Protagonismo Indígena
Missão Salesiana
Moradores assistem missa em homenagem a Nossa Senhora Aparecida em uma capela no distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM). As celebrações, onde os indígenas chegaram a cantar em latim, atualmente incorporam músicas tradicionais.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
Iauaretê
(AM)
Ex-aluno do internato salesiano de Iauaretê,
na fronteira do Brasil com a Colômbia, o indígena tukano Arlindo Maia passava o
fim de semana enclausurado toda vez que era flagrado conversando na sua língua
nativa em vez de português. A punição era simbolizada por um pequeno chaveiro.
Maria Tereza Fernandes, indígena da etnia tukano, é uma das moradoras de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM).
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
“Quando um colega me pegava falando na minha
língua, ele entregava o chaveiro. Aí, como castigo, eu tinha de ficar o fim de
semana no estudo ou no dormitório. Na outra segunda-feira, eu tinha de procurar
outro aluno. Quem estivesse com o chaveiro na sexta-feira, ficava de castigo”,
conta Maia, do povo tukano, hoje ministro da capela da comunidade São Miguel,
uma das dez comunidades de Iauaretê.
"Posso até confessar, com 54 anos, que demos
final a esse chaveiro aí. Foi no ano da minha formatura. Peguei o chaveiro,
achei outro colega e disse: ‘Bora enterrar essa p...’. Se você cavar atrás da
carpintaria, deve estar lá agora, tem de chamar um arqueólogo”, relembra, às gargalhadas.
Ele se internou por cinco anos a partir de 1975, aos 11 anos, e depois se
formou como técnico agrícola, em Manaus.
Crianças indígenas brincam na comunidade Santa Maria que fica localizada do outro lado do rio Uaupés no distrito de Iauaretê, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Hegemonia católica é nítida na região. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
Criada em 1915, a missão salesiana na região
de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste amazônico, transformou a vida de
milhares de indígenas da região. Financiados em parte pelo governo federal, os
religiosos impuseram o catolicismo, a língua portuguesa e mudanças nos hábitos
tradicionais, como a migração da moradia em malocas coletivas para pequenas
casas familiares.
“Os salesianos, novos bandeirantes, puseram-se
a devassar aquelas matas e a alindar a alma daqueles índios”, escreveu Soares
d’Azevedo, no livro “Pelo Rio Mar”, de 1933. “Souberam radicar o índio,
instruí-lo e catequizá-lo, fazer dele um elemento útil à pátria.”
Crianças indígenas da comunidade Santa Maria brincam no rio Uaupés em frente ao distrito de Iauaretê. Ao fundo, a Igreja de São Miguel Arcanjo. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
“Os salesianos tinham projetos de educação
propostos por dom Bosco, mas chegaram aqui sem esse projeto educativo. Eles
vieram impondo”, afirma o padre diocesano indígena Domingos Lana, 51, sobre a
atuação da congregação fundada em 1859 por são João Bosco, na Itália.
“O que prejudicou foi isso. Vieram aqui para
executar o programa do governo brasileiro, que era tornar o índio membro da
sociedade nacional”, afirma Lana, do povo tariano e nascido em Iauaretê. Em
2006, ele pediu afastamento do sacerdócio ao se recusar a ser transferido para
uma paróquia longe do Alto Rio Negro.
Tukano e
Rap
Ainda em funcionamento, a missão salesiana em
Iauaretê, que comemorou 90 anos em agosto, revisou seus métodos a partir dos
anos 1980, aproximando-se do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), segundo o
livro “Cidade do Índio”, do antropólogo Geraldo Andrello.
No final dessa década o internato, que tinha
capacidade para 250 crianças por ano, fechou as portas. Parte de suas
instalações é usada pela escola estadual São Miguel, que paga R$ 5.651,50 de
aluguel mensal aos salesianos e tem uma irmã da congregação como coordenadora
pedagógica.
Antigas instalações da Missão Salesiana de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM); parte dela é ocupada atualmente por uma escola.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
Hoje, a rotina da missão salesiana é outra.
Durante o oratório no pátio da imponente igreja matriz, os alto-falantes tocam
rap enquanto adolescentes jogam basquete. Em reunião recente da Pastoral da
Família, uma irmã salesiana estimulava os pais a ensinar mitos e línguas
indígenas em casa.
Procissão em homenagem a Nossa Senhora Aparecida no distrito de Iauaretê, na comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira. Criada em 1915, a missão salesiana na região transformou a vida de milhares de indígenas ao impor o catolicismo, a língua portuguesa e mudanças nos hábitos tradicionais. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
Na procissão de Nossa Senhora Aparecida, na
tarde do último dia 11, o ministro falou em tukano, a língua franca dos povos
do Alto Rio Negro, antes de levar a imagem até a igreja matriz. As missas, onde
os indígenas chegaram a cantar em latim, atualmente incorporam músicas
tradicionais.
Pinturas com motivos católicos nas paredes do antigo hospital do distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM) localizada na fronteira com a Colômbia. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
Em termos religiosos, a hegemonia católica
permanece. Além da igreja matriz, há capelas nas dez comunidades, quase todas
com nome de origem católica, como Aparecida e Dom Bosco. Recentemente, um
pastor tentou se instalar em Iauaretê, mas deixou a região após sofrer oposição
do clérigo salesiano.
Morador faz faxina na capela Dom Bosco, no distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM). Criada em 1915, a missão salesiana na região transformou a vida de milhares de indígenas ao impor o catolicismo, a língua portuguesa e mudanças nos hábitos tradicionais. Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
A missão conta com dois padres, um italiano,
que estava em viagem quando a reportagem esteve em Iauaretê, e outro da etnia
dessana, que se recusou a ser entrevistado.
Envolvido nas atividades paroquiais, o padre
Domingos diz que hoje as prioridades são a Pastoral da Família, o combate ao alcoolismo - o problema social mais citado pelos moradores - e a formação de lideranças
católicas.
Sem
Autocrítica
Mesmo se declarando católicos e com crescente
presença no clérigo, os indígenas cobram um reconhecimento maior da igreja pela
atuação no passado. Líder da Coordenadoria das Organizações Indígenas do
Distrito de Iauaretê (Coidi), o tukano Jaciel Freitas, 44, criticou o fato de
que as recentes celebrações dos 90 anos da missão em Iauaretê não incluíram
nenhuma autocrítica.
Jaciel Freitas, coordenador da Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Ele criticou o fato de que as recentes celebrações dos 90 anos da missão salesiana na região não incluíram nenhuma autocrítica.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
“Fiquei um pouco chateado que eles não falaram
do lado negativo, só o positivo. Eu não perdoo as ofensas que nossos avós
levavam, eles apanharam mesmo. Nós perdemos muitas coisas com eles, mas
aprendemos muitas coisas também.”
“Eu gostaria que um padre estrangeiro reconhecesse:
‘Nós, infelizmente, erramos’. Isso me dói ainda”, diz Maia.
A missão provocou também um desafio
demográfico. Desde que foi criada, passou a atrair famílias indígenas ao longo
dos rios Uaupés e Papuri, esvaziando várias comunidades. O crescimento populacional
se acelerou após o fechamento do internato, quando várias famílias se mudaram
para que seus filhos continuassem estudando em Iauaretê.
Casas do distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira localizada as margens do rio Uaupés na fronteira com a Colômbia.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
Segundo o censo mais recente, de 2017, o
distrito tinha 2.570 moradores. É a maior comunidade da Terra Indígena Alto Rio
Negro e a única com luz elétrica por 24 horas, graças a uma usina termelétrica.
Além disso, conta com a via principal pavimentada, caminhão de lixo, sinal de
TV, ambulância, mercados, restaurante, pista de pouso e até 3G —graças a uma
torre de celular do lado colombiano.
Igreja São Miguel Arcanjo no distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira localizada as margens do rio Uaupés.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
A meio caminho “entre a comunidade ribeirinha
e a cidade”, na definição de Andrello, o tamanho populacional dificulta a
produção de alimentos, explica a tariana Almerinda Ramos de Lima, diretora da
Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), principal entidade
não governamental da região.
Ex-interna e “católica até morrer”, Lima
explica que a pesca e a caça escassearam com o crescimento populacional. Outro
problema, diz ela, é a roça. Em busca de espaço, as famílias fazem o plantio em
locais acessíveis por meio de caminhadas de até quatro horas. “As terras aqui
são ácidas, arenosas.”
Em consequência, as famílias recorrem à comida
industrializada. A proteína mais comum é frango congelado produzido no Sul do
país. O embarque no barco é em São Gabriel da Cachoeira, uma viagem que dura
cerca de 14 horas de barco com motor de potência média e inclui um trabalhoso
transbordo para superar uma cachoeira do rio Uaupés.
Sínodo
Apesar do recente Sínodo da Amazônia, o tema
foi pouco debatido em Iauaretê. Entre os entrevistados pela Folha, apenas o
padre Domingos disse ter participado de debates preparativos para o encontro.
Ideias como ordenamento de homens casados e
maior participação de mulheres são bem aceitos, mas há ressalvas sobre a
incorporação de rituais indígenas pela Igreja Católica.
Moradores assistem a uma missa em uma capela no distrito de Iauaretê, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM). As celebrações, onde os indígenas chegaram a cantar em latim, atualmente incorporam músicas tradicionais.
“Pra mim, não vale fazer isso dentro da
igreja. É da nossa tradição, faziam mais nas festas de confraternização. Se
antes falavam que era coisa do demônio, como é que hoje levam pra dentro da
igreja? É melhor deixar separado”, diz Freitas, coordenador da Coidi.
Moradora acende uma vela em homenagem a Nossa Senhora de Aparecida em sua casa no distrito de Iauaretê. Mesmo se declarando católicos e com crescente presença no clérigo, os indígenas cobram um reconhecimento maior da igreja pela atuação no passado.
Lalo de Almeida - 10.out.2019/Folhapress.
Já autorizado a dar a comunhão, Arlindo Lima
diz que se sente capaz de assumir outras tarefas caso - o sínodo propôs a
ordenação de homens casados. “Estamos avançando, já temos muitos padres
indígenas. Se esse avanço é por causa do chaveiro, eu não sei dizer”, disse,
novamente rindo.
Fabiano
Maisonnave e Lalo de
Almeida
4 de
novembro de 2019 às 02h00
Texto originalmente publicado pela Folha de São Paulo sob o título "No Amazonas, missão salesiana se transforma em 'cidade dos índios'"
Texto originalmente publicado pela Folha de São Paulo sob o título "No Amazonas, missão salesiana se transforma em 'cidade dos índios'"