terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Brasil e os Brics (Gazeta do Povo)


Brasil e os Brics
Perspectivas econômicas



Bolsonaro comanda sessão plenária da 11ª Cúpula de Líderes do Brics: parceiros pedem que a ONU preste mais atenção ao Brasil como ator político importante. Foto: Alan Santos/PR

O Bric de 2006 e depois Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) a partir de 2010, fez sua 11ª reunião de cúpula em Brasília-DF entre 13 e 14 de novembro de 2019. Dentre as 196 nações do mundo, este seleto quinteto inclui quatro das maiores potências econômicas do mundo e a maior delas (China) só é ultrapassada pelos Estados Unidos da América. A cúpula se deu entre Presidentes (B, R e C) e Primeiros Ministros (I e S) e respectivas comitivas.
Os dados demográficos de 2019 apontam: China, 1,43 bilhões de habitantes; Índia, 1,37; Brasil, 0,21; Rússia, 0,15 e África do Sul, 0,06; no total 3,22 bilhões de pessoas ou seja 42% de toda a população mundial. A maior potência do planeta, os EUA, tem 0,33 bilhões. China e Índia são os dois países de maior área, com 9,7 e 3,3 milhões de km2. A segunda, juntamente com o Paquistão, está geograficamente colada à China. Esta fez construir uma das maravilhas do mundo, ligando-a ao último (que tem 217 milhões de habitantes): Karakoram, a rodovia mais elevada do mundo, pavimentada com dupla mão e quatro pistas; 1.300 km rasgando trechos do Himalaia e seus vales. Uma muito mais curta ramificação a sudoeste faria a conexão tríplice com a Índia. Há dezenas de reatores nucleares operando nestes três países. São ditos para a geração de energia elétrica. Mas também podem se prestar a artefatos bélicos. A união futura do trio na busca de hegemonia econômica mundial é uma perspectiva a se considerar, pois a China, per se, já persegue este objetivo e progressivamente o vai alcançando.
Detenhamo-nos um pouco mais no gigante dos gigantes. Das Dinastia Shang-Zhou (1600 a 256 A.C.), passando por numerosas outras até a mais moderna Qing (1644 - ...), a China deixou um legado muito mais além da acupuntura e soldados-bonecos de terracota. O país foi berço de grandes invenções como a seda e sua tecelagem, a pólvora, a bússola, a tecnologia de fabricação de papel, um primeiro livro em papel de cânhamo e precursor artesanal para linotipia, a goma-laca. Achados arqueológicos revelam dezenas de outros inventos. Em solo chinês se domesticou a soja para fins alimentares. Seguiu-se, então, muito tempo de obscurantismo social e econômico chinês. Nas últimas cinco décadas a China experimentou a mais notável evolução econômica dentre todos os países. De 1968 e um PIB de US$ 0,07 bilhões e um PIB per capita de apenas US$ 91 evoluiu em 1998 para US$ 1,03 trilhões e US$ 829; as cifras de 2018 foram de US$ 13,4 trilhões e US$ 9.370. Somente sobrepujada pelos Estados Unidos com um PIB de 2018 na casa dos US$ 20,49 trilhões e, portanto, um per capita de US$ 62.600. O Brasil muito mais aquém com um PIB de US$ 1,87 trilhões, correspondendo a cada brasileiro US$ 8.905/ano.
Afunilemos o foco em minerais raros, mas é preciso não confundir o elenco de metais raros tipo neodímio para fins tecnológicos modernos com outros minerais de muito maior valor comercial tais como jadeíta, diamante vermelho, serendibita, granada azul e rubi, todos como os mais finos itens de joalherias, nos quais, cada quilate (200 mg) pode custar entre 1 e 3 milhões de dólares.
É de dezessete o número de minerais considerados raros e esta definição tem a ver com suas propriedades físicas e químicas muito peculiares, o que os torna então úteis para aplicações especializadas tais como telefones celulares, computadores, magnetos, lasers, mísseis, aviões invisíveis de combate, óculos de visão noturna e dispositivos hápticos (botões de toque em videogames). Alguns mais conhecidos e já com aplicações bem estabelecidas são o neodímio (magnetos robustos de multi-aplicações desde ferramentas para joalheria, braçadeiras de solda, filtros de óleo, geolocalizadores, ferramentas de montagem e mesmo em aeronáutica espacial para roupas antigravitacionais e coleta de poeira em outros planetas); cério (liga de ferro maleável, polimento de vidros, iluminação via arco-de-carbono na indústria cinematográfica, estocagem de hidrogênio via hidreto); tântalo (anticorrosivo em ligas metálicas e refratários; substituto da platina); hólmio (gerador do mais intenso campo magnético artificial e laser; absorvente de nêutrons da fissão nuclear e moderador nos reatores nucleares; o óxido amarelo na coloração de vidros); ítrio (incrementador da resistência de ligas de alumínio e magnésio; filtro de micro-ondas para lasers; liga de alumínio e ítrio em laser cortador de outras ligas metálicas); térbio (liga para aumentar campos magnéticos; dopador de outros sais para aparelhos de estado sólido; estabilizador de cristal em células combustíveis) e gadolínio (ligas de ferro e cromo para incrementar a resistência a altas temperaturas e oxidação; aplicações de micro-ondas; televisores a cor; como corante de contraste, aumenta e aperfeiçoa as imagens de ressonância nuclear magnética)
Na medicina moderna de diagnóstico por imagens uma das técnicas mais consolidadas é a Ressonância Magnética Nuclear (RMN). No aparelho a fiação do magneto supercondutor tem alguns Km de comprimento e é constituída de uma liga metálica complexa de nióbio, tântalo, titânio e estanho [(NbTaTi)3Sn], a qual, por ser quebradiça, é embebida em cobre para garantir-lhe um reforço. O nióbio tem ainda numerosas aplicações estratégicas tais como aços reforçados na construção de oleodutos, motores e turbinas de aviões a jato, baterias de carros elétricos, lentes óticas, aceleradores de partículas, juntas e implantes ortopédicos, ferramentas de corte, marca-passos e equipamentos de alta resistência ao calor. A cotação internacional gira em torno de US$ 150/kg.
O Brasil detém a quase totalidade das reservas de nióbio do mundo. Suas minas principais estão em Araxá e Tapira, Minas Gerais (75%) operada pela Cia. Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM) e o mineral nativo é a carbonatita (1,5 a 3% de óxido Nb2O5). Segundo a Revista da Fapesp, a mina é de propriedade da família Moreira Salles, coproprietários do Itaú-Unibanco, sendo que 30% foram vendidos a fabricantes de aço chineses, japoneses e sul-coreanos. Outras jazidas estão em São Gabriel da Cachoeira e Presidente Figueiredo no Amazonas (21%) e Catalão e Ouvidor, em Goiás (4%), esta operada pela CMOC Intl. Brazil, uma subsidiária da chinesa China Molybdenum. A reserva total brasileira está estimada em 842 milhões de toneladas métricas. Se espera que, por conta da demanda internacional, a exploração do nióbio amazonense, sob firme supervisão e instrução dos órgãos governamentais pertinentes, resulte por 51% em favor dos indígenas, evitando que em um futuro mais distante, tal qual seus congêneres estadunidenses, se ocupem de cassinos e bebidas alcoólicas.
Os minerais brutos mais comuns englobando terras raras são a monazita e bastnasita. No conjunto, a China detém as maiores reservas do mundo (37%) e, de acordo com USA Geological Survey, ela produziu, em 2018, cerca de 70% de todos os minerais então consumidos internamente e exportados mundo afora. Este mesmo serviço yankee qualifica a exploração de metais raros como “um negócio sujo”, por conta da dispersão das rochas e os meios físicos e químicos drásticos para alterar a ocorrência nativa na direção comercial. Além do que as jazidas usualmente têm um material radioativo – tório – associado aos metais de interesse mais imediato. Austrália, Brasil, Índia e África do Sul também tem boas reservas de minerais raros. Um trio dentro do quinteto BRICS. Os Estados Unidos dispõem apenas de cerca de 1% do elenco das terras raras de maior interesse.
Um adendo radioativo: o potencial do tório (Th) para reatores nucleares à prova de fusão, ou seja, sem acidentes do tipo Chernobyl (Ucrânia) ou Fukushima (Japão). O defensor entusiasmado da ideia é Pedro Jacobi (“O portal do Geólogo”). China, Japão, Inglaterra e Austrália estão nesta mesma seara, pois, o ponto de fusão dos sais de tório é muito mais elevado do que daqueles de urânio e um reator nuclear a Th opera a mais baixa pressão. São os chamados LFTR – Reatores movidos a fluoreto de tório líquido e com menor custo operacional, maior segurança e estabilidade. Os resíduos nucleares são mais facilmente neutralizados e processados sem prejuízo ambiental. Há muito tório nas areias monazíticas das praias brasileiras.
Segundo dados do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e com base em pesquisadores do Departamento de Geologia da UFMG, no Brasil existem muitas dezenas de ocorrências de reservas/depósitos tanto de tório quanto de urânio em pelo menos duas dezenas de municípios. A torianita nacional, com um conteúdo de 7% de tório, se situava em 600 mil toneladas, uma das maiores reservas do mundo. As praias do estado do Espírito Santo e suas areias monazíticas são de maior importância. O país com tecnologia mais avançada em reatores nucleares a tório é a Índia (e.g., reatores Kamini, Bhabha e Kakrapar) e também detentora de grandes reservas deste material nuclear. Incidentalmente, a Índia é parceira do Brasil no Brics.
O tório nativo (Th-232), mais comum que o urânio, não é físsil e assim se torna (Th-233) sob bombardeamento com nêutrons. Vantajosamente em relação ao urânio que gera plutônio também radioativo, o tório leva a produtos, quando do descarte do reator, com tempo de meia vida mais curto. O tório (não radioativo) é o revestimento ideal para fios de tungstênio (equipamentos eletrônicos), aditivo para incrementar a resistência mecânica e a altas temperaturas do magnésio e cadinhos de laboratório de análises químicas e aditivo para vidros para elevar o índice de refração com baixa dispersão, além de ser eficiente catalisador em processos industriais tais como o craqueamento de petróleo.
Todavia, as usinas nucleares de geração II (as mais comuns) são numerosíssimas e fazem uso de urânio enriquecido (U-235): são 99 nos USA, 58 na França, 34 na Rússia e 24 na China. Japão e Alemanha estão em processo de desativação das suas. O Brasil conta apenas com Angra I e II e ainda patinando com Angra III. As pastilhas já gastas no reator se convertem em várias formas residuais igualmente radioativas. As sucessivas conversões de enriquecimento do urânio minerado são seus óxidos (UO2 e U3O8) e seu fluoreto gasoso (UF6), por fim reconvertido em dióxido enriquecido (UO2) cujas pastilhas alimentam o reator e de lá, consumada a fissão, saem na forma de vários produtos também radioativos dentre os quais U-234, neptúnio-237, amerício-241 e plutônio-238, este último com tempo de meia vida de 88 anos comparados ao primeiro, 245 anos. No elenco das mais modernas plantas nucleares em construção, de geração III, a China, Rússia e Índia com 25, 9 e 6, respectivamente.
A Austrália detém a maior reserva de urânio do mundo (1,78 milhões de toneladas), seguida do Cazaquistão (0,94) e Canadá (0,7). Coincidentemente o elenco das reservas de países ocupando desde a 4ª até 8ª posições mundiais são exatamente aqueles do Brics, mas em ordem alterada de siglas: África do Sul (0,44), Rússia (0,39), Brasil (0,28), China (0,27) e Índia (0,14) em milhões de toneladas. Em outras palavras, o time do Brics possui 20% das reservas mundiais de urânio. A reserva dos USA é a mesma da Índia, mas se falta fizesse, teriam ou já tem o socorro imediato de seus aliados: Canadá e Austrália.
O urânio não é comercializado segundo o padrão das demais commodities. De acordo com três consultoras internacionais (UxC, LLC e Tarrade Tech) de 1990 o preço/kg baixou de US$ 40–50 para 25–32 o quilograma. Na média, US$ 25/kg. Para o tório a cotação é levemente superior; cerca de US$ 30/kg. Para o neodímio (óxido), US$ 110/kg. O nióbio (metal 99,5% puro) é cotado em US$ 150/kg (o Brasil com > 98% das reservas mundiais – 842 milhões de toneladas – é seguido, muito ao longe, pelo Canadá e Austrália).
O duelo e as retaliações constantes entre os USA (Trump) e China (Xi Jinping) não têm como mola propulsora a importação e a exportação de brinquedos. O real e mais importante pano de fundo é a tecnologia 5G (5ª geração de internet móvel ou sem fio) que explora uma largura de banda entre 100 e 1000 vezes maior que a atual 4G, podendo transmitir mais de 10 gigabytes/segundo, evoluindo a seguir para uma velocidade de até 100 vezes maior, sendo estável e com uma latência reduzida para 1 milissegundo. Trump determinou o bloqueio de exportações norte-americanas para a gigante de telecomunicações chinesa Huawei. A 5G vai interligar fábricas, plantas energéticas, aeroportos, veículos automotores, aviões, universidades, hospitais, sítios de lazer e órgãos governamentais, dentre outros. Telefones celulares operarão instantaneamente. Companhias norte-americanas tais como a Verizon, Sprint, T-mobile e AT&T estão engajadas em consolidar a 5G no curso de 2020 apoiadas nos sólidos investimentos de 2019 e mesmo bem antes. A Nokia finlandesa e a Ericsson sueca não estão dormindo em berço esplêndido no que tange a 5G. Mas um fato concreto é que a Huawei chinesa, já ao final de janeiro de 2019, segundo o colunista Wagner Wakka do jornal Time, anunciou o chip Tiangang compatível com 5G. Uma revolução nas telecomunicações nas várias atividades comerciais e de lazer do ser humano. Dada sua potência mais elevada, o chip consegue controlar até 64 canais de conexão. Engloba também, melhorias revolucionárias em unidades de integração de internet via antenas 50% menores, 25% mais leves e consumindo 21% menos energia. Em tempos atuais, a Huawei já é a maior empresa mundial para equipamentos em telecomunicações, vendendo seus produtos para 170 países. Seu lucro em 2018, subiu para mais de 1 bilhão de dólares. No que toca a telefones celulares (sistema operacional Android) está atrás apenas da Samsung (sul-coreana) mas à frente da Apple (USA). Seus 80.000 empregados sustentam 14 centros de pesquisa conectados mundo afora. Para os brasileiros, com a recente cúpula do Brics não seria improvável que a 5G verde-amarela venha com o carimbo “made in China”.
No mais, o paciente povo brasileiro prossegue na esperança de suas três necessidades mais básicas: saúde, educação e segurança pública sob o guarda-maior, bastante desacreditado: justiça. Votos de que o Brics, a internacionalização e a abertura de mercado recíproca nos sirva na consecução das mesmas. Lembremos aos políticos de todos matizes o que reza a Constituição Federal de 1988 (ora mais acionada para libertar criminosos), em seu art. 7º, inciso VI: “todos trabalhadores urbanos e rurais terão garantido um salário-mínimo fixado em lei, unificado e capaz de atender as necessidades vitais e de sua família como alimentação, moradia e educação”. E seguimos muito longe disto.

José Domingos Fontana, professor emérito da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
10 de dezembro de 2019 às 20:00


quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Suicídio Infantil (O Globo)


Suicídio Infantil
 18 vezes maior entre indígenas

Menino Guarani-Kaiowá no plenário do STF, em junho de 2019, durante sessões sobre processos que discutem demarcação de terras indígenas e direito à indenização de áreas desapropriadas. Foto: Jorge William /Agência O Globo.

RIO — Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Ceará mostrou que a taxa de mortalidade por suicídio entre crianças indígenas é 18,5 vezes maior do que a de crianças não indígenas.
De maneira pioneira, o trabalho traçou um panorama nacional do problema e identificou áreas prioritárias para intervenções, onde casos são recorrentes. O estudo foi publicado na revista científica “Cadernos de Saúde Pública”, produzida pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz.
Utilizando dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde e do último Censo feito pelo IBGE, o médico psiquiatra Maximiliano Ponte chegou a números preocupantes.
Entre 2010 e 2014, a taxa de mortalidade por suicídio entre crianças indígenas foi de 11/100 mil, enquanto entre as não indígenas foi de 0,6/100 mil, sem diferenciar meninos e meninas.
Em números absolutos, foram registrados 584 suicídios de crianças no país durante o período analisado pelo pesquisador.
Deste total, 55 casos foram de crianças indígenas, com um predomínio de suicídio de meninas (58,2%). Entre os não indígenas, que somaram 529 casos, a maioria eram meninos (60%).

Situação dramática
O grupo de pesquisas da qual Ponte faz parte também analisou recentemente dados de suicídio indígena na região de Tabatinga, no estado do Amazonas.
O trabalho mostrou aglomerados de casos onde os estudiosos observaram que parte das pessoas que cometeram suicídio eram parentes entre si.
O pesquisador explica que o número de suicídios infantil indígena é maior nas crianças que têm histórico de ocorrências na família. A maior parte dos suicídios infantis registrados aconteceram nos mesmos locais onde foram registradas a maior parte dos casos de adultos.
— Um outro grupo de trabalho também mostrou que as crianças estudadas eram as que mais frequentemente tinham parentes que cometeram suicídio. Estar em um meio onde as pessoas percebam o suicídio como um caminho aumenta a chance de as crianças cometerem esse ato — explica.
Outro dado apontado por Ponte neste novo artigo é que 3/4 dos casos ocorreram em 17 municípios, agrupáveis em três núcleos: um no sudoeste do Amazonas, com 27,3% dos casos; outro em área no noroeste do mesmo estado, com 9,1% dos casos; e um terceiro no sul do Mato Grosso do Sul, com 40% dos registros. O pesquisador atenta ainda para o fato de esta última região ser um local conhecido pelas altas taxas de mortalidade por suicídio de indígenas, principalmente dos Guarani-Kaiowá.
— As altas taxas de mortalidade por suicídio de crianças indígenas não são um fenômeno descolado das igualmente altas taxas de mortalidade por suicídio de indígenas de um modo geral — afirma o pesquisador — Isso está ligado ao quadro precário de subsistência dos índios. A situação dos Guarani-Kaiowá é, talvez, uma das mais dramáticas entre os índios brasileiros — diz.
Os Guarani-Kaiowá vivem em comunidades muito pequenas, muitas vezes em áreas não demarcadas, em acampamentos na beira da estrada.
 — As condições de vida deles são ameaçadas pelas doenças, a indefinição em relação às suas terras e pela pressão do agronegócio. Todos esses fatores os colocam em uma situação de grande vulnerabilidade social, que se relaciona de algum modo com o suicídio em altas proporções — diz Ponte.
O antropólogo e professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Tonico Benites é uma das principais lideranças do povo Guarani-Kaiowá  no Mato Grosso do Sul e coautor da minissérie documental com 13 episódios “O Mistério de Nhemyrõ”, que trata do suicídio de indígenas de diversos povos no Brasil. Para ele, os fatores sociais, políticos e ambientais são os propulsores das altas taxas de suicídio entre os povos indígenas, inclusive de crianças.
— Esses casos acontecem em um contexto de perda de terra, remoção forçada, aplicação de uma regra rígida militar, desmatamento, proibição de circulação indígena e ameaças. É nesse cenário que os casos de suicídios indígenas acontecem: o momento em que a pessoa entra em um estado de medo, desespero, e que, sem muita expectativa de viver melhor, não vê outra saída — diz Benites, doutor em antropologia social pelo programa de pós-graduação do Museu Nacional e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Dados do Ministério da Saúde referentes ao período entre 2010 e 2017 mostram que a taxa de mortalidade por suicídio de indígenas é quase três vezes maior que a da população em geral — 15,2/100 mil, contra 5,5/100 mil, respectivamente. Para reverter o quadro, Ponte defende uma parceria entre a ciência, o poder público e os povos indígenas.
— É muito importante buscar compreender o que os próprios indígenas afetados por esse problema imaginam que possa ser feito. As estratégias de enfrentamento devem ser construídas com os indígenas. Não adianta a gente pensar dentro dos gabinetes as alternativas — diz.

Leticia Lopes (estagiária, sob orientação de Cristina Fibe)
26 de novembro de 2019 às 16:45

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Terceiro Templo (Breaking Israel News)


Terceiro Templo
Precedentes Indianos

Índia acidentalmente estabelece precedentes que podem levar à construção do Terceiro Templo


"Destruam completamente todos os lugares nos quais as nações que vocês estão desalojando adoram os seus deuses, tanto nos altos montes como nas colinas e à sombra de toda árvore frondosa." Deuteronômio 12.2

A Suprema Corte da Índia decidiu que um templo antigo deve ser reconstruído e que uma mesquita que foi construída em seu lugar deve ser realocada em outro lugar. O caso é surpreendentemente semelhante à situação no Monte do Templo de Jerusalém e alguns veem isso como um precedente que abre o caminho para o retorno de um templo judeu.

O processo judicial
Uma dramática decisão da Suprema Corte na Índia, em 9 de novembro, marcou o culminar de uma batalha legal de décadas sobre a área disputada em Ayodhya, Uttar Pradesh. Na decisão de 1.182 páginas, os cinco juízes concordaram por unanimidade em permitir a reconstrução do templo hindu e a realocação da mesquita muçulmana que se diz ter sido construída sobre suas ruínas em 1528. De acordo com a decisão da corte, todo o território disputado passaria para os “grupos de templos” hindus como são conhecidos na Índia.
A história começou nos anos 80, quando grupos hindus iniciaram uma campanha para construir uma estrutura religiosa no local. Em resposta, o governo permitiu que eles tivessem acesso à oração. Em dezembro de 1992, nacionalistas hindus demoliram a mesquita, resultando em tumultos que levaram a mais de 2.000 mortes. 
Em 2003, o governo indiano ordenou uma pesquisa arqueológica do local, os resultados foram apresentados ao Supremo Tribunal que estava julgando o assunto. A pesquisa determinou que os restos de um templo do século 10 existiam sob a mesquita. Os hindus reverenciam o local como o berço da divindade Rama. A equipe arqueológica disse que a atividade humana no local remonta ao século 13 aC. O relatório concluiu que foi por cima dessa estrutura preexistente que a mesquita em disputa foi construída durante o início do século XVI.
Em 2010, o Supremo Tribunal Allahabad decidiu que os 2,77 acres de terra disputada ser dividido em 3 partes, com 1/3 vai para o Ram Lalla ou infantil Senhor Rama representado pelo Hindu Maha Sabha para a construção do templo de Ram, 1/3 vai para o sunita Waqf Conselho muçulmano, e os restantes 1/3 vai a uma denominação religiosa Hindu Nirmohi Akhara. 
Essa decisão foi contestada e, na semana passada, o Supremo Tribunal da Índia decidiu que a terra necessária para construir o templo hindu seria entregue pela autoridade muçulmana. O tribunal decidiu que as organizações muçulmanas não conseguiram provar a exclusividade no terreno e que ao longo dos anos a afiliação ritual hindu foi mantida. Também ordenou ao governo que doasse terras alternativas de 5 acres ao Conselho Sunni Waqf para construir a mesquita.

Reação Muçulmana
As autoridades muçulmanas estavam insatisfeitas com a decisão e ameaçaram uma reação violenta.
“A justiça não foi totalmente cumprida, pois os muçulmanos não podem mudar a mesquita, portanto, aceitar uma terra alternativa para a mesquita está absolutamente fora de questão”, disse o conselho sunita Waqf em comunicado. “Enquanto a opção legal está disponível, também existe a obrigação da Sharia de defender a masjid até o último suspiro.”
“Essa é uma questão da Sharia. Não podemos dar a mesquita nem aceitar nada”, acrescentaram as autoridades muçulmanas.
O Dr. Mordechai Kedar, professor sênior do Departamento Árabe da Universidade Bar-Ilan, observou que essa decisão tratava de uma questão que diz respeito a uma prática generalizada no Islã.
“O Islã é, em sua essência, a teologia da substituição”, disse Kedar. “Eles não apenas se consideram o substituto adequado de todas as crenças anteriores, mas também acreditam que tudo nessas crenças pertence ao Islã. Todas as figuras da Bíblia são muçulmanas. Os muçulmanos afirmam que Jesus e todas as figuras do Novo Testamento são muçulmanas.”
“O Islã sempre dominou os locais sagrados de outras religiões”, disse Kedar. “Os muçulmanos na Índia fizeram exatamente o que os muçulmanos fizeram no monte do templo”.
Um dos exemplos mais flagrantes disso é a Hagia Sophia. Construída como uma catedral patriarcal cristã ortodoxa grega em 360 dC., era o maior edifício do mundo e uma maravilha da engenharia de seu tempo. Em 1453, foi convertida em uma mesquita otomana.

O Monte do Templo
Assaf Fried, porta-voz das Organizações do Templo, observou as semelhanças inconfundíveis entre o caso na Índia e a situação no Monte do Templo em Jerusalém.
“Este é um precedente poderoso”, disse Fried à Breaking Israel News. “A situação é exatamente como a de Jerusalém. Embora não possa ser usado na jurisprudência israelense, conceitualmente, é convincente.”
“Assim como o governo indiano reconheceu os direitos dos hindus, o governo israelense precisa reconhecer os direitos religiosos dos judeus na terra de Israel”, disse Fried. “No momento, os muçulmanos não permitem o exercício desses direitos, que são obrigatórios nas leis israelense e internacional”.
“A estrutura da Cúpula da Rocha, que não é uma mesquita, mas apenas um monumento, pode ser movida para outro local no Monte do Templo ou em Jerusalém. Pode até ser transferido para Meca.”
Iris Idri, advogada que trabalha pelos direitos iguais dos judeus no Monte do Templo, observou que, diferentemente da decisão legal na Índia, a situação no Monte do Templo é ainda mais básica; direitos iguais e igualdade religiosa.
“A situação que existe atualmente em Israel está em violação das leis de Israel relativas à igualdade religiosa e aos direitos humanos”, disse Idri ao Breaking Israel News. “Isso é claramente verdade no monte do templo. A Suprema Corte decidiu repetidamente que os judeus têm o direito de orar no local e, repetidas vezes, a polícia cita preocupações de segurança e se recusa a fazer cumprir a lei. É inegável que esta política é expressamente discriminatória.”
“A santidade que os judeus atribuem ao site simplesmente não é reconhecida”, disse Idri.
Idri comparou a luta judaica no Monte do Templo ao movimento para trazer direitos civis aos negros nos EUA na década de 1950.
“Assim como os negros foram proibidos de usar fontes de água reservadas exclusivamente para brancos em estados segregados nos EUA, os judeus são proibidos de usar as fontes de água no Monte do Templo”, disse Idri.
Yaakov Hayman, presidente da United Temple Movements, concordou que o caso na Índia era idêntico à situação no Monte do Templo, mas ele não achava que a mesma tática funcionaria em Israel.
“As leis de Israel são irrelevantes se contradizerem às leis da Torá”, disse Hayman, citando um preceito talmúdico sobre objetos perdidos.
“Se uma pessoa se desespera com a devolução de um objeto perdido, ele pode ser reivindicado por outra”, disse Hayman. “Os judeus mostraram geração após geração que nunca se desesperaram de retornar a Israel, retornar a Jerusalém e devolver o templo ao seu devido lugar. O Monte do Templo nunca poderia ser reivindicado por outra nação enquanto mantivéssemos nossa reivindicação. Isso seria roubo e os árabes muçulmanos roubaram o Monte do Templo. Essa é a única reivindicação que eles têm do site; a reivindicação de roubo.”
“Os judeus não podiam perder nenhuma parte de Israel porque não é nossa a perda”, acrescentou. “Faz parte da aliança. E três vezes por dia, oramos para retornar a Sião, ao templo.”
Ele sugeriu mudar o Domo da Rocha como alternativa.
“É um prédio bonito, mas não precisa estar exatamente lá. Esse site específico é sagrado para os judeus. Eu acho que o que foi mostrado na Índia é o que deve ser feito. Se foi feito na Índia, pode ser feito em Israel.”
Hayman sentiu que era necessária uma mudança em outros locais sagrados para os judeus que estão atualmente sob controle islâmico.
“Os judeus não podem orar em muitos locais, como o túmulo de José”, disse Hayman. “No entanto, em vez de honrá-los ou reivindicá-los como muçulmanos, os árabes os queimam. Certamente devemos ter controle desses sites.”


Adam Eliyahu Berkowitz, 18 de novembro de 2019 às 13:33


terça-feira, 12 de novembro de 2019

Integração e Assimilação (Folha de São Paulo)


Integração Indígena X Assimilação Cultural
Indígenas não querem ser assimilados


Os povos indígenas ocupam o território brasileiro há mais de 10 mil anos. Somam, atualmente, cerca de 900 mil indivíduos, distribuídos em 305 etnias com 274 línguas distintas, de acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010.
Essa população ocupa 722 áreas de reserva protegidas pela legislação, que correspondem a 13,8% do território e formam uma espécie de enclave de tensão entre duas culturas, dois sistemas de produção, dois “Brasis”.













 

Folha de São Paulo. Fotos - Exposição Sebastião Salgado

“Integração no Brasil é sempre pensada como uma assimilação cultural, o que é absolutamente errado. Os indígenas não querem ser assimilados, poderiam, se quisessem. Mas não é essa a ideia”, disse Manuela Carneiro da Cunha, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), durante o oitavo episódio do programa Ciência Aberta de 2019.
Para a antropóloga, a assimilação cultural, “disfarçada no eufemismo de integrar o Brasil”, tem o objetivo de eliminar diferenças culturais e abrir caminho para a liberalização das terras indígenas para o mercado. O potencial de exploração mineral e agropecuário de algumas dessas áreas chega a suscitar em certos setores da sociedade a alegação de que há “muita terra para poucos índios”.
“A crítica está em dizer que os índios não são produtivos, no sentido entendido pelo capitalismo. Porém, a maneira como os não indígenas querem explorar e tirar as riquezas é apenas uma repetição de toda a história do Brasil – uma exploração constante das riquezas naturais, sem grandes resultados. É só tirar riqueza natural para exportar, sem aproveitar o conhecimento existente e, de fato, transformar isso em riqueza”, disse Artionka Capiberibe, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Capiberibe sublinha que o direito do índio à terra foi reiterado na Constituição de 1988, carta que também celebra a diversidade como um valor a ser preservado.





Guerreiros Xikrin se reúnem na aldeia Rapko após expedição na floresta. Fotos - Lalo de Almeida - Folhapress.

Na avaliação de Geraldo Andrello, professor do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com ou sem lei já é possível assistir aos efeitos da simples vontade de liberar as terras indígenas para exploração.
“Houve um aumento de 85% dos alertas de mineração clandestina e de 38% dos alertas de desmatamento clandestino em terras indígenas. Isso só no primeiro semestre de 2019 e embora o governo federal esteja só discutindo e anunciando que vai enviar uma proposta para adulterar as terras indígenas. É um anúncio que vem sendo reiteradamente afirmado”, disse Andrello.
Para os três antropólogos que participaram do programa Ciência Aberta, é preciso destacar que, a despeito do modo de vida próprio e de uma cultura diferente dos não índios, as populações indígenas brasileiras não estão congeladas no tempo.
“Os indígenas são nossos contemporâneos. Há uma ideia que coloca as populações indígenas como tradicionais e nós [não indígenas] como modernos. Na verdade, nem nós somos modernos nem eles são tradicionais no sentido de culturas congeladas no tempo”, disse Capiberibe.





Área desmatada por grileiro dentro da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará 26.08.2019. Fotos - Lalo de Almeida - Folhapress.

E qual seria a definição de um povo ou indivíduo indígena? Há alguns anos, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro propôs a necessidade de uma autodefinição dos povos indígenas. Assim, índio é aquele que é reconhecido por um povo indígena.
“Portanto, não existe um índio, mas uma comunidade que o reconhece como tal. Dessa forma, também não é qualquer comunidade que pode se considerar indígena, pois é necessário um vínculo histórico cultural com as organizações sociais pré-colombianas”, disse Andrello.
De acordo com o pesquisador, quando se fala em povos indígenas está se falando em diversidade. “É arriscado tentar estabelecer parâmetros para indicar o que os povos indígenas, no seu conjunto, têm em comum. Estamos falando em diversidade”, disse.
Talvez, na avaliação dos participantes do programa, a unidade esteja na relação com a natureza. “A relação dos povos indígenas com aquilo que nós chamamos de recursos naturais é completamente oposta às relações que nós ocidentais estabelecemos. Em geral, a nossa relação com os seres da natureza é basicamente de sujeito-objeto. O homem é o sujeito da relação e os seres da natureza são os objetos intencionalmente inertes”, disse.





TI Yanomami, Comunidade Maturac - Mulheres manuseando o Perisi, fungo utilizado na cestaria Yanomami. Fotos - Rogério Assis - ISA.

Luiza Lima Góes Yanomami carrega dois Motorohima, feitos por ela na comunidade Maturacá, Terra Indígena Yanomami. Foto - Roberto Almeida - ISA.


Detalhe de um cesto Motorohima feito por Luiza Lima Góes na comunidade Maturacá, Terra Indígena Yanomami. Foto - Roberto Almeida - ISA.

Detalhe de Wii com Perisi, na comunidade Ariabu, Terra Indígena Yanomami. Foto - Roberto Almeida - ISA.

Um exemplo que explicaria a relação dos povos indígenas com a natureza está nos Guayapi, povo de língua tupi que vive no Amapá e na Guiana Francesa.
“Eles não têm uma visão colonialista da sua terra. O que vem a ser colonialista? É achar que tudo o que você ocupa está a seu serviço, para o seu bem-estar, que é a visão tradicional da natureza para o ocidente”, disse Carneiro da Cunha.
Dessa forma, explica Carneiro da Cunha, os Guayapi “entendem que a mata, os bichos e as árvores, por exemplo, têm direitos. O rio tem direitos e é um lugar compartilhado, que não foi feito só para usufruto da humanidade, mas de todos os seres que estão ali. Esse entendimento transforma completamente a relação com o que nós chamamos de natureza, que, aliás, é um conceito que nem existe em muitos povos”, disse.
Essa visão de mundo talvez explique por que, na região amazônica, as terras indígenas são mais conservadas que as áreas vizinhas.

Maria Fernanda Ziegler
12 de novembro de 2019 às 8h00

O episódio “Indígenas” do programa Ciência Aberta teve a participação de alunos das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp), do Instituto Federal de São Paulo e da Escola Estadual Prof. Manuel Ciridião Buarque.
Ciência Aberta é uma parceria da Fapesp com o jornal Folha de S. Paulo. O programa é apresentado por Alexandra Ozorio de Almeida, diretora de redação da revista Pesquisa Fapesp.
O novo episódio pode ser visto na página da Agência Fapesp no Facebook, no YouTube e no site da TV Folha.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Missão Salesiana (Folha de São Paulo)


Protagonismo Indígena
Missão Salesiana

Moradores assistem missa em homenagem a Nossa Senhora Aparecida em uma capela no distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM). As celebrações, onde os indígenas chegaram a cantar em latim, atualmente incorporam músicas tradicionais.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

Iauaretê (AM)
Ex-aluno do internato salesiano de Iauaretê, na fronteira do Brasil com a Colômbia, o indígena tukano Arlindo Maia passava o fim de semana enclausurado toda vez que era flagrado conversando na sua língua nativa em vez de português. A punição era simbolizada por um pequeno chaveiro.

Maria Tereza Fernandes, indígena da etnia tukano, é uma das moradoras de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM).
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

“Quando um colega me pegava falando na minha língua, ele entregava o chaveiro. Aí, como castigo, eu tinha de ficar o fim de semana no estudo ou no dormitório. Na outra segunda-feira, eu tinha de procurar outro aluno. Quem estivesse com o chaveiro na sexta-feira, ficava de castigo”, conta Maia, do povo tukano, hoje ministro da capela da comunidade São Miguel, uma das dez comunidades de Iauaretê.
"Posso até confessar, com 54 anos, que demos final a esse chaveiro aí. Foi no ano da minha formatura. Peguei o chaveiro, achei outro colega e disse: ‘Bora enterrar essa p...’. Se você cavar atrás da carpintaria, deve estar lá agora, tem de chamar um arqueólogo”, relembra, às gargalhadas. Ele se internou por cinco anos a partir de 1975, aos 11 anos, e depois se formou como técnico agrícola, em Manaus.

Crianças indígenas brincam na comunidade Santa Maria que fica localizada do outro lado do rio Uaupés no distrito de Iauaretê, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Hegemonia católica é nítida na região. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

Criada em 1915, a missão salesiana na região de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste amazônico, transformou a vida de milhares de indígenas da região. Financiados em parte pelo governo federal, os religiosos impuseram o catolicismo, a língua portuguesa e mudanças nos hábitos tradicionais, como a migração da moradia em malocas coletivas para pequenas casas familiares.
“Os salesianos, novos bandeirantes, puseram-se a devassar aquelas matas e a alindar a alma daqueles índios”, escreveu Soares d’Azevedo, no livro “Pelo Rio Mar”, de 1933. “Souberam radicar o índio, instruí-lo e catequizá-lo, fazer dele um elemento útil à pátria.”

Crianças indígenas da comunidade Santa Maria brincam no rio Uaupés em frente ao distrito de Iauaretê. Ao fundo, a Igreja de São Miguel Arcanjo. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

“Os salesianos tinham projetos de educação propostos por dom Bosco, mas chegaram aqui sem esse projeto educativo. Eles vieram impondo”, afirma o padre diocesano indígena Domingos Lana, 51, sobre a atuação da congregação fundada em 1859 por são João Bosco, na Itália.
“O que prejudicou foi isso. Vieram aqui para executar o programa do governo brasileiro, que era tornar o índio membro da sociedade nacional”, afirma Lana, do povo tariano e nascido em Iauaretê. Em 2006, ele pediu afastamento do sacerdócio ao se recusar a ser transferido para uma paróquia longe do Alto Rio Negro.

Tukano e Rap
Ainda em funcionamento, a missão salesiana em Iauaretê, que comemorou 90 anos em agosto, revisou seus métodos a partir dos anos 1980, aproximando-se do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), segundo o livro “Cidade do Índio”, do antropólogo Geraldo Andrello.
No final dessa década o internato, que tinha capacidade para 250 crianças por ano, fechou as portas. Parte de suas instalações é usada pela escola estadual São Miguel, que paga R$ 5.651,50 de aluguel mensal aos salesianos e tem uma irmã da congregação como coordenadora pedagógica.

Antigas instalações da Missão Salesiana de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM); parte dela é ocupada atualmente por uma escola.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

Hoje, a rotina da missão salesiana é outra. Durante o oratório no pátio da imponente igreja matriz, os alto-falantes tocam rap enquanto adolescentes jogam basquete. Em reunião recente da Pastoral da Família, uma irmã salesiana estimulava os pais a ensinar mitos e línguas indígenas em casa.

Procissão em homenagem a Nossa Senhora Aparecida no distrito de Iauaretê, na comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira. Criada em 1915, a missão salesiana na região transformou a vida de milhares de indígenas ao impor o catolicismo, a língua portuguesa e mudanças nos hábitos tradicionais. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

Na procissão de Nossa Senhora Aparecida, na tarde do último dia 11, o ministro falou em tukano, a língua franca dos povos do Alto Rio Negro, antes de levar a imagem até a igreja matriz. As missas, onde os indígenas chegaram a cantar em latim, atualmente incorporam músicas tradicionais.

Pinturas com motivos católicos nas paredes do antigo hospital do distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM) localizada na fronteira com a Colômbia. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

Em termos religiosos, a hegemonia católica permanece. Além da igreja matriz, há capelas nas dez comunidades, quase todas com nome de origem católica, como Aparecida e Dom Bosco. Recentemente, um pastor tentou se instalar em Iauaretê, mas deixou a região após sofrer oposição do clérigo salesiano.

Morador faz faxina na capela Dom Bosco, no distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM). Criada em 1915, a missão salesiana na região transformou a vida de milhares de indígenas ao impor o catolicismo, a língua portuguesa e mudanças nos hábitos tradicionais. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

A missão conta com dois padres, um italiano, que estava em viagem quando a reportagem esteve em Iauaretê, e outro da etnia dessana, que se recusou a ser entrevistado.
Envolvido nas atividades paroquiais, o padre Domingos diz que hoje as prioridades são a Pastoral da Família, o combate ao alcoolismo - o problema social mais citado pelos moradores - e a formação de lideranças católicas.

Sem Autocrítica
Mesmo se declarando católicos e com crescente presença no clérigo, os indígenas cobram um reconhecimento maior da igreja pela atuação no passado. Líder da Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê (Coidi), o tukano Jaciel Freitas, 44, criticou o fato de que as recentes celebrações dos 90 anos da missão em Iauaretê não incluíram nenhuma autocrítica.

Jaciel Freitas, coordenador da Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Ele criticou o fato de que as recentes celebrações dos 90 anos da missão salesiana na região não incluíram nenhuma autocrítica.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

“Fiquei um pouco chateado que eles não falaram do lado negativo, só o positivo. Eu não perdoo as ofensas que nossos avós levavam, eles apanharam mesmo. Nós perdemos muitas coisas com eles, mas aprendemos muitas coisas também.” 
“Eu gostaria que um padre estrangeiro reconhecesse: ‘Nós, infelizmente, erramos’. Isso me dói ainda”, diz Maia.
A missão provocou também um desafio demográfico. Desde que foi criada, passou a atrair famílias indígenas ao longo dos rios Uaupés e Papuri, esvaziando várias comunidades. O crescimento populacional se acelerou após o fechamento do internato, quando várias famílias se mudaram para que seus filhos continuassem estudando em Iauaretê.

Casas do distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira localizada as margens do rio Uaupés na fronteira com a Colômbia.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

Segundo o censo mais recente, de 2017, o distrito tinha 2.570 moradores. É a maior comunidade da Terra Indígena Alto Rio Negro e a única com luz elétrica por 24 horas, graças a uma usina termelétrica. Além disso, conta com a via principal pavimentada, caminhão de lixo, sinal de TV, ambulância, mercados, restaurante, pista de pouso e até 3G —graças a uma torre de celular do lado colombiano.

Igreja São Miguel Arcanjo no distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira localizada as margens do rio Uaupés. 
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

A meio caminho “entre a comunidade ribeirinha e a cidade”, na definição de Andrello, o tamanho populacional dificulta a produção de alimentos, explica a tariana Almerinda Ramos de Lima, diretora da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), principal entidade não governamental da região.
Ex-interna e “católica até morrer”, Lima explica que a pesca e a caça escassearam com o crescimento populacional. Outro problema, diz ela, é a roça. Em busca de espaço, as famílias fazem o plantio em locais acessíveis por meio de caminhadas de até quatro horas. “As terras aqui são ácidas, arenosas.”
Em consequência, as famílias recorrem à comida industrializada. A proteína mais comum é frango congelado produzido no Sul do país. O embarque no barco é em São Gabriel da Cachoeira, uma viagem que dura cerca de 14 horas de barco com motor de potência média e inclui um trabalhoso transbordo para superar uma cachoeira do rio Uaupés.

Sínodo
Apesar do recente Sínodo da Amazônia, o tema foi pouco debatido em Iauaretê. Entre os entrevistados pela Folha, apenas o padre Domingos disse ter participado de debates preparativos para o encontro.
Ideias como ordenamento de homens casados e maior participação de mulheres são bem aceitos, mas há ressalvas sobre a incorporação de rituais indígenas pela Igreja Católica.

Moradores assistem a uma missa em uma capela no distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM). As celebrações, onde os indígenas chegaram a cantar em latim, atualmente incorporam músicas tradicionais.

“Pra mim, não vale fazer isso dentro da igreja. É da nossa tradição, faziam mais nas festas de confraternização. Se antes falavam que era coisa do demônio, como é que hoje levam pra dentro da igreja? É melhor deixar separado”, diz Freitas, coordenador da Coidi.

Moradora acende uma vela em homenagem a Nossa Senhora de Aparecida em sua casa no distrito de Iauaretê. Mesmo se declarando católicos e com crescente presença no clérigo, os indígenas cobram um reconhecimento maior da igreja pela atuação no passado.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.

Já autorizado a dar a comunhão, Arlindo Lima diz que se sente capaz de assumir outras tarefas caso - o sínodo propôs a ordenação de homens casados. “Estamos avançando, já temos muitos padres indígenas. Se esse avanço é por causa do chaveiro, eu não sei dizer”, disse, novamente rindo.
Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida
4 de novembro de 2019 às 02h00

Texto originalmente publicado pela Folha de São Paulo sob o título "No Amazonas, missão salesiana se transforma em 'cidade dos índios'"