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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Direito Real de Uso (Dia a Dia)

 Ribeirinhos ganham direito inédito de uso da terra no Amazonas após 16 anos de luta

Em março, 15 comunidades ribeirinhas do Rio Manicoré, no Amazonas, conquistaram, de maneira coletiva, uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU); é a primeira vez que isso ocorre no Estado.


 

Porto de comunidade ribeirinha no Rio Manicoré. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

 

Liderados por uma professora e uma agricultora familiar, 15 comunidades tradicionais das florestas públicas de Manicoré, município no sul do Amazonas, conquistaram em março o reconhecimento e o direito de uso coletivo do território após 16 anos de luta. É a primeira vez na história do Amazonas que povos tradicionais ganham uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) coletiva por tempo indeterminado.

Também é a primeira vez que a concessão é aplicada a famílias que não vivem em uma unidade de conservação. A reportagem é da Mongabay.

“Criamos o Território de Uso Comum do Rio Manicoré, uma experiência inédita de proteção”, diz o procurador do Estado Daniel Viegas, chefe da Procuradoria do Meio Ambiente, explicando que, para emitir a CDRU aos ribeirinhos do Rio Manicoré, o governo amazonense teve que alterar a legislação fundiária estadual.

 

Parte destes ribeirinhos luta, desde 2006, para que o território seja transformado em Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Mas, por medo e desinformação espalhados por madeireiros e grileiros, a maioria dos comunitários não aprova a reserva.

 

Formado por um mosaico de três Terras Indígenas, nove Unidades de Conservação e quase 9 mil km2 de florestas públicas não destinadas (é nesta área que vivem os ribeirinhos), a região do Rio Manicoré é uma das mais preservadas da Amazônia brasileira.

Além da preservação ambiental de uma área de extrema importância para a Amazônia, a CDRU ajudará a manter o modo de vida tradicional dos cerca de 4 mil ribeirinhos que vivem no território, entre extrativistas, agricultores familiares e artesãos de canoa e remo.

“O Manicoré vive do açaí, castanha, tucumã, banana, cacau e da roça. Vivem todos bem, do que a natureza dá, sem desmatar”, afirma a agricultora familiar Maria Clea Delgado, presidenta da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim), uma das responsáveis pela conquista da Concessão.

 

Mulher ribeirinha na região do Rio Manicoré; moradores se deslocam pelo território por meio de canoas e barcos. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

 

Quando a Mongabay visitou as comunidades, em junho, os comunitários se preparavam para a Festa do Açaí da comunidade do Estirão, a uma hora de barco do município de Manicoré.

“Todo mundo planta açaí aqui”, diz o agroextrativista Manoel Tomé Correa, exibindo com orgulho a pequena plantação de açaí da família — que inclui tios, os pais, dois irmãos e os sobrinhos, todos vizinhos.

 

“A Festa do Açaí do Estirão é a melhor festa do Rio Manicoré, um dia e uma noite de festa. Tem forró, tem a dança do açaí. Todo o dinheiro conseguido na festa vai para a nossa associação comunitária”, conta o agroextrativista.

 

Toda a família de Manoel nasceu na comunidade e trabalha coletando açaí, castanha e andiroba. Do açaí, eles fazem o suco e o creme; da andiroba, extraem o famoso óleo do fruto, usado para quase tudo no Amazonas: de repelente natural a remédio para curar dor de garganta. Tudo o que colhem e coletam do próprio quintal é vendido em Manicoré ou para atravessadores que percorrem o rio em busca dos produtos da floresta.

“Tem que preservar a floresta para depois não faltar. Aqui, a gente vive tranquilo. Mas estão destruindo aí para dentro, a gente ouve. Se destruírem, como vamos sobreviver?”, diz Manoel, que nunca saiu da comunidade.

Para a gestora ambiental Cristiane Mazzetti, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil, a CDRU é uma importante conquista na luta dos povos do Rio Manicoré.

 

“Apesar de a CDRU não ser um instrumento de conservação ambiental, ela tem objetivos que se aproximam dos de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, como a garantia da permanência das populações tradicionais e a manutenção das suas atividades sustentáveis, além do próprio reconhecimento do território”, explica Mazzetti.

 

O procurador do Estado Viegas concorda. “Por meio da regularização fundiária, a Concessão de Direito Real de Uso produz efeitos sobre a proteção ambiental, já que o texto da CDRU traz limites para a exploração no território”, afirma.

De acordo com a Lei n 9985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), populações tradicionais que vivem em reservas, florestas nacionais e demais unidades de conservação podem fazer uso dos recursos naturais de forma racional e desenvolver atividades econômicas sustentáveis, como o extrativismo, mas fica proibida a caça e a pesca profissional e a exploração dos recursos minerais.

 

O agricultor Manoel Tomé Correa mostra o óleo de andiroba feito pela família em uma comunidade no Rio Manicoré. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

 

“Balsas de madeira entram e saem toda semana”

Apesar da conquista, o objetivo da Caarim, formada por parte dos 4 mil ribeirinhos que habitam a área, é o de transformar a região em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

“Lutamos para que aqui seja uma RDS por causa das invasões e do desmatamento no nosso território. Queremos proteção”, explica a professora municipal Marilourdes Cunha da Silva, fundadora da Caarim.

Quem navega pelas águas que cortam a extensão territorial do município de Manicoré consegue avistar balsas que chamam atenção pelos nomes — Dona Raimunda, Fátima, Rosa —, mas também pela quantidade de toras de madeira que carregam. Algumas também levam gado e tratores.

“Tem muito madeireiro na região oferecendo dinheiro para a gente cortar árvores nativas. Por um angelim desse tamanho, estão pagando 400 reais”, conta um ribeirinho ao avistar um angelim de cerca de 30 metros de altura, nativo da região e cobiçado pelos madeireiros. “Tem gente que aceita cortar porque é um dinheiro rápido, mais rápido que plantar uma roça e ter que esperar meses para colher”, diz o morador, que por segurança não será identificado.

“Balsas com madeira entram e saem daqui toda semana. Três, quatro balsas carregadas de madeira saindo do Rio Manicoré toda sexta-feira. Isso [vem acontecendo] mesmo depois da CDRU”, relata uma moradora. Por segurança, ela também não será identificada.

Na altura do Rio Madeira, nas margens da área urbana de Manicoré, há, ainda, dragas de garimpo revirando o solo e poluindo as águas do rio.

 

Balsa com toras de madeira no Rio Manicoré em agosto de 2022. Foto: Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim)

 

“Já me ofereceram trabalho aí nessas balsas de garimpo do Madeira, mas eu disse não. Depois disso, uns homens apareceram na porta de casa com um amigo meu para tentar me convencer”, conta um ribeirinho que nasceu em uma das comunidades e hoje vive na área urbana.

 

De fato, o trânsito de balsas demonstra que a paisagem preservada das florestas de Manicoré tem mudado na última década: o território por onde se estende o município registrou mais de 150 km2 desmatados apenas no primeiro semestre de 2022. A quantidade já é maior que o desmatamento ocorrido nos doze meses de 2021, quando o município bateu recorde histórico, com 134,7 km2 devastados, segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes/Inpe).

 

“A gente já fotografou [as balsas de madeira], mandou para o MPF, fez ofício pedindo para fiscalizar e nunca recebemos nenhuma resposta. É por isso que queremos que essa área seja uma RDS, para frear esse desmatamento”, diz a presidenta da Caarim, Maria Clea.

 

Quanto ao garimpo, dados da Agência Nacional de Mineração levantados pela Mongabay mostram que existem 19 requerimentos de lavra garimpeira para uso industrial ativos em Manicoré.

Sobre as denúncias, a reportagem procurou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Ministério Público do Amazonas. O IBAMA não respondeu os questionamentos e o MP-AM afirmou que as denúncias dos comunitários são objeto de inquérito civil no Ministério Público Federal.

“Agora, estamos preocupados em como será o desmatamento nesse semestre. Estamos vendo que se os próximos meses forem igual a maio e abril, os desmatadores virão com tudo”, diz Clea.

Em março, mês em que o território do Rio Manicoré passou a ser protegido pela CDRU, o Greenpeace flagrou um desmatamento de 1.900 hectares no meio da floresta nativa. Em agosto, a organização voltou a sobrevoar a região e registrou uma queimada de grandes proporções na área desmatada, cuja fumaça chegou inclusive a encobrir o céu de Manaus, a cerca de 330 quilômetros dali.

 

Queimada registrada em agosto de 2022 dentro da CDRU do Rio Manicoré em área desmatada em março. Foto: Christian Braga/Greenpeace

 

O levante de mulheres ribeirinhas

Maria Clea e Marilourdes lutam há 16 anos pela criação da RDS do Rio Manicoré. Elas se conheceram ao acaso em 2006, durante um deslocamento de voadeira, espécie de canoa motorizada, pelo Rio Manicoré — os rios funcionam como ruas e estradas para os ribeirinhos, uma vez que não há vias terrestres que liguem uma comunidade a outra. Algumas comunidades estão a horas de barco da sede do município.

“Começamos a conversar sobre a situação do Manicoré e descobrimos que nós duas tínhamos criado associações em nossas comunidades. Pensamos: ‘Por que a gente não cria uma associação geral?’”, conta Clea, conhecida na região por histórias como a vez em que entregou nas mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma carta pedindo energia elétrica para as comunidades do Rio Manicoré.

Antes de fundarem oficialmente a Caarim, o primeiro passo da dupla foi descobrir “quem era o dono do rio”, como diz Clea, uma vez que os ribeirinhos que habitam o local há décadas não têm escritura das terras por essas serem florestas públicas não destinadas.

“Descobrimos que as terras são do estado (Amazonas) e buscamos orientação do Incra para saber o que poderia ser feito para nos proteger. Foi aí que nasceu a ideia de se criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável”, explica a agricultora.

A professora Marilourdes lembra com orgulho que, quando nasceu a Central das Associações, ribeirinhos de todas as comunidades apoiavam a criação da reserva.

“Nos primeiros anos, nossas reuniões tinham mais de 400 ribeirinhos, mas lá por volta de 2014, começou um movimento contrário. Começaram a espalhar uma conversa de que, se fosse aprovada a reserva, o ribeirinho seria proibido de caçar, pescar, tirar madeira para construir sua casa ou canoa, essas coisas. O comunitário ficou com medo de perder suas terras e a luta foi retrocedendo”, diz Marilourdes.

Segundo as lideranças, os boatos foram espalhados por políticos da região e pessoas ligadas a madeireiros ilegais vindos de Santo Antônio de Matupi, distrito de Manicoré.

A tensão entre apoiadores e não apoiadores piorou em 2015, quando aconteceu uma audiência pública sobre a proposta de criação da RDS do Rio Manicoré e a maioria dos presentes foi contra. “Fomos impedidas de falar nessa audiência pública”, afirma Clea.

Comunitários que apoiavam a Caarim na época relataram ter sofrido intimidações de anônimos, como ter suas voadeiras empurradas no rio para longe de suas comunidades.

O episódio conseguiu desarticular por cerca de quatro anos a luta da professora e da agricultora.

“De 2015 para cá, aumentou muito a grilagem de terras, a pesca ilegal, a extração de madeira da floresta. Os madeireiros colocaram a motosserra para funcionar quando viram que aquela audiência pública não deu em nada”, diz Clea.

 

Considerada uma das áreas mais preservadas da Amazônia, Manicoré tem registrado recordes de desmatamento desde 2015; no primeiro semestre de 2022, foram mais de 150 km2 de vegetação nativa cortados.

 

Dia a Dia Notícia

01 de setembro de 2022 às 12:56hs

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Rohingya: Justiça (The Millennial Source)

 

Rohingya

A impunidade não é uma opção

 

Em 15 de setembro, o Tribunal Penal Internacional de Haia abriu um exame preliminar dos supostos crimes de Mianmar contra sua minoria Rohingya. A investigação inicial, disse a promotora do TPI Fatou Bom Bensouda, poderia levar a uma investigação formal com foco em "atos coercitivos", resultando no "deslocamento forçado" de muçulmanos Rohingya no Estado de Rakhine de Mianmar, atos que podem incluir "privação de direitos fundamentais, assassinato, violência sexual, desaparecimento forçado, destruição e pilhagem.” 

Horas antes, os investigadores das Nações Unidas apresentaram um relatório de 444 páginas detalhando as aparentes violações cometidas pelos militares de Mianmar contra os Rohingya, um relatório que o embaixador de Mianmar na ONU chamou de “unilateral” e “falho”.

De acordo com a Anistia Internacional, mais de 750.000 refugiados Rohingya cruzaram para Bangladesh em 2017 depois que as forças de Mianmar atacaram a comunidade de minoria muçulmana, uma migração que o Jewish World Watch chamou de “um dos maiores êxodos em massa da história humana”, perdendo apenas nos últimos anos para o Deslocamento de Ruanda. 

Os Médicos Sem Fronteiras estimam que pelo menos 6.700 Rohingya, incluindo 730 crianças, sofreram mortes violentas do final de agosto ao final de setembro de 2017. Milhares de mulheres e meninas foram estupradas por militares e policiais em Mianmar, também conhecida como Birmânia. 

Centenas de assentamentos Rohingya foram arrasados ​​enquanto as forças de segurança atacavam com rifles, facões e lança-chamas, muitos totalmente destruídos e pavimentados, e as estruturas substituídas por quartéis do governo.

 

História repetida

O êxodo de Rohingya em 2017 foi um em uma série de deslocamentos causados ​​por abusos infligidos pelos militares de Mianmar. 

“As leis cada vez mais rigorosas visando os Rohingya, desde a década de 1970 até a década de 1990,” relata o Instituto Yaqueen,  “levou à violência em massa e abuso contra este grupo minoritário nas mãos da maioria budista birmanesa. A mira aberta do estado contra os Rohingya acabou levando 200.000 Rohingya a fugir para Bangladesh em 1978, e outra onda de 250.000 entre 1991-1992.”

“Em ambos os casos”, diz o relatório, “o governo de Bangladesh mandou a maior parte dos Rohingya em fuga de volta a Mianmar apenas para retornar às terras que haviam sido confiscadas e reapropriadas, forçando muitos a se tornarem trabalhadores em terras que antes possuíam”.

Mais de um milhão de refugiados Rohingya vivem atualmente em campos em Bangladesh, superlotados, sofrendo de doenças e falta de assistência médica, ausência de escolas, calor e desconforto. Embora eles tenham vivido por gerações, possivelmente séculos, no estado de Rakhine, o governo birmanês os vê como posseiros e negou-lhes a cidadania. 

Em uma decisão histórica em janeiro, a Corte Internacional de Justiça da ONU ordenou que Mianmar "tome todas as medidas ao seu alcance" para proteger os Rohingya do genocídio, descrevendo os 600.000 ou mais Rohingya restantes no país (muitos mantidos em cercados de arame farpado) como “Extremamente Vulnerável” à violência militar.

 

Tomar medidas para garantir a responsabilidade

Mianmar negou repetidamente qualquer campanha orquestrada contra os Rohingya. Oficiais do governo afirmam que os Rohingya queimaram e arrasaram suas próprias aldeias para atrair a atenção internacional.

Um oficial birmanês disse recentemente que o país e os militares estão “tomando medidas para garantir a responsabilização, incluindo a abertura de tribunais marciais para julgar os envolvidos em atrocidades”. Em um comunicado divulgado no início deste ano, a Comissão de Inquérito Independente patrocinada pelo governo de Mianmar disse que as "operações de libertação" de segurança do governo agiram sem "intenção genocida", contradizendo as conclusões dos investigadores da ONU. 

Mianmar admitiu, no entanto, que “crimes de guerra, graves violações dos direitos humanos e violações do direito interno ocorreram” contra os Rohingya. 

Anteriormente uma colônia britânica, a Birmânia conquistou a independência em 1948, um ano após o assassinato de seu líder nacionalista, o general Aung San. Começou como uma democracia parlamentar, como seus vizinhos recém-independentes, mas foi atormentada desde o início por conflitos étnicos. Os birmaneses étnicos formavam quase dois terços de sua população, enquanto o restante compreendia uma centena de grupos ou mais, incluindo os Shan, Karen, Rakhine e Mon, junto com um número significativo de indianos e chineses.

Em dezembro passado, Daw Aung San Suu Kyi, filha do general assassinado e atualmente líder civil de Mianmar, defendeu seu país contra as acusações de genocídio na Corte Internacional de Justiça. O caso foi apresentado pela Gâmbia em nome da Organização de Cooperação Islâmica de 57 nações e agora é apoiado pelas Maldivas, Canadá e Holanda. Embora laureada com o Prêmio Nobel da Paz, Daw Aung San Suu Kyi continuou a apoiar os militares de seu país e se recusou a condenar a perseguição aos Rohingya.

Um painel de 17 juízes do CIJ votou por unanimidade no início deste ano para ordenar que Mianmar tome "todas as medidas ao seu alcance" para prevenir o genocídio, incluindo a prevenção de matar ou "causar sérios danos físicos ou mentais" a membros do Rohingya, preservando as evidências do genocídio que já ocorreu.

 

Os perpetradores confirmam histórias de vítimas

No mês passado, em um desenvolvimento impressionante, o depoimento em vídeo surgiu de dois soldados desertores birmaneses, confirmando relatos de testemunhas e sobreviventes Rohingya de supostas atrocidades. 

Os homens descreveram campanhas lideradas por militares visando as comunidades Rohingya, que incluíam tortura, estupro em massa, assassinatos indiscriminados e incêndios criminosos, levando a ações criminais no TPI e em outros tribunais internacionais.

O soldado Myo Win Tun, do 565º Batalhão de Infantaria Leve, e o soldado Zaw Naing Tun, do 353º Batalhão de Infantaria Leve, uniformizados diante das câmeras, responderam perguntas, aparentemente sem coação, sobre as operações militares no estado de Rakhine em 2016 e 2017.

Eles confessaram ter matado aldeões em comunidades Rohingya, de acordo com Fortify Rights, um grupo de vigilância dos direitos humanos, que revisou e verificou as gravações. O soldado Myo disse que a ordem de seu comandante foi clara e direta: “Atire em tudo que você vir e ouvir”.

O soldado Myo obedeceu, participando da morte de 30 Rohingya, enterrando os corpos em uma vala comum.

O soldado Zaw disse que ele e seus companheiros receberam instruções semelhantes. “Mate tudo o que vir, sejam crianças ou adultos”, ordenou seu oficial.

“Nós destruímos cerca de 20 aldeias”, disse ele. 

“Nós atiramos indiscriminadamente em todo mundo”, disse o soldado Myo em seu depoimento. “Atiramos na testa dos muçulmanos e chutamos os corpos para dentro do buraco.” Ele também estuprou uma mulher Rohingya, ele admitiu.

O soldado Zaw, um ex-monge budista, disse que ele e outros membros de seu batalhão invadiram 20 vilas no município de Maungdaw. Ele não estuprou os aldeões, disse ele, porque tinha uma posição baixa demais para participar. Ele ficou de sentinela enquanto seus superiores estupravam mulheres e meninas Rohingya.

As declarações dos soldados , gravadas por uma milícia rebelde, são as primeiras a partir dos perpetradores, e não das vítimas. 

 

Primeira testemunha interna

Zaw e Myo aparentemente não estão presos, mas foram colocados sob custódia do TPI e poderiam prestar depoimento em tribunal sob proteção de testemunhas. Eles próprios podem ser julgados e, de acordo com fontes, “foram amplamente questionados por funcionários do tribunal nas últimas semanas”.

O ICC normalmente investiga figuras de alto escalão acusadas de crimes contra a humanidade, e não soldados comuns.

Os relatos dos soldados ajudarão a solidificar o caso no Tribunal Internacional de Justiça, onde Mianmar é acusado de tentar “destruir os Rohingya como um grupo, no todo ou em parte, por meio de assassinato em massa, estupro e outras formas de violência sexual, bem como a destruição sistemática pelo fogo de suas aldeias. ”

“É o tipo de informação que provavelmente fortalecerá o caso, feita por vários investigadores e defensores dos direitos humanos, de que a violência foi coordenada e ordenada de cima”, relata o CBC do Canadá .

“Este é um momento monumental para os Rohingya e o povo de Mianmar em sua luta contínua por justiça”, observou Matthew Smith, CEO da Fortify Rights . “Esses homens podem ser os primeiros perpetradores de Mianmar julgados no TPI e as primeiras testemunhas internas sob custódia do tribunal”.

 

Será que os EUA intervirão?

Por mais promissora que a situação possa parecer, o apoio de grandes atores globais tem estado ausente onde é mais crucial. A China, com seu histórico ambíguo em relação aos direitos indígenas e minorias étnicas, tem influenciado a Birmânia. Os Estados Unidos se retiraram do Conselho de Direitos Humanos da ONU e questionaram sua legitimidade. Além de desafiar o TPI e retirar o apoio, impôs sanções ao seu promotor-chefe e a outro funcionário.

Discursando na Assembleia Geral da ONU em Nova York em setembro, o presidente Donald Trump disse que “os Estados Unidos não fornecerão nenhum apoio em reconhecimento ao Tribunal Penal Internacional. No que diz respeito à América, o TPI não tem jurisdição, legitimidade e autoridade.”

Os Estados Unidos, entre outras nações, estão atualmente sob investigação do TPI por possíveis crimes de guerra no Afeganistão.

A defensora dos direitos humanos Kerry Kennedy, filha do falecido senador, chamou a administração Trump por seu "esforço sem precedentes para minar e desmantelar os esforços globais de combate à impunidade", incluindo o trabalho do Kennedy Center para "processar membros do exército de Mianmar que recentemente admitiram envolvimento no massacre da minoria muçulmana Rohingya do país. ”

“Nossa equipe internacional de advogados também teve que alterar a pesquisa e suas formas de ajudar as vítimas de atrocidades, devido ao medo dessas sanções ridículas”, acrescentou Kennedy.

Menos promissor ainda, as próximas eleições de novembro, as primeiras em Mianmar desde 2015, serão necessariamente “fundamentalmente falhas”, de acordo com a Human Rights Watch. “A eleição não pode ser livre e justa enquanto um quarto dos assentos forem reservados aos militares, o acesso à mídia estatal não for igual, os críticos do governo enfrentarem censura ou prisão e os Rohingya não puderem participar da votação”.

Dado tudo isso, que recurso os Rohingya têm? O Conselho de Segurança da ONU permaneceu evasivo durante anos, não condenando Mianmar. Os EUA e a União Europeia (UE) impuseram sanções a membros das forças de segurança birmanesas, mas pouco fizeram para pressionar sua liderança. 

“Eles também se recusaram a usar o termo “genocídio”. Tun Khin, presidente da Organização Birmanesa Rohingya do Reino Unido, tem dito, “em parte porque isso iria trazer consigo algumas obrigações legais para agir.”

 

Impunidade não é uma opção

O testemunho dos soldados, sem precedentes e por mais contundente que pareça, pode impulsionar os esforços para garantir a responsabilização se os EUA decidirem agir. A Lei de Direitos Humanos e Liberdade da Birmânia (S. 1186) foi aprovada na Câmara dos Representantes dos EUA várias vezes, mas ainda não apareceu no plenário do Senado. 

“O que vemos em Mianmar”, de acordo com William Pruitt, presidente do Departamento de Justiça Criminal e Estudos de Segurança do Endicott College, “é o poder da ideologia do genocídio”.

“Embora houvesse esperança de que Aung San Suu Kyi pudesse falar e proteger os Rohingya, ela falhou em fazê-lo”, disse ele à TMS. “Para manter algum poder no país, ela deu as costas ao genocídio”.

Pressionado pelos Estados Unidos e outros países, Mianmar pode ser obrigado a criar as condições necessárias para o retorno dos refugiados, junto com garantias de que viverão com dignidade e segurança. “Não bastam as expressões de solidariedade”, afirma António Guterres, secretário-geral da ONU. “[O] povo Rohingya precisa de assistência genuína.”

Payam Akhavan, um advogado que representa Bangladesh no caso contra Mianmar no TPI, pediu responsabilidade para evitar novas atrocidades contra os 600.000 Rohingya que permanecem em Mianmar.

“A impunidade não é uma opção”, disse Akhavan. “Um pouco de justiça é melhor do que nenhuma justiça.”

 

The Millennial Source

Damon Macias Moreno, 16 de outubro de 2020.