge de uma antiga e cuidadosa caminhada conjunta. “Todo esse processo de construção está de acordo com os nossos protocolos de consulta, respeitando as convenções da Organização Internacional do Trabalho e a consulta livre e esclarecida. Essa parceria resulta de um longo processo, e o mais importante é que ela vem pela demanda da Nadzoeri. Já existe um histórico de envolvimento”, lembra.

 

Próximos Passos

A jovem comunicadora baniwa Lainice Cardoso, de 13 anos, estudante do 8º ano na Escola Baniwa Eeno Hiepole – situada na comunidade Canadá, no remoto rio Ayari, afluente do Içana –, publicou fotos da assinatura do Termo de Cooperação nas redes sociais: “Os estudantes e professores da Escola Baniwa Eeno Hiepole comemoram o momento de assinatura do Termo de Cooperação Técnica e estão confiantes e esperançosos com essa construção de parceria. Estamos assim fazendo e marcando um novo momento na história da Educação Escolar Baniwa e Koripako, junto com os demais 23 povos indígenas do Alto Rio Negro”, escreveu.

O próximo marco deste desafio será o sexto FNEEI (Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena), que acontece de 30 de novembro a 3 de dezembro em Brasília, e entregará à equipe de transição do governo Lula suas reivindicações para as escolas indígenas diferenciadas. “Será a oportunidade de recuperar os recentes retrocessos, reconstruir e consolidar direitos, ouvindo as diferentes vozes do movimento indígena contemporâneo. Eventos como o Fórum expressam o grande empoderamento do movimento dos professores, lideranças e comunidades indígenas, que atualizam suas reivindicações e direitos educacionais, cada vez mais fortalecidos e instrumentados para uma interlocução qualificada com os poderes públicos e outros atores institucionais”, afirmam os pesquisadores do Ceunir.

“Para nós, é um privilégio e um constante aprendizado trabalhar nessa perspectiva fortemente participativa das parcerias com a Foirn e a Nadzoeri, porque os processos de consulta ampliada na formatação dos projetos só enriquecem tanto as vivências quanto o conhecimento produzido”, destaca Ghanem. Ele afirma que projetos de futuro nesta região elevam o desafio de produzir resultados científicos, institucionais e educacionais relevantes para essas populações.

Em São Gabriel, a iniciativa pretende lançar convites a professores, estudantes, lideranças, gestores educacionais, entidades parceiras, docentes universitários e pesquisadores. A ideia é desenvolver atividades que criem, com as redes locais de atores educacionais, espaços plurais de diálogo, estudo, qualificação profissional e debate científico e social.

 

Ceunir

Criado em 2015, o Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional (Ceunir), da FE, constituiu as linhas de ação e a rede de pesquisadores em um processo colaborativo. Em sua forma atual, o grupo tem mais duas linhas de investigação, além da Educação Escolar Indígena: as pesquisas em Educação e Direitos Humanos, e em Tendências em Inovação Educacional.

Os trabalhos de campo do Ceunir envolvem a prestação de assessoria a equipes escolares, bem como oficinas com docentes, lideranças, estudantes e outros públicos. As atividades são planejadas processualmente, em conjunto com os grupos locais. Essa abordagem, ao mesmo tempo em que fornece uma contrapartida mais direta à colaboração das comunidades nas investigações, cria novas chances de convivência, de compreensão, de observação participante e de coleta de informação.


Elie Ghanem é coordenador do Ceunir - Foto: Divulgação / IEA - USP

Saiba mais: https://www4.fe.usp.br

 

Jornal da USP

Tabita Said com informações de Diana Pellegrini e Elie Ghanem

28 de novembro de 2022.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Isolados: Proteção (Cenarium)

Em decisão histórica, STF determina que governo federal adote medidas para proteção dos povos indígenas

 

MANAUS – Acatando integralmente o pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin determinou que o governo federal tome todas as medidas necessárias para garantir a proteção da vida e dos territórios com presença de povos indígenas isolados e de recente contato.

A decisão foi divulgada na quinta-feira, 24, pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), que apoiou com subsídios técnicos e jurídicos a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) movida pela Apib.

“Considera a ação um marco na defesa dos direitos desses grupos indígenas e também uma continuidade do trabalho do fundador da organização, o indigenista Bruno Pereira, assassinado em junho de 2022 no Vale do Javari”, destacou o Observatório em texto publicado no seu site oficial.

 

Fotógrafo registra momento raro de índios isolados no Estado do Acre (Ricardo Stuckert)

 

A ação elenca sete obrigações impostas à União, à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), todas acatadas por Fachin. O ministro considerou a legitimidade da ADPF 991, por estar embasada no cumprimento de política específica aos povos indígenas isolados e de recente contato.

“Pondero que este caso demonstra justamente que a separação entre os Poderes e a política democrática muitas vezes são invocados como escusas para impedir a atuação, em especial diante da inércia intencional e sistemática dos demais Poderes, de quem deve guardar a Constituição”, considerou Fachin.

Os povos indígenas isolados são aqueles que não mantém contatos intensos ou constantes com pessoas de fora de seus coletivos. Geralmente optam por viver longe da sociedade externa por terem sofrido perseguições e massacres durante os processos de ocupação e colonização na região amazônica.

Já os povos de recente contato são aqueles que mantém contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos da sociedade nacional, mas conservam significativa autonomia sociocultural.

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, historicamente esses povos sofreram genocídio e etnocídio, estando sujeitos a vulnerabilidades que colocam em risco sua própria existência.

“Muitos territórios com a presença de isolados apresentam demora injustificada de demarcação, dependendo de atos administrativos precários como as portarias de restrição de uso, com breve validade. Do mesmo modo, as Bases e Frentes de Proteção Etnoambiental são ameaçadas cotidianamente pela presença dos mais variados invasores nos territórios indígenas, sendo eles: madeireiros, garimpeiros, pescadores, caçadores, narcotraficantes, missionários, latifundiários e grileiros”, destacou a Apib na ação judicial.

Decisão

Ao todo, no processo, foram deferidas sete medidas cautelares. O ministro Edson Fachin considerou que não estão sendo efetivamente realizadas as políticas públicas para a proteção dos povos indígenas.

“Compreendo cabível a provocação desta Corte como última trincheira de guarda desses direitos mais básicos a sobrevivência digna. Não se trata de usar o Poder Judiciário e o STF como espaço constituinte permanente, mas sim como um Poder que atua majoritariamente para a guarda da Constituição e a proteção de direitos fundamentais que vêm sendo sistematicamente violados pelos Poderes que lhes deveriam dar concretude”, escreveu em seu despacho.

 

O ministro do STF Edson Fachin durante sessão plenária (Rosinei Coutinho/SCO/STF – 11/03/2020)

 

Além de determinar que a União adote todas as medidas necessárias para garantir a proteção integral dos territórios com presença de povos indígenas isolados e de recente contato, a decisão determina ainda que seja apresentado, no prazo de 60 dias, contados inclusive durante o recesso forense, um Plano de Ação para regularização e proteção das terras indígenas com presença de povos indígenas isolados e de recente contato.

Conjunto à apresentação do Plano, deverá ser comprovada a existência dos recursos necessários para a execução das tarefas descritas, principalmente as consideradas prioritárias e mais urgentes.

A União também terá até 60 dias para emitir Portarias de Restrição de Uso para as referências de povos indígenas isolados que se encontram fora ou parcialmente fora de terras indígenas, bem como elaborar planos de proteção das referidas áreas, sob pena de, em não se cumprindo o prazo, o STF determine a Restrição de Uso por decisão judicial.

Estão obrigadas, conforme a decisão, União e Funai a manter a Portaria de Restrição de Uso nº 1.040, de 16 de outubro de 2015, do Grupo Indígena Tanaru até o final do julgamento de mérito da arguição.

Ao CNJ, no âmbito do Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, o ministro determinou a instalação de um Grupo de Trabalho, com prazo indeterminado, para acompanhamento contínuo de ações judiciais relacionadas a efetivação dos direitos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato.

Ainda conforme Fachin, deve ser reconhecida pelas autoridades a forma isolada de viver como declaração da livre autodeterminação dos povos indígenas isolados.

 

Palhoça construída pelo ‘Índio do Buraco’, que ao longo da vida construiu 53 casas (Acervo/OPI)

 

Por fim, o ministro estabeleceu no prazo de dez dias à União para prestar informações sobre a situação do indígena da etnia Tanaru, conhecido como ‘Índio do Buraco’, recentemente falecido em seu território. Devem ser disponibilizados documentos comprobatórios da perícia, a fim de comprovar os procedimentos utilizados e do resultado da autopsia realizada no cadáver do indígena, bem como a destinação que se pretende dar à Terra Indígena Tanaru.

Veja a decisão de Fachin na íntegra:

https://revistacenarium.com.br/wp-content/uploads/2022/11/decisao-monocratica-21.11.22.pdf

 

Agência Cenarium

25 de novembro de 2022 às 19h26

Alita Falcão – Agência Amazônia