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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Educação Indígena: USP, FOIRN, NADZOERI (Jornal da USP)

 

USP assina acordo com associações indígenas para colaborar em escolas no Amazonas

 

São Gabriel da Cachoeira - Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real
 

Acordo de cooperação é resultado de 14 anos de parceria entre Faculdade de Educação e povos baniwa-koripako, da região do Rio Negro; atividades servirão à formação docente, assessoria local em política educacional e produção de novos conhecimentos de base intercultural

A Faculdade de Educação (FE) da USP celebrou um termo de cooperação técnica, não com universidades, mas com dois órgãos indígenas sediados em São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Trata-se da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e da Organização Baniwa e Koripako Nadzoeri – integrante da Foirn e responsável pelo Içana, território dos povos baniwa-koripako na região do Rio Negro. O foco da cooperação são ações de educação escolar indígena nessa região do Brasil.

Publicado no Diário Oficial em 2 de setembro de 2022, o acordo foi idealizado pelas associações indígenas em parceria com o Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional (Ceunir), da FE. Prevendo intercâmbios com docentes, pesquisadores, estudantes, técnicos e líderes das três entidades, o acordo também propõe ações conjuntas de pesquisa, ensino e extensão. Essas atividades servirão à formação docente, à assessoria local em política educacional e à produção de novos conhecimentos de base intercultural, em colaboração com as comunidades federadas à Nadzoeri e à Foirn.

Para o professor Elie Ghanem, coordenador do Ceunir, a importância da iniciativa é dupla. “Além de estender a capacidade de atuação da Feusp para fazer interlocuções, extensão e pesquisa no Alto Rio Negro brasileiro, traz para a atenção da faculdade a riqueza e atualidade dos conhecimentos, problemas e inovações que se podem encontrar nas escolas indígenas contemporâneas – objetos de atenção crescente nas mais diversas áreas de pesquisa científica”, afirma. Além disso, o professor ressaltou que “enquanto a cooperação acadêmica costuma se limitar aos arranjos entre instituições de educação superior, a parceria da FE com a Foirn e a Nadzoeri intensifica relações entre a USP e as organizações da sociedade civil, beneficiando uma rede com dezenas de escolas indígenas municipais e estaduais”.

O acordo tem duração de cinco anos, podendo ser renovado. “[O ato] reflete a intenção de uma parceria científica duradoura com esses grupos indígenas, já que as relações de colaboração que o documento reconhece foram impulsionadas – e impulsionaram – linhas de pesquisas em Educação Escolar Indígena”.

 

Padrão do catálogo de obras de Denilson Baniwa. Disponível neste link.

Trabalho de campo em 2018 na Escola Baniwa Eeno Hiepole, comunidade Canadá, bacia do Içana. Ao centro, em pé: Diana Pellegrini, Elie Ghanem e Antônio Góes Neto, pesquisadores do Ceunir. Ao centro, ajoelhado, Nelson Thomé Baniwa, então coordenador da escola, acompanhado dos colegas docentes e de estudantes do ensino médio - Foto: Arquivo Ceunir

 

Parceria formalizada

São Gabriel da Cachoeira, já alcunhada “a cidade mais indígena do Brasil”, situa-se no extremo noroeste do Amazonas (na região apelidada Cabeça do Cachorro) e faz fronteira com a Colômbia e a Venezuela. É o município de referência da chamada área etnográfica do Alto Rio Negro. Ali, vivem mais de 20 etnias e falam-se 19 línguas, num complexo sistema regional. Essa variedade de povos configura redes ancestrais de relações e trocas culturais, econômicas, matrimoniais, linguísticas, ecológicas, sociais e cosmológicas.

A colaboração da FE com órgãos indígenas e indigenistas de São Gabriel em temas de educação escolar e política educacional remonta a 2008, quando o professor Elie Ghanem, hoje coordenador do Ceunir, prestou assessoria à elaboração do Plano Municipal de Educação local. De acordo com informações do centro, havia intenso e qualificado apoio da prefeitura e de parceiros nacionais e internacionais para a criação de projetos escolares experimentais. Na época, a discussão se dava em nível comunitário para que os projetos fossem implantados nas escolas – todas indígenas – da ampla rede pública municipal. Essa experiência, com seus sucessos, dificuldades e transformações, veio a se tornar emblemática entre os casos-modelo da chamada “educação escolar indígena diferenciada”, bandeira reivindicada pelos grupos originários desde a Constituição de 1988.

Seguiram-se, a partir de 2011, pesquisas coordenadas por Ghanem, com fomento da Fapesp e do CNPq, das quais resultaram as primeiras dissertações, teses e artigos produzidos na convivência com escolas e comunidades kotiria, tuyuka, baniwa-koripako. O mais recente ciclo, realizado entre 2018 e 2021, destinado a identificar atores e condições-chave na seleção dos saberes a ensinar, envolveu cinco escolas baniwa-koripako do rio Içana e afluentes, além de ampliar comparações para escolas guarani de São Paulo e guarani-kaiowá, do Mato Grosso.

“As conversações levaram ao todo cinco anos. Os trâmites foram reanimados depois que se atravessaram os períodos mais difíceis da pandemia no Amazonas e em São Paulo. À distância, os laços se fortaleceram no enfrentamento solidário da crise e no luto diante da perda de eminentes lideranças do rio Negro pela covid-19, como foi o caso do diretor da Foirn Isaías Fontes, baniwa, que estivera presente e ativo nas reuniões preliminares sobre a cooperação”, afirmam os pesquisadores do Ceunir.

 

O professor Juvêncio “Dzoodzo” Cardoso faz a assinatura solene do Termo de Cooperação da Nadzoeri-Foirn com o Ceunir na Escola Baniwa Eeno Hiepole, comunidade de Canadá, rio Ayari, bacia do Içana - Foto: Lay Cardoso

 

Desenvolvimento Sustentável


Dos encontros na Maloca da Foirn, em fev. 2020, participaram lideranças baniwa como André Fernando, Juvêncio Cardoso, Isaías Jairo da Silva, Nelson Thomé, Isaías Fontes, Mônica Apolinário e Bonifácio José, além de outros professores e acadêmicos indígenas, dos pesquisadores do Ceunir e de parceiros convidados - Foto: Juvêncio Cardoso

 

Depois da publicação no Diário Oficial, as entidades inauguraram uma agenda de diálogo para detalhar os planos de ação de forma participativa. As partes devem buscar juntas fontes diversas para custear as atividades.

“Essa parceria tem a perspectiva de subsidiar e fortalecer a implementação de ações dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental dentro do território indígena, visando sempre o desenvolvimento territorial sustentável indígena, como parte da política nacional”, afirma o professor baniwa Juvêncio “Dzoodzo” Cardoso, coordenador da Nadzoeri. Ele se refere à Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) de Terras Indígenas, instituída pelo Decreto nº 7.747/2012. O primeiro PGTA dos Baniwa-Koripako, começado em 2015, foi concluído e publicado em 2021 e confere uma importância estratégica à educação escolar.

Cardoso lembra que o acordo surge de uma antiga e cuidadosa caminhada conjunta. “Todo esse processo de construção está de acordo com os nossos protocolos de consulta, respeitando as convenções da Organização Internacional do Trabalho e a consulta livre e esclarecida. Essa parceria resulta de um longo processo, e o mais importante é que ela vem pela demanda da Nadzoeri. Já existe um histórico de envolvimento”, lembra.

 

Próximos Passos

A jovem comunicadora baniwa Lainice Cardoso, de 13 anos, estudante do 8º ano na Escola Baniwa Eeno Hiepole – situada na comunidade Canadá, no remoto rio Ayari, afluente do Içana –, publicou fotos da assinatura do Termo de Cooperação nas redes sociais: “Os estudantes e professores da Escola Baniwa Eeno Hiepole comemoram o momento de assinatura do Termo de Cooperação Técnica e estão confiantes e esperançosos com essa construção de parceria. Estamos assim fazendo e marcando um novo momento na história da Educação Escolar Baniwa e Koripako, junto com os demais 23 povos indígenas do Alto Rio Negro”, escreveu.

O próximo marco deste desafio será o sexto FNEEI (Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena), que acontece de 30 de novembro a 3 de dezembro em Brasília, e entregará à equipe de transição do governo Lula suas reivindicações para as escolas indígenas diferenciadas. “Será a oportunidade de recuperar os recentes retrocessos, reconstruir e consolidar direitos, ouvindo as diferentes vozes do movimento indígena contemporâneo. Eventos como o Fórum expressam o grande empoderamento do movimento dos professores, lideranças e comunidades indígenas, que atualizam suas reivindicações e direitos educacionais, cada vez mais fortalecidos e instrumentados para uma interlocução qualificada com os poderes públicos e outros atores institucionais”, afirmam os pesquisadores do Ceunir.

“Para nós, é um privilégio e um constante aprendizado trabalhar nessa perspectiva fortemente participativa das parcerias com a Foirn e a Nadzoeri, porque os processos de consulta ampliada na formatação dos projetos só enriquecem tanto as vivências quanto o conhecimento produzido”, destaca Ghanem. Ele afirma que projetos de futuro nesta região elevam o desafio de produzir resultados científicos, institucionais e educacionais relevantes para essas populações.

Em São Gabriel, a iniciativa pretende lançar convites a professores, estudantes, lideranças, gestores educacionais, entidades parceiras, docentes universitários e pesquisadores. A ideia é desenvolver atividades que criem, com as redes locais de atores educacionais, espaços plurais de diálogo, estudo, qualificação profissional e debate científico e social.

 

Ceunir

Criado em 2015, o Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional (Ceunir), da FE, constituiu as linhas de ação e a rede de pesquisadores em um processo colaborativo. Em sua forma atual, o grupo tem mais duas linhas de investigação, além da Educação Escolar Indígena: as pesquisas em Educação e Direitos Humanos, e em Tendências em Inovação Educacional.

Os trabalhos de campo do Ceunir envolvem a prestação de assessoria a equipes escolares, bem como oficinas com docentes, lideranças, estudantes e outros públicos. As atividades são planejadas processualmente, em conjunto com os grupos locais. Essa abordagem, ao mesmo tempo em que fornece uma contrapartida mais direta à colaboração das comunidades nas investigações, cria novas chances de convivência, de compreensão, de observação participante e de coleta de informação.


Elie Ghanem é coordenador do Ceunir - Foto: Divulgação / IEA - USP

Saiba mais: https://www4.fe.usp.br

 

Jornal da USP

Tabita Said com informações de Diana Pellegrini e Elie Ghanem

28 de novembro de 2022.

sábado, 17 de outubro de 2020

Maruwai: Abandono (Brasil de Fato)

  

Maruwai

Abandono do Governo

 

Malocão de reunião foi adaptado e hoje também serve como sala de aula para crianças e adolescentes - Jefferson Ferreira

 

[Áudio]: https://soundcloud.com/projetoluzevida/maruwai-abandono-do-governo 

  

Você consegue imaginar uma escola sem paredes? Ignorados pelo governo estadual de Antonio Denaruim (sem partido), essa é a realidade vivida por milhares de estudantes em Roraima. Das 32 escolas criadas e credenciadas pelo Estado na Terra Indígena São Marcos (região norte), 18 atendem estudantes do ensino médio e, destas, apenas cinco têm prédios construídos. 

Uma das escolas "sem paredes", na comunidade de Maruwai, município de Pacaraima, na Terra Indígena de São Marcos, conta com 82 crianças e adolescentes. A Escola Estadual Indígena José Joaquim fica localizada a 150 km da capital Boa Vista e também a 150 km de Pacaraima, cidade que faz fronteira entre Brasil e Venezuela

Fundada em 1987, inicialmente a escola recebeu o nome de Elias Fraxe e atendia 20 alunos entre a 1ª e a 4ª séries. Em 2004, a instituição passou a se chamar Escola Estadual Indígena José Joaquim, em homenagem a um dos fundadores da comunidade. Atualmente, atende alunos do ensino fundamental ao médio.

Até hoje, porém, não existe uma estrutura fixa para a instituição de ensino. A comunidade conta com barracões construídos pelos moradores e tem sete salas de aulas improvisadas. A estrutura não tem paredes, o que dificulta a concentração dos estudantes e impede as aulas durante os períodos de chuva.


Área do posto de saúde que serve como sala de aula improvisada / Jefferson Ferreira


O único prédio com paredes é o posto de saúde, que também é utilizado como sala de aula improvisada pelos moradores da comunidade. Um laboratório de informática com dez computadores com acesso à internet também está, teoricamente, à disposição dos estudantes. Mas pela falta de estrutura adequada não é possível ter um bom atendimento aos alunos. 

A cozinha da comunidade também foi adaptada para que pudesse ser usada como sala de aula. Há cadeiras, mas não há suporte ou mesas para que todos os estudantes apoiem cadernos e livros. 


Cozinha da comunidade virou sala de aula improvisada / Jefferson Ferreira


Localizados no centro da comunidade, os barracões de telhado de palha ficam expostos durante todo o dia a barulhos do cotidiano, como máquinas, motosserras, roçadeiras e tratores. 

Além das chuvas e do barulho externo, os educandos também sofrem com as pragas que, ano a ano, atingem a comunidade. Pium, carapanã e maruim são comuns na região.

falta de estrutura torna o trabalho inviável para os professores e atrapalha o aprendizado dos 36 alunos do ensino fundamental I, 35 do fundamental II e 11 do ensino médio. As turmas são multisseriadas, ou seja, há apenas uma professora para alunos de diversas séries.


Sala de aula de estudantes adolescentes da comunidade / Jefferson Ferreira

 

Além da falta de estrutura física, hoje a escola tem escassez de materiais e livros didáticos atualizados para todas as séries; não há funcionários na secretaria nem merenda escolar todo mês. 

Há mais de 30 anos, os moradores cobram o básico do governo: uma escola como qualquer outra.

"Esperamos que a nossa solicitação e o nosso sonho de muito tempo venha se concretizar, com a tão esperada construção do prédio escolar completo com sete salas de aulas, diretoria, secretaria, copa, cozinha, biblioteca, sala de leitura, laboratório de informática com computadores, internet, sala de professores e miniauditório para reuniões. Que tenhamos materiais didáticos, materiais escolares, materiais permanentes, livros didáticos, merenda escolar e transporte escolar. Também é necessário ter pessoal de apoio, como merendeira, zelador e secretário. Enfim, uma escola toda climatizada e com banheiros", diz um relatório sobre a comunidade, elaborado pelos moradores. 

Jefferson Ferreira, da etnia Macuxi, é presidente da Associação dos Povos Indígenas de Roraima (APIRR). Professor e estudante do curso de Licenciatura Intercultural pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), ele explica que a comunidade se sente abandonada pelos governos municipal, estadual e federal. 

Sobre o governo estadual, conta que apenas os professores são disponibilizados pelo Estado, ainda assim de forma precária. “O que ele tem nos dado aqui é o apoio com recursos humanos. São profissionais com contrato temporário. Apenas três professores efetivos. Todo ano tem seletivo e as aulas sempre começam atrasadas”, diz Ferreira.


“Sem a escola, nós estamos abandonados”


Jeans da Silva, da etnia Macuxi, tem 43 anos e também é morador da comunidade Maruwai. Pai de crianças e adolescentes, ele sonha com a escola para que seus filhos possam ter uma formação de qualidade. "A escola é importante para as crianças porque é da escola que temos os nossos futuros, da escola que vai sair doutores, enfermeiros, médicos, advogados, professor, grandes lideranças e outros profissionais. Tudo passa pela escola. Sem a escola, nós estamos abandonados. Hoje a construção da escola é de suma importância para nossa comunidade", explica.


Sala de aula, diretoria, secretaria e biblioteca improvisados pelos moradores da comunidade / Jefferson Ferreira


A questão dos profissionais da educação também é marginalizada pelo governo estadual, segundo Jeans: "Não há espaços para os professores desenvolverem suas atividades pedagógicas e educacionais. Não temos apoio de nada, temos apenas os professores do quadro temporário e isso é uma grande dificuldade para desenvolvermos as atividades todos os anos. Não tem concurso, o último aconteceu em 2002. Teve outro em 2008, mas não foi específico para os povos indígenas". 


“Não há espaço para os professores desenvolverem suas atividades”


"Dessa maneira não vamos avançar com a educação, não vamos ter educação de qualidade que nós tanto esperamos e sonhamos. Atualmente a nossa escola está abandonada pelo Estado, pelo Município e pela União. Não temos materiais didáticos, não temos materiais de secretaria, não temos espaços físicos. As escolas das comunidades são construídas com cobertura de palha. O Malocão feito pela comunidade para fazer suas reuniões é aproveitado como sala de aula", detalha Jeans. 


A construção da nova escola

Sem ter as demandas atendidas pelo governo estadual, os moradores decidiram construir a escola por conta própria. Todas as 40 famílias que moram na comunidade estão participando da obra, que começou há 6 meses. A meta é que o prédio esteja pronto até o final de 2020.


Mães e pais reunidos no prédio que estão construindo para a nova escola, agora com parede e telhado resistentes / Jefferson Ferreira

 

Ivanete Silva dos Santos, também da etnia Macuxi, é mãe de uma adolescente de 15 anos e está diretamente envolvida na construção da escola. 

Cansada de ver os cadernos do filho molharem durante o período de chuvas, se juntou aos demais moradores para erguer a escola nunca construída pelo governo estadual. 

Valdinei da Silva Oliveira tem 58 anos e é da etnia Wapichana. Ele explica que só não está todos os dias trabalhando na construção da escola porque não é sempre que tem material para a construção. O telhado está inacabado por falta de telhas para a cobertura. A falta de cimento, portas e janelas também está atrasando a entrega do prédio. 


“Temos profissionais formados e esperamos o concurso público”


"Sou pai, construtor e professor daqui. Essa escola foi fundada em 1987 e até hoje não recebeu nenhuma construção que é da competência do governo. Hoje já temos profissionais formados e estamos esperando o concurso público", explica Valdinei.


Construção da escola deve acabar no final de 2020. Enquanto isso, as aulas são dadas no malocão / Jefferson Ferreira

 

Falta de estradas e pontes deixam os moradores ilhados

As estradas e pontes que dão acesso à comunidade estão em péssimas condições, o que atrapalha a chegada da merenda escolar e dos materiais de construção para a escola, além de dificultar a vida dos professores, que precisam viajar 150 km até Boa Vista para receber o salário. Com a precariedade, o transporte escolar tem muita dificuldade de acessar a comunidade e a demora na volta dos professores para o território acaba atrasando a continuidade das aulas. 

A comunidade também se preocupa com os professores que não tem qualquer segurança para buscarem os salários na capital do estado. 


“O governo nunca fez um levantamento das nossas demandas e produção nas comunidades”

 

“O governo diz que não constrói estradas e pontes porque os indígenas não tem produtos agrícolas para o escoamento. Mas isso não é verdade. O governo nunca fez um levantamento das nossas demandas e da nossa produção nas comunidades” explica Jefferson Ferreira, presidente da APIRR.

Segundo ele, o governo não constrói as estradas e pontes por conta de interesses outros, já que na região há feiras todos os anos - tanto no Baixo quanto no Médio e Alto São Marcos - onde são vendidos produtos agrícolas das comunidades indígenas da região. 

Jeans explica que para chegar a Boa Vista é preciso atravessar o Rio Uraricoera, que liga Maruwai à capital de Roraima de balsa, o que segundo ele é um transtorno. O trajeto conta com um trecho de balsa; travessia da Ponte do Maruwai que está numa situação precária; e travessia por um igarapé sem ponte, passando pela Comunidade Pato. “Quando a balsa quebra nós ficamos ilhados por meses. No período do inverno ficamos isolados porque onde moramos é de difícil acesso”, explica Jeans.


Merenda escolar

“A merenda escolar não tem chegado de forma correta, recebemos apenas alguns itens. Quando vem frango, não tem feijão, não tem arroz. Quando vem arroz, falta leite, falta macarrão. Vem sardinha que é enlatado e isso não é alimento saudável para nossas crianças. Sempre vem faltando algo para complementar a merenda escolar. Às vezes chega verdura toda machucada e sem condições de aproveitamento”, conta Jeans, pai de crianças e adolescentes que estudam na escola.


Governo Federal

“O governo federal de Jair Bolsonaro quer tirar o recurso do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) para investir em ação social. Eu não concordo porque é pouco dinheiro para investir na educação, não temos dinheiro para comprar merenda, para pagar o professor, e nem pra construir, o governo quer tirar 5% do FUNDEB nacional para pagar bolsa família. Não concordo”, pontua Jeans. 

Jefferson Ferreira, da APPIR, também discorda das políticas implementadas pelo governo de Jair Bolsonaro. “Sobre os professores do processo seletivo, o governo Bolsonaro aprovou lei, que trata da reforma administrativa, onde congela os investimentos e salários dos trabalhadores. Esperamos o concurso público específico e diferenciado para os professores indígenas. Mas desse jeito, acho que nunca vamos conseguir com tantas aprovações no congresso contra os profissionais da educação. Isso vai impactar o nosso estado e o nosso país”, desabafa. 

“O governo federal quer acabar com os direitos dos povos indígenas, tudo que conquistamos como nosso direito, o governo federal quer acabar. Está fazendo de tudo para tirar aquilo que é nosso garantido em lei”, finaliza o presidente da APIRR.


“Vai ter um colapso na educação escolar indígena”


As entrevistas levaram quase um mês para serem feitas e enviadas já que as condições de internet na comunidade são muito precárias. Jeans, emocionado, desabafa para a reportagem do Brasil de Fato ao fim da conversa: “O Estado de Roraima está abandonado na educação. Daqui mais uns anos vai ter um colapso na educação escolar indígena se não cuidarmos enquanto é tempo". 


Nota da Secretaria de Educação e Desporto de Roraima

Procurada para responder ao teor da reportagem, a Secretaria de Educação e Desporto de Roraima enviou uma nota para o Brasil de Fato, informando que "a educação indígena tem suas peculiaridades, dentre elas, o direito de a comunidade indígena definir sobre a abertura e formalização de uma escola, independente de haver uma unidade já em funcionamento próximo à comunidade. Esse é o caso da Escola Estadual Indígena José Joaquim, localizada no município de Pacaraima".

Segundo a Secretaria, à época da criação da escola, "a comunidade solicitou, mesmo sabendo da dificuldade em obter de imediato um prédio escolar. Hoje a unidade de ensino atende a 80 alunos no Ensino Fundamental Anos Iniciais (1° ao 5° ano) e Anos Finais (6° ao 9° ano). E tem 15 professores que lecionam o conteúdo estabelecido na legislação educacional vigente e seguem as diretrizes da educação nacional".

E prossegue a nota oficial: "Em relação à estrutura física, a Seed informa que o Governo de Roraima está trabalhando para mudar a realidade dos prédios escolares da rede estadual de ensino tão necessitados de reformas, reparos e manutenção. Esse é o caso da Escola Estadual Indígena José Joaquim. Será feito o levantamento da necessidade de estrutura física, mobiliária e de equipamentos em geral para serem adotadas as medidas, como abertura de processo, por exemplo".

Sobre a falta de merenda escolar, a nota da Secretaria diz que Roraima, por conta da pandemia de Covid, segue com aulas remotas, e que "em período de aula regular, a merenda escolar é a mesma ofertada a todos os estudantes da rede, com o envio de gêneros não perecíveis e produtos da agricultura familiar para o preparo da alimentação escolar".


Brasil de Fato

Martha Raquel e Rogério Jordão

São Paulo (SP), 17 de outubro de 2020 às 10:10hs

sábado, 29 de agosto de 2020

Covid-19: Línguas e Culturas Ameaçadas (BBC)

 

Morte de Anciãos Indígenas

Línguas e Culturas Ameaçadas

  

Aritana era poliglota e conhecia profundamente a cultura de diversos povos do Xingu. Foto: AFP.


Quase um mês após a morte do líder indígena Aritana Yawalapiti, aos 71 anos, por covid-19, seu filho mais velho, Tapi Yawalapiti, relembra à BBC News Brasil como eram as conversas cotidianas com o pai.

Um dos mais importantes e respeitados líderes dos povos do Território Indígena do Xingu, Aritana tinha ascendência Yawalapiti e Kamayurá e falava dez línguas, de pelo menos três troncos linguísticos diferentes.

"Quando meu pai falava comigo em Yawalapiti, eu compreendia tudo e respondia em Kamayurá, a língua da minha avó, mãe do meu pai", explica Tapi em português, uma das cinco línguas faladas por ele.

Quando seu pai morreu, Tapi estava estudando a língua Yawalapiti com Aritana. Sua partida foi um golpe duro para a sobrevivência deste idioma, que está 'em perigo crítico' de desaparecer, segundo a Unesco.

"A perda do meu tio Aritana é a perda de 98% da nossa língua", disse Watatakalu Yawalapiti, sobrinha de Aritana, em uma declaração após a morte do tio.

Tapi explica que ainda há alguns outros falantes da língua Yawalapiti vivos — dois tios mais velhos, por exemplo — mas que seu pai tinha um conhecimento mais profundo, mais técnico, que tentava passar para os mais jovens.


Tapi Yawalapiti vai defender um mestrado sobre sua língua materna na Universidade de Brasília. Foto: Tapi Yawalapiti.

A língua Yawalapiti não é a única em risco de desaparecer.

O Brasil tem pelo menos 190 idiomas que correm o mesmo risco, segundo o Mapa das Línguas em Perigo da Unesco. A morte de diversos anciãos indígenas devido à pandemia torna essa situação ainda mais crítica.

Sem controle, a epidemia de covid-19 ameaça destruir, junto com a vida de milhares de pessoas, culturas inteiras de alguns povos, levando ao que representantes indígenas chamam de "verdadeiro extermínio de etnias".

"Os anciãos que estão desaparecendo são as bibliotecas vivas de todo esse conhecimento tradicional — da língua, dos costumes, das danças, da música. Esse conhecimento se preserva nos mais velhos, e é através deles que chega aos jovens e se reproduz", explica Angel Corbera Mori, professor de linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em línguas ameríndias.

As perdas de idosos indígenas acontecem no país todo. Só no Xingu, a covid-19 causou a morte do ancião Juca Kamayurá, do líder Jamiko Nafukuá e de Mamy Kalapalo, chefe da aldeia Kuluene.

Entre os Kokama, no Amazonas, ao menos 37 morreram com sintomas de covid-19, segundo a Associação dos Índios Kokama Residentes no Município de Manaus (Akim), a maioria idosos.

Em Alter do Chão, no Pará, a doença levou Lusia dos Santos Borari, de 87 anos, ainda no início da pandemia, em março. Em Roraima, morreu em junho Bernaldina José Pedro, anciã de 75 anos do povo Macuxi que vivia na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Em uma ação levada ao STF, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) disse que "falhas e omissões" do poder público no combate à epidemia do novo coronavírus entre os povos indígenas brasileiros estão levando a um "verdadeiro genocídio".

Essas populações têm, segundo a entidade, uma taxa de letalidade pelo vírus de 9,6%, enquanto, na população em geral, a taxa é de 4%, segundo o Ministério da Saúde.

A Apib diz ainda que o governo está não apenas falhando, mas ativamente colocando os indígenas em risco. Diversos pesquisadores já alertaram para o risco de a pandemia dizimar essas populações no país.


Aldeias yanomami também estão ameaçadas pela pandemia. Foto: Victor Moriyama / ISA.

O governo nega que haja negligência, mas batalhou na Justiça para não precisar cumprir os pedidos da Apib.

No entanto, o STF determinou em votação unânime que o governo tome medidas para garantir o combate à pandemia e atenda a medidas específicas pedidas pela entidade, como a criação de uma barreira sanitária e retirada de invasores de terras indígenas. 

Perda Irreparável

Bernaldina José Pedro, de 75 anos, era uma guardiã dos costumes tradicionais e da língua Macuxi. Ela tinha acabado de voltar para sua casa, na comunidade Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, quando morreu de covid-19 no fim de junho, após 11 dias de batalha contra a doença.

Ela contraiu o coronavírus na comunidade pouco tempo depois de voltar de uma temporada no estúdio do filho adotivo (também em Roraima) o artista Macuxi Jaider Esbell, que estava aprendendo a falar Macuxi com a mãe.

Essa língua não corre risco de desaparecer, porque tem muitos falantes e até já foi sistematizada em dicionários, mas muitos conhecimentos tradicionais se foram com Bernaldina.

"Ela conhecia um vocabulário completo, uma variedade enorme de construções", afirma Jaider. "É uma perda irreparável."


Bernaldina morreu em junho, vítima de covid-19. Foto: Jaider Eisbell.

Ele era aprendiz de Macuxi, um trabalho que envolvia muitas práticas. "Ela passou um período fazendo panelas de barro, fazendo a tradução dos cantos comigo, falando os nomes dos materiais, dos elementos (na língua materna). Infelizmente, esse processo foi interrompido", lamenta.

"Embora minha língua esteja salva, é sempre difícil manter, porque existe no Brasil a ilusão de uma língua padrão (o português), de uma língua 'nacional', e as crianças cada vez mais estão aprendendo só o português e tendo menos contato com a língua materna", afirma Jaider, que pretende fazer um memorial em nome de Bernaldina.

Ele diz que vai continuar fazendo as atividades que ela sempre quis preservar, como os trançados, os cantos, os remédios, as panelas de barro, atividades culturais.

Jaider conta que a comunidade da mãe em Roraima sofreu muito com a pandemia, especialmente no início. "A gente teve uma onda bem difícil, perdemos muitos professores e anciãos", diz.

Reunindo Um Povo

Em meio à mais recente luta para que que seu direito à saúde seja garantido, os Yawalapiti continuam sua batalha de décadas para preservação do seu povo, que já esteve próximo de desaparecer.

"A nossa história é muito longa, meu povo quase foi extinto", conta Tapi. "Morreram muitos e restaram só seis ou sete pessoas, pré-adolescentes, que foram morar em outras aldeias."

A última aldeia desapareceu, e os Yawalapiti que restaram cresceram em meio a outros povos, falando outras línguas no dia-a-dia.

"Eles ficaram muito tempo morando longe, acabaram não tendo mais contato. Então, havia o meu povo, mas ele estava espalhado", conta Tapi.

Com a chegada dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, sertanistas que lutaram pela demarcação de terras indígenas no Xingu, veio também seu alerta de que ameaças como os garimpos e o desmatamento estavam cada vez mais próximas.

Líderes indígenas então se atentaram para a importância da preservação de seus povos e tiveram ajuda dos irmãos Villas Bôas nessa tarefa.


Aritana era uma liderança reconhecida pelos diversos povos do Xingu. Foto: Tapi Yawalapiti.

Paru, avô de Tapi e pai de Aritana, foi um dos líderes responsáveis por reunir novamente os Yawalapiti espalhados e reativar a antiga aldeia.

Hoje, Tapi trabalha para concluir seu mestrado na Universidade de Brasília, para o qual estudou e relatou a língua Yawalapiti com o pai. A defesa da dissertação teria sido em maio, mas foi adiada para novembro por causa da pandemia. "Esse projeto será uma grande lembrança do meu pai", conta ele.

Além de chefe da aldeia Tuatuari, Aritana era defensor do território indígena, ativista pelos direitos dos povos do Xingu e guardião da cultura para os Kamayurá e Yawalapiti — e até para outros povos que não faziam parte da sua ascendência.

"Meu pai era visto como uma liderança geral no Xingu", diz Tapi, que agora tem a missão de assumir o papel de líder da etnia e defensor do Xingu que era de seu pai.

"O Xingu está de luto, mas eu recebi muita força, muita gente dizendo 'você agora assumirá o papel do seu pai'. É uma grande responsabilidade", diz ele.

"Nossa cultura é muito forte — os jovens dançam, pintam, estão cantando as músicas, mas o que está enfraquecido é a língua materna", afirma.

Faz parte de seus planos produzir um livro didático para ensinar a língua para crianças e jovens de seu povo — muitas delas falam línguas como Kamayurá.

O quanto o idioma é falado de forma fluente por gerações mais jovens e usado no dia a dia são alguns critérios para estabelecer o quanto ele está em perigo, explica o linguista Angel Corbera Mori.

"A preservação da língua é parte essencial da cultura, sem falantes, ela desaparece, e, com ela, se vão se aspectos muitos centrais."

A entrada de missionários religiosos nos territórios sem autorização, que visam converter os indígenas e fazem os jovens terem menos interesse pela cultura tradicional, é apontada por ele como uma das principais ameaças à preservação das culturas indígenas.

Mori ressalta que, no momento, no entanto, as preocupações são muito maiores. "A ameaça hoje é aos próprios falantes. A preocupação no momento é com a vida." 

 

BBC News Brasil

Letícia Mori

29 de agosto de 2020 às 10:33h

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Macuxi (Brasil de Fato)

   

Macuxi

Fim na Colonização Forçada

 

Viagem feita pelos estudantes de língua Macuxi e Wapichana, em 2018, para o Festival de Panelas de Barro na comunidade Raposa I - Arquivo pessoal

Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR) tem desempenhado um papel muito importante na valorização e no fortalecimento da língua e da cultura Wapichana e Macuxi no Brasil. 

Desde 2009 o Instituto Insikiran promove cursos de extensão em Língua e Cultura Wapichana e Macuxi. O projeto foi elaborado pela professora Ananda Machado, junto com Vítor Francisco Juvêncio, Wanja da Silva Sebastião, Eliza Silvino da Silva e Venceslau, que são professores e alunos do curso Licenciatura Intercultural, no Insikiran . Atualmente há uma parceria com a Organização dos Indígenas da Cidade (ODIC) e Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIRR). Os professores são todos indígenas Macuxi ou Wapichana (voluntários vinculados à ODIC ou acadêmicos da UFRR). 

Há três níveis de aprendizado (Iniciantes, Intermediário e Avançado), que conta com a Oficina de Produção de Dicionário Multimídia Wapichana e a Oficina de produção da materiais didáticos na língua Macuxi. Não há limite de vagas. 

Segundo a coordenadora do Programa de Valorização das Línguas e Culturas Indígenas de Roraima e professora do curso Gestão Territorial Indígena do Instituto Insikiran, Ananda Machado, o objetivo do projeto é contribuir na valorização do uso da língua e cultura Wapichana e Macuxi nas comunidades indígenas e na cidade, dentre outras metas. Os cursos são direcionados aos estudantes indígenas da UFRR, mas são abertos a todas as pessoas que se interessam pelo tema.

Marcos Braga, professor do curso de licenciatura intercultural e diretor do Instituto Insikiran, explica que preservar a cultura indígena é preservar a história do Brasil.

“A questão das línguas indígenas passa por um processo de revitalização, do ponto de vista do próprio movimento indígena, de valorização também quanto identidade, quanto cultura, nesse processo de retomada dos territórios tradicionais, nesse processo da educação diferenciada multicultural, multilíngue”. 

Ele explica que a formação das línguas Wapichana e Macuxi está se ampliando cada vez mais. O projeto, além de fazer parte do Programa de Extensão Universitária (ProExt), também realiza formações em diversas comunidades por todo o estado de Roraima. 

Ivo Cípio Aureliano, do povo Macuxi, hoje advogado, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e integrante da Rede de Advogados Indígenas do Brasil, foi aluno e, posteriormente, professor da língua Macuxi no curso de extensão do Instituto Insikiran, da UFRR. 

Percebendo a necessidade de defender juridicamente seu povo, ele, que também trabalha como intérprete e tradutor na área jurídica, se formou em direito e para fazer parte de diversas iniciativas de preservação da cultura e dos direitos indígenas em Roraima. 

Ivo cresceu num ambiente em que até hoje só se fala Macuxi, já que tanto seu pai, quanto sua mãe, se comunicam nesse idioma. Por conhecer a língua falada, em 2012 entrou no curso de extensão para aprender também a escrita Macuxi. 

Foi a partir do conhecimento da escrita e do incentivo de linguistas da Universidade que Ivo decidiu buscar mais informações sobre a história de seu povo o que resultou em um convite para se tornar professor. 

Ele destaca que o conhecimento da língua é importante para que se possa conhecer a cultura e a história dos povos originários. Um dos pontos do curso que mais chamaram a atenção de Ivo foi a história da construção da escrita e como isso é estudado hoje.

Ele explica que foi um ambiente muito propício para que pudesse se aproximar de outras pessoas que se interessavam e trabalhavam com sua língua materna. 

As aulas são teóricas e práticas para ajudar no vocabulário e no entendimento dos sons da língua. Em uma das aulas os estudantes levam ingredientes, todos se sentam no jardim, acendem o fogo e fazem junto a damurida (caldo apimentado que, na cidade normalmente se faz com peixe, mas nas comunidades se faz com carne de caça).

“Os alunos aprendem os nomes dos ingredientes, como se fala pra pedir isso ou aquilo, e aí todo mundo come e prova da damurida”, explica a coordenadora Ananda Machado. Já em outras aulas, os professores também trabalham teatro, cantos e danças nas línguas tradicionais.  


Material produzido por alunos na língua Macuxi. Tradução Jamaxim. É como se fosse a mochila dos indígenas (ainda usam) / Arquivo pessoal

Marcos Braga comemora os resultados do projeto. “É um programa que tem dado os resultados positivos como a co-oficialização de línguas indígenas no município de Bonfim (RR) e no município de Cantá (RR). E esse trabalho externo é imprescindível, porque o trabalho do Insikiran é justamente buscar novos aliados, buscar valorização étnico-cultural de Roraima. A Universidade tem como uma das funções sociais a extensão universitária nesse tripé da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão”, explica. 

Há uma luta também para co-oficializar as línguas Macuxi e Wapichana também no município do Uiramutã (RR), o que dá para os idiomas mais prestígio e reconhecimento dentro das escolas municipais.

“É muito mais fácil você ensinar a falar uma língua à uma criança pequenininha do que depois que cresce e isso já está comprovado cientificamente. E também tem a questão da própria prefeitura contratar pessoal [que conheça o idioma] para atender nos postos de saúde em todos os lugares falantes dessas línguas indígenas”, completa a coordenadora do curso.

Com as medidas de distanciamento social, a professora Ananda, com apoio do Insikiran e a Universidade Virtual de Roraima (UNIVIRR), está coordenando as gravações de videoaulas para o preparo específico ao concurso de professores indígenas que deve ser lançado nos próximos meses.

“Nesse curso de videoaulas, os professores estão trabalhando basicamente leituras de textos, interpretação, tradução e questões de interpretação com múltipla escolha. E aí sempre ampliando o vocabulário e explicando o funcionamento da língua de uma maneira aplicada a essa interpretação”, explica a coordenadora. 

Há também uma luta dentro da Universidade para que se crie um curso de nível superior de professor de língua indígena. "Se a pessoa fica 5 anos estudando para dar aula de inglês, por que o Macuxi não pode ficar 5 anos estudando Macuxi para ser professor de Macuxi? Por que não tem um curso de formação de tradutor e intérprete onde as técnicas atuais de tradução e interpretação possam ser trabalhadas, assim como, questões jurídicas em relação de alguns termos, de criação de neologismos?", questiona Ananda. 

Ela explica que uma situação recente mostrou a necessidade de se trabalhar o vocabulário das línguas originárias relacionando com as realidades vividas hoje.

"Nós fizemos um trabalho com a língua Macuxi com uma aluna que se formou recentemente em medicina, e tinham partes do corpo que não existiam o nome na língua. Porque algumas visões indígenas são mais sintéticas, não chegam naquele ponto de detalhe de anatomia central que vai dividindo o osso em várias partes e tal. Então foram criados muitos neologismos. Eu acho que o estado tem essa dívida com esses povos no sentido de atender a essas necessidades".  


Evento de encerramento das aulas em 2016. Na foto está Janaina, professora de língua Wapichana e sua filha. Em segundo plano, à direita, professora Ananda Machado / Arquivo pessoal 

Conquistas e cobranças

Constituição Federal de 1988 pode ser considerada um marco na conquista de direitos das populações indígenas no Brasil. O antigo Estatuto do Índio (Lei 6.001), de 1973, previa que os povos indígenas deveriam ser "integrados" ao restante da sociedade. Já a Constituição veio para garantir o respeito e a proteção à cultura dessa população, levando em conta a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. 

Um dos pontos mais importantes para os povos originários é a garantia de uma educação diferenciada, intercultural, multilíngue e comunitária. Segundo a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a coordenação nacional das políticas de Educação Escolar Indígena é de competência do Ministério da Educação (Decreto nº26, de 1991), cabendo aos estados e municípios a execução para a garantia desse direito dos povos indígenas.

Mesmo com tantas leis no papel, essa não é uma realidade para os povos indígenas no Brasil. O direito linguístico e cultural conquistado na Constituição não é praticado, explica Ananda Machado. Na sua opinião, o poder público não trabalha para colocar o ensino das línguas e da cultura indígena nas escolas, mesmo estando garantido no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI)

“Os povos não querem só o ensino de língua, eles querem escolas bilíngues. Para isso, nós teríamos que ter materiais nessas línguas para todas as disciplinas, não apenas o ensino da língua. São sonhos que na legislação já estão conquistados, mas na prática...”, explica Ananda.

Para ela, a formação de professores indígenas que saibam falar e escrever as línguas originárias pode mudar a realidade de uma comunidade. O estudo dos idiomas deveria ser escolhido de acordo com a realidade de cada território, levando em consideração o percentual de cada povo que vive naquela região. As escolas hoje perpetuam o português, mas trabalhar esses idiomas originários faria da daquele um ambiente de preservação e ampliação da cultura indígena.  

"O professor na escola tem essa função de ensinar o que essas famílias já não têm condição de ensinar em casa.", completa.  

Ananda, Ivo e Marcos concordam que é importante que as políticas públicas sejam pensadas de dentro pra fora, levando em consideração o que as comunidades querem. “Por que eles toda vida vão ter que ficar se adequando a editais que vêm de fora pra dentro? Tem recurso para cultura, mas tem que ter um ponto de cultura, então tem que adequar ao ponto de cultura. E se eles querem outra coisa? E se eles querem uma casa que receba as crianças, onde se fale a língua indígena, onde se tenham práticas tradicionais de artesanato, disso e aquilo?”, questiona Ananda. 

Ela explica que esses povos ficam desassistidos de diversas políticas por conta desse não-diálogo. E que muitas vezes as especificidades de cada território, povo e cultura não são consideradas. Um exemplo disso é que muitas comunidades indígenas não conseguem cumprir os calendários escolares porque em determinadas épocas do ano há alagamentos e não há a possibilidade das aulas serem dadas.  


Três turmas Macuxi, nível 1, 2 e 3, no local onde é assado o peixe e feito a damurida. A turma avançada ajudava os iniciantes com os nomes dos ingredientes e com os tratamentos pessoais / Arquivo pessoal 

Intercâmbios de conhecimento

Ivo conta que em sua sala de aula, a maioria das pessoas trabalhavam com atendimento às comunidades indígenas, como professores, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Também haviam pessoas que de outras áreas, mas que se interessavam pela questão indígena e queriam aprender mais sobre a cultura e a língua. Ele destaca que alguns eram da área da antropologia, do direito e das letras na UFRR.

O advogado conta que o conhecimento da língua por pessoas não indígenas, mas que trabalham com essas comunidades, ajuda a garantir os direitos e o acesso às políticas públicas à essa população. 

“A língua é uma forma de se comunicar, né, e hoje em dia, no Brasil, a gente vê a negação da identidade de um povo, principalmente em relação à língua. A gente não vê espaço nessas instituições, nas instâncias públicas, de valorizar realmente a língua indígena. São poucas as iniciativas que a gente vê por aí. Eu acredito que a língua é algo fundamental para um povo, algo que realmente pode garantir o acesso, primeiramente a informação. Porque por meio da língua que o povo tem acesso à informação sobre seus direitos, sobre as políticas públicas”, explica Ivo. 

A coordenadora do curso explica que é muito gratificante quando profissionais que trabalham diretamente com as populações indígenas buscam conhecer seus idiomas, porque mostra uma preocupação em atender com dignidade os povos.

“A área de saúde é uma das áreas em que se sofre muito, principalmente neste momento agora de pandemia, que é um momento bem-crítico. Tivemos o caso das mães Yanomami que não conseguiam se comunicar e ficaram por dias sem saber onde seus bebês estavam, e isso é recorrente aqui E é um direito garantido por lei esse que a pessoa seja atendida em sua própria língua e que é desrespeitado”, continua.   

Um caso recente chamou a atenção dos professores do Instituto. Ananda acompanhou o caso de perto. Um indígena Wai-Wai foi ao hospital acompanhado da neta, que também não entendia muito bem o português. O avô faleceu e a jovem não compreendia o que estava acontecendo e o que estava escrito nos documentos. 

Ananda destaca que aprender os idiomas indígenas é uma forma de quebrar preconceitos e de mostrar respeito por esses povos. Ela explica que em Roraima o preconceito contra essa população ainda é muito forte. No estado, muitos nomes de lugares e até o próprio nome do estado, Roraima, vem das línguas Caribes (línguas caribes, karib, caribas, caraíbas são uma família linguística indígena da América Central e da América do Sul que compreende cerca de 40 línguas faladas entre 60 e 100 mil pessoas).

As línguas Caribes estão dispersa por todo o norte da América do Sul, desde a foz do Rio Amazonas até os Andes colombianos, mas também aparece no Brasil central. Roraima significa um monte azulado/esverdeado.

Quando se fala de escolas infantis, Ananda destaca que o acolhimento deve se dar já no primeiro contato. “Para um professor que, mesmo aqui na cidade, vai receber um aluno Macuxi em sua sala de aula, saber cumprimentar esse aluno Macuxi, ele saber cantar uma música, dançar, reconhecer a importância dessas culturas para educação, para o que a gente é, para que a nossa identidade, faz diferença”, explica. 


Pandemia 

Para Ivo, o estado tem deixado de cumprir seu papel com as comunidades indígenas quando se trata de prevenção e combate ao coronavírus. “A língua serve como uma ferramenta e o estado deveria propiciar meios adequados de garantir acesso às informações nessas línguas”, defende Ivo.

Junto ao Conselho Indígena de Roraima, do qual é assessor jurídico, Ivo participou da elaboração de cartilhas com informações sobre o pandemia. O material conta com informações sobre onde surgiu, como se proteger e quais os tratamentos. 

Além do distanciamento social, a informação também pode ajudar a salvar vidas, é o que explica o advogado Ivo Cípio, que fez a tradução para a língua Macuxi. “Através da língua, a compreensão da doença se torna mais clara e isso ajuda a evitar a propagação do vírus, além de conscientizar o nosso povo”.

A produção foi feita em parceria do CIR com a UFRR, Instituto Insikiran, Projeto Bem Viver, Nature and Culture Internacional, Niatero e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), com tradução de Josue Barbosa Andrade (Ingarikó), Ivo Cípio (Macuxi), Niatero (Taurepang), Cléia Alice Morais da Silva (Wai-Wai), Jairo David Rodrigues (Ye'Kuana) e Nilzimara de Souza Silva (Wapichana). 

O material está sendo distribuído para dez regiões: Serra da lua, Amajari, Serras, Raposa, Tabaio, Auto Cuamé, Baixo Cotingo, Murupú, Surumu e Wai-wai. 


Cartilha com termos sobre a pandemia traduzido para o Macuxi / Arte: CIR
 

Na mesma linha, a UFRR criou a campanha “Vamos Todos Cuidar de Todos” #NinguémFicaPraTrás. Em parceria com o Instituto Insikiran, a Universidade produziu vídeos com informações sobre os sintomas e formas de evitar o contágio da covid-19 nas línguas indígenas Ye'kwanaWapichanaYanomamiTaurepang PemomTaurepang, que são algumas das etnias indígenas presentes no estado de Roraima.

O professor Ivo explica que uma informação que não chega aos indígenas, que não é compreendida por aquela população, não cumpre sua razão de existir. Ivo completa, “a língua é o meio que deveria existir hoje para que tenha os povos indígenas tenham direito a saúde, a educação e todos os outros direitos”.  

O Ivo acredita que disseminar o conhecimento tradicional é garantir que essas línguas não caiam em extinção, como muitas outra que já deixaram de existir no Brasil. 

“É justamente para não deixar ficar no passado, que a gente precisa registrar essa língua. O estudo é muito importante para que a língua possa continuar viva hoje nesse mundo que a gente vive, para que apesar da tecnologia e das demais áreas de conhecimento, essas línguas possam continuar vivas”, explica. 

“O conhecimento de línguas indígenas para a sociedade externa aos territórios, aos povos indígenas, é uma forma de valorização e reconhecimento na busca de uma sociedade mais tolerante que respeite o outro nas suas diferenças culturais”, finalizou o professor e diretor do Instituto Insikiran, Marcos Braga.

Ananda Machado compara o desaparecimento das culturas indígenas com o fim de árvores e plantas da Floresta Amazônica.

“As coisas vão desaparecendo e às vezes sem a gente nem saber que elas existiam. Há línguas que desapareceram e que não têm nenhum registro escrito, nenhuma gravação, e isso ainda acontece na atualidade. Nós temos muito mais línguas do que linguistas estudando essas línguas. É como se fosse um etnocídio: você matar uma língua é matar uma cultura, porque você mata uma única forma de existir. Você mata quem talvez saiba o nome de árvores que talvez não existam mais, pássaros que não existam mais, que existam apenas nessa língua, ou apenas nas histórias que se contam nessa língua, ou então estejam presentes somente em danças que esse povo pratica" explica.

“A língua é um elemento bem central para a construção de uma identidade, tanto que quando o colonizador chegou, o português foi enfiado à ferro e fogo, levaram 100 anos para enfiar o português na Amazônia” completa a professora. 

Num tom esperançoso, a coordenadora do curso de extensão conclui “a meta é que a gente consiga mudar um pouco essa direção dessa construção de monolinguismo da língua portuguesa para de fato viabilizar essa riqueza que é uma sociedade multilíngue, mais inteligente, mais aberta e com mais possibilidades de troca”.  

 

Brasil de Fato

Martha Raquel

14 de agosto de 2020 às 21:45