Relatório da ONU alerta
para risco iminente da sexta extinção em massa do planeta
Em 2010, durante uma
conferência no Japão, foram estabelecidas 20 metas internacionais de
biodiversidade a serem implementadas até 2020. Ao todo, 193 países haviam se
comprometido a trabalharem juntos para colocar as chamadas Metas de Aichi em
prática. Agora, um relatório publicado pela Convenção da Biodiversidade (CBD)
da ONU revelou que o mundo fracassou nessa missão.
O objetivo das metas era
proteger a flora e a fauna ameaçadas do mundo. De acordo com a ONU, sem colocar
as medidas em prática cerca de um milhão de espécies podem desaparecer nas
próximas décadas, ampliando o que os cientistas chamam de extinção do Holoceno.
O termo se refere ao sexto evento de extinção em massa do planeta, impulsionado
pela atividade humana.
Segundo o novo relatório,
as metas do Planejamento Estratégico para a Diversidade Biológica foram apenas
parcialmente cumpridas. Esse trabalho é uma das peças básicas para que a
CBD estabeleça uma nova série de objetivos para a próxima década, que seriam
adotados na 15ª reunião da Conferência de Paris, que acontecerá na cidade
chinesa de Kunming em outubro de 2021. "Este é o 5º relatório.
Esperava que, após quatro relatórios anteriores, o mundo tivesse aprendido a
lição e que no quinto tivéssemos resultados mais positivos do que os
apresentados”, afirmou a secretária executiva da Convenção da Biodiversidade,
Elizabeth Maruma Mrema, que também declarou que os resultados do relatório são
“decepcionantes e desconcertantes”.
Biomas em chamas
David Cooper, o principal
autor do relatório, disse que somente com medidas de conservação e restauração
não se poderá evitar que se produza a sexta extinção en massa de espécies no
planeta. Para ele, será necessária uma ação que envolva toda a economia. “Para
achatar a curva, temos que adotar fortes medidas no lado da produção e do
consumo”, afirmou.
Uma das medidas
obrigatórias, segundo ele, seria a eliminação de subsídios governamentais a
setores que causam danos ao meio-ambiente. Seriam necessárias mudanças em
diversas atividades humanas, agrupadas em oito “transições” em outras tantas
áreas: terras e florestas, agricultura, sistemas alimentares, pesca e oceanos,
cidades e infraestrutura, água doce, ação climática e saúde.
Os autores do relatório,
entretanto, apontam que os esforços de conservação nas últimas décadas também
apresentaram resultados positivos. Segundo eles, 48 espécies foram salvas da
extinção, o que eles consideram como um sinal de esperança.
Com 2,5 milhões de cabeças de gado, o
município de São Félix do Xingu, no Pará, foi responsável por um terço da
destruição da floresta em 2019 – grande parte dentro de uma área de conservação
ambiental.
Área
desmatada em São Félix do Xingu. São Félix do Xingu viu o desmatamento saltar
100% em um ano.
Pelas estradas de terra que cortam
São Félix do Xingu, no sudeste do Pará, na Amazônia, o movimento de caminhões
boiadeiros é intenso. As carretas maiores levam até 30 animais. Eles são
transportados entre fazendas e cruzam o rio Xingu sobre balsas até os cinco
frigoríficos da região.
O município do Pará, que tem o dobro
da área da Holanda, é o campeão em cabeças de gado no Brasil: cerca de 2,5
milhões foram contabilizadas na última vacinação, em 2019, segundo dados do
Sindicato dos Produtores Rurais.
De São Félix do Xingu também parte
carga para outros países. "Esse gado vai para China, Estados Unidos. E
temos navios que pegam o nosso boi vivo aqui e levam para África, Ásia",
detalha Arlindo Laureano Rosa, presidente da entidade.
Com o preço da carne em alta, Rosa
lamenta que não haja mais espaço para a pecuária crescer no município.
"Acabou o crescimento devido ao meio ambiente", justifica. "Não
pode desmatar mais, não pode abrir mais espaço para criar mais boi, então a
pecuária praticamente vai ser daqui pra trás", complementa.
A rapidez com que a Floresta
Amazônica foi destruída em 2019 no município impressiona. O monitoramento anual
feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra que São
Félix do Xingu foi responsável por um terço do desmatamento em toda a Amazônia.
Gado e
desmatamento na Amazônia. Assistir ao vídeo 09:43.
Dos 9,2 mil quilômetros quadrados
derrubados, 3,8 mil foram perdidos na cidade, onde o salto da destruição foi de
100% em um ano. Grande parte do desmatamento ocorreu dentro de uma unidade de
conservação: a Área de Preservação Ambiental Triunfo do Xingu.
"Comumente, o desmatamento está
diretamente associado ao roubo da terra. O desmatamento é o modo pelo qual
grileiros controlam o território", analisa Mauricio Torres, professor da
Universidade Federal do Pará. "Uma vez que a grilagem se consolida, essas
terras são geralmente vendidas e, aí, chega à pecuária."
Na avaliação de Torres, a legislação
federal e as estaduais são, desde 2009, mais flexíveis ao grileiro. "E
ficaram mais ainda. Logo, esse processo tende a acelerar muito a grilagem de
terras e, como grilagem não se conjuga sozinha, podemos esperar o proporcional
aumento do desmatamento e da violência", avalia.
Embargo e “laranjas”
Há pouco mais de um ano à frente do
Ministério Público Estadual na cidade, Carlos Cruz da Silva lista o principal
crime investigado pelo órgão: "O desmatamento irregular é, sem dúvida, a
principal ação criminal com que nos deparamos aqui em São Félix do Xingu."
Dentre as principais dificuldades no
combate a esse crime, está o uso de laranjas pelos criminosos. "Os
mandantes dessas ações de destruição da cobertura vegetal dificilmente são
identificados. Eles colocam essas áreas sobre a posse de nome de terceiros que,
muitas vezes, são pessoas humildes sem qualquer patrimônio", explica
Silva.
Infográfico
do desmatamento da Amazônia brasileira.
Segundo o Ministério Público, agentes
do Ibama, quando chegam para uma fiscalização, enfrentam uma rede de
articulação de grupos locais para neutralizar as operações.
"Quando o veículo do Ibama se
aproxima do município, imediatamente um grupo de pessoas começa a fazer
ligações para os grupos na zona rural para que se 'protejam' da ação
fiscalizatória", exemplifica Silva. "Os fazendeiros têm tempo para
retirar seus gados da área embargada, retiram suas máquinas e tratores dos
locais em que a infração está ocorrendo, dissipam o grupo de trabalhadores que
está executando as suas ordens."
Um levantamento do Sindicato dos
Produtores Rurais aponta 12 mil propriedades rurais cadastradas em São Félix.
Até o fim do ano passado, 60% delas sofriam algum tipo de embargo. A causa,
admite Rosa, do sindicato dos fazendeiros, está ligada ao desmatamento ilegal.
"Estão embargadas porque
geralmente surge um fogo. Às vezes o caboclo vai fazer uma rocinha, um
desmatamento pequeno, às vezes até maior um pouco, daí o Ibama vem e
embarga", justifica, sem mencionar que o ato seria infração prevista na
legislação.
Terra sem documento
Território tradicional de populações
indígenas, a cidade de São Félix do Xingu começou sua história no ciclo da
borracha, com exploração do látex, no início de 1900. A partir de 1980, a
exploração do mogno atraiu mais pessoas para a região. Foi em meados dos anos
de 1990 que o gado começou a ocupar o espaço das florestas originárias.
Amazônia
brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.
Arlindo Laureano Rosa, nascido em
Goiás, diz que foi um dos pioneiros. Em 1994, convidado para um casamento,
visitou São Félix. "Gostei e fui trazendo parceiros", diz.
"Comprei propriedade. A gente abriu muita fazenda, mas perdemos muito também.
Naquele tempo, só roçava e queimava, não tinha trator."
Oficialmente, porém, as ocupações da
terra são irregulares. Os terrenos não têm documentos válidos de titulação, uma
questão comum na Amazônia. "O que chamam de 'abrir fazenda' é derrubar
floresta", pontua Torres. "Propriedade é aquela com escritura
registrada. O termo técnico para esses casos é detenção de terras públicas,
algo ilegal", afirma o pesquisador.
"Eles se dizem proprietários de
terra, mas não são. Eles exercem a mera detenção das terras que são da União ou
do estado do Pará", esclarece Silva, do Ministério Público. "O que a
gente verifica é que o poder sobre esses locais foi ao longo do tempo sendo
constituído exclusivamente pela força", adiciona.
Visão de futuro
Próximo a uma das estradas de terra,
Maria Helena Gomes espera a filha mais velha, de cinco anos, chegar da escola.
O sítio onde mora foi comprado há dez anos de outro morador, que havia transformado
a floresta em pastagem.
Com o marido, Gomes recuperou uma
área, onde mantém dez mil pés de cacau. Com apoio do Imaflora, Instituto de
Manejo e Certificação Florestal e Agrícola, eles rotacionam o gado em pequenas
partes de terrenos separados por faixas de árvores plantadas.
"Eu penso no futuro dos nossos
filhos", comenta Gomes. "O futuro é meio incerto se continuar
desmatando como está. A gente já vê o desequilíbrio ambiental que anda, chove
demais, é seca demais. A gente não pode mudar o mundo, mas a gente pode fazer a
parte da gente. E a terra que a gente tem a gente tenta cuidar", diz.
Autor de livro sobre práticas
sustentáveis na Amazônia explica por que associar desenvolvimento econômico ao
desmatamento é uma falácia e indica novos caminhos para gerar riqueza sem
destruir.
Árvores
verdes. Ricardo Abramovay propõe formas de conservar a mata e ao mesmo tempo
gerar crescimento econômico.
Quem defende o desmatamento de áreas
na Amazônia costuma dizer que ele é necessário para levar progresso à região e
desenvolvê-la economicamente. Essa foi uma das teses do regime militar para o
bioma e segue presente em setores do Governo Federal e em parte dos empresários
do agronegócio. Sob essa lógica, manter a floresta reduz a possibilidade de um
país carente, como o Brasil, gerar riqueza.
O conflito entre preservar a floresta
e desenvolver a região, porém, é uma ideia errada e fora de lugar, afirma
Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade
de São Paulo (USP). Ele lançou em outubro o livro “Amazônia: por uma economia
do conhecimento da natureza”, em que analisa e propõe formas de conservar a
mata e gerar crescimento econômico ao mesmo tempo.
Como desenvolver a região da Amazônia
sem desmatar?
Primeiro, é necessário corrigir os
rumos do que já se faz. Os produtores de soja devem reiterar o compromisso da
Moratória da Soja e respeitar a regra de que não se compra soja de terras
recentemente desmatadas. A pecuária precisa se tornar racional e sustentável.
Hoje, a pecuária na Amazônia é em
grande parte de baixíssima produtividade. E interromper as atividades ilegais
ligadas ao garimpo e à exploração clandestina de madeira. Essas são as
premissas, não adianta sonhar com outra coisa se não conseguimos nem um mínimo
de organização empresarial civilizada em torno daquilo que já existe.
E como ir além disso para gerar mais
riqueza na região?
A verdadeira alternativa é a economia
da floresta em pé, em substituição à economia da destruição da natureza que
predomina hoje. Essa economia do conhecimento da natureza é composta de
elementos que já existem de maneira precária ou que ainda não existem, mas são
potenciais.
Os que existem de maneira precária e
precisam ser desenvolvidos referem-se às cadeias de valor baseadas em produtos
da floresta em pé. O açaí é o exemplo mais emblemático, o rendimento de um
hectare de açaí é muito superior ao de um hectare de soja [R$ 26,8 mil para o
açaí e R$ 2,8 mil para a soja por ano em 2015].
Foto de
Ricardo Abramovay. "A verdadeira alternativa é a economia da floresta em
pé", Ricardo Abramovay.
Há outras cadeias de valor
relativamente existentes, como castanha do Pará, borracha e piscicultura, mas
exploradas em condições muito precárias. A piscicultura de peixes de água doce
em cativeiro na Amazônia tem a vantagem sobre as formas mais conhecidas de
piscicultura em cativeiro, como o salmão. Os peixes da Amazônia criados em água
doce não são carnívoros, logo o impacto ambiental é mais baixo.
Além disso, o turismo ecológico no
mundo cresce 15% ao ano, e na Amazônia ele tem um potencial de crescimento
imenso. E você tem também todo um potencial de moléculas da biodiversidade para
a produção de fármacos. O Brasil vive o paradoxo de ser o país com a maior
diversidade do mundo e ter uma indústria farmacêutica concentrada na produção
de genéricos, pouco voltada a inovações para as principais moléstias do século 21.
É outro potencial para a valorização da floresta em pé que não estamos
aproveitando.
Qual a relação entre desmatamento e
crescimento econômico?
Quando o Brasil se destacou pelo
combate vigoroso ao desmatamento, reduzido em 80% na Amazônia entre 2004 e
2012, ao mesmo tempo a produção agropecuária da região aumentou devido à
tecnologia avançada aplicada nas áreas de produção de soja, sobretudo em Mato
Grosso.
Se o desmatamento avança, quais são
seus protagonistas? Às vezes dizem que quem desmata são os pobres que não têm
alternativa de vida, mas não é assim. Desmatar é caro, exige investimento,
máquinas, contratar trabalhadores. O desmatamento hoje é feito por grupos
organizados, que, diante da mensagem de que a suposta indústria de multas não
vai parar suas atividades, se organizam
na expectativa de terem legalizados direitos que não lhes foram reconhecidos
sobre terras públicas. Essa é uma explicação importante para a explosão do
desmatamento em 2019.
É claro que no desmatamento a
economia cresce de alguma forma, você vende madeira, têm exploração de garimpo,
mas é um crescimento baseado em ilegalidade e muito menor do que quando você
tem condições legais para exercer as atividades econômicas. Um ambiente
institucional que coíba o desmatamento ilegal é um ambiente em que investidores
responsáveis poderão agir.
Que políticas públicas o Estado
brasileiro deve desenvolver para incentivar a economia da floresta em pé?
A primeira é uma sinalização clara de
que haverá fiscalização e que não será tolerada a permanência de atividades
ilegais. É importante mudar a narrativa do governo federal, porque ela forma
uma cultura empresarial. E a narrativa do governo hoje é que, se a Amazônia não
for desmatada, os 25 milhões de pessoas que moram lá vão morrer de fome. Uma
narrativa perniciosa que estimula os atores locais a adotarem as piores
práticas.
Amazônia
brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.
Também é preciso valorizar o trabalho
feito por organizações não governamentais, que junto com as populações
tradicionais na floresta são os atores dessa economia do conhecimento da
natureza. E apoiar a junção entre comunidade científica, organizações não governamentais
e empresários voltados à exploração sustentável da floresta. Hoje existem
algumas iniciativas fazendo isso, como o Centro de Empreendedorismo da
Amazônia, mas sem qualquer tipo de apoio ou sequer entusiasmo governamental.
E também apoiar o multilateralismo
democrático, destruído por razões ideológicas pelo atual governo. O Fundo
Amazônia era uma das expressões mais emblemáticas da cooperação entre três
países democráticos, Noruega, Alemanha e Brasil, para enfrentar o desmatamento.
Qual é o formato para estimular a
inovação na exploração sustentável da floresta?
Uma proposta, do Carlos Nobre e do
Ismael Nobre, são os laboratórios de inovação da Amazônia, para descentralizar
o processo de inovação e multiplicar as possibilidades de junção entre
conhecimentos tradicionais e científicos vindo da academia e das organizações
que fazem pesquisa. As universidades têm papel importante, mas sozinhas não são
capazes de fazer isso. Existe uma comunidade de pessoas com doutorado em
municípios da Amazônia que podem ser a base para isso.
Agora, o formato exato ainda ninguém
sabe, é por meio da experimentação, que precisa de apoio governamental. Nos
Estados Unidos, quando se tem desafios dessa natureza, a Darpa (agência de pesquisa
do departamento de Defesa) lança editais com desafios para estimular processos
de experimentação. É importante estimular que grupos procurem dar respostas ao
desafio.
Há um embate entre setores do
agronegócio e ambientalistas sobre o grau de desmatamento a ser admitido na
Amazônia: o desmatamento zero versus o desmatamento de até 20% nas áreas
privadas, permitido pelo Código Florestal. Qual é a saída?
A pressão institucional para o
desmatamento zero, não o desmatamento ilegal zero, é imensa. Ela se baseia na
ideia de que os produtores [e consumidores] de soja querem dissociar o produto
de qualquer perigo de desmatamento na Amazônia. E existem condições técnicas de
a produção de soja se expandir no Brasil e no mundo sem desmatar a Amazônia e o
Cerrado.
Autorizar algo na Amazônia que não
seja a economia da floresta em pé pode satisfazer as necessidades de um
produtor individual, mas não os interesses do país e da preservação do
ecossistema. Não há razão para não aderir ao desmatamento zero integral. Mas o
dado importante é que o desmatamento que ocorreu em 2019 não foi o desmatamento
desses 20% [autorizados por lei]: 90% do desmatamento de 2019 foi ilegal.
Como você avalia a postura do
agronegócio brasileiro em relação à Amazônia?
Há um conjunto de empresários
interessados em interromper a devastação na Amazônia, favoráveis ao
desmatamento dos 20% [permitidos], mas apoiam a Moratória da Soja, não apoiam a
invasão de terras públicas. Por outro lado, há um conjunto de atores econômicos
oportunistas incentivando políticas predatórias. A oposição hoje não é bem
agronegócio versus ambientalistas, porque uma parte do agronegócio está junto
com os ambientalistas, mas dentro do próprio agronegócio.
Agricultura e pecuária pressionam a
Amazônia há décadas e são fruto do modelo adotado pelo regime militar para
"desenvolver" a região, que já perdeu uma área de floresta
equivalente a mais de duas Alemanhas.
Gado em
fazenda na Amazônia. Presente na Amazônia desde o século 17, pecuária na região
foi incentivada pelo regime militar.
A Floresta Amazônica passou por
diversas tentativas de colonização ao longo da história do Brasil, mas foi
durante o regime militar que o "desenvolvimento" da Amazônia se
tornou uma prioridade para o governo, sob o lema "integrar para não
entregar". A ocupação do bioma impulsionou o avanço de fronteiras
agrícolas por regiões antigamente cobertas por florestas.
Até a década de 1970, apenas uma área
pouco maior do que a de Portugal, que tem cerca de 92 mil quilômetros
quadrados, havia sido desmatada na região. Com o discurso de expandir e
modernizar, o regime militar impulsionou obras de infraestrutura que se tornaram
responsáveis pela devastação do bioma. A construção de estradas na floresta
abriu caminho tanto para o chamado progresso como para o desmatamento, que,
segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2018 já
atingia uma área superior a duas Alemanhas: 783 mil quilômetros quadrados na
Amazônia Legal.
Cinco décadas depois, Sorriso, no
Mato Grosso, se tornou a capital da soja e do agronegócio, e o pasto passou a
ser a cobertura que ocupa 80% da área desmatada desde então.
A expansão agropecuária na região
ocorreu como um efeito dominó, diz o geógrafo Hervé Théry, da Universidade de
São Paulo (USP). O modelo mais comum começa com a abertura da floresta por
madeireiros, que levam árvores de maior valor econômico. Em seguida, chegam os
pecuaristas e pequenos agricultores.
"Os dois grupos são culpados
pelo desmatamento, porém, os grandes têm muito mais meios e fazem mais
estragos. Os pequenos se instalam para produzir alimentos para a família e para
vender. Depois de um tempo, a fertilidade da terra diminui e eles precisam ir
para outro lugar. Geralmente, colocam capim e vendem para os pecuaristas",
explica Théry.
Gráficos
comparam cobertura florestal na Amazônia entre 1985 e 2017.
Os últimos a chegar neste modelo são
os sojicultores, que compram áreas desmatadas utilizadas anteriormente para a
criação de gado. Ao longo dos anos, as fronteiras deste ciclo são pressionadas
cada vez mais para o norte.
Pasto e gado
Um dos primeiros atores neste
processo de expansão sobre a floresta, a pecuária está presente na Amazônia
desde o século 17, quando foi introduzida por ordens religiosas. Apesar de ter
uma presença histórica no bioma, de acordo com a geógrafa Susanna Hecht, do
Instituto Superior de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, em Genebra,
na Suíça, a pecuária inicialmente era voltada para fornecer alimento e, apenas
após o golpe militar de 1964, passou a ser utilizada para a ocupação de terras.
Em suas políticas de desenvolvimento
da Amazônia, o regime militar ofereceu uma série de incentivos legais e fiscais
para a expansão da atividade econômica no bioma. Grandes empresas também foram
beneficiadas. Um exemplo emblemático foi a fazenda-modelo da montadora alemã
Volkswagen no sul do Pará, denunciada na imprensa internacional pelo
desmatamento causado na região no final da década de 1970.
Devido à necessidade de pouca mão de
obra, à facilidade de implementação e a uma logística mais simples para seu escoamento,
a pecuária se tornou a atividade ideal na política de integração do regime
militar, explica Hecht. "Historicamente, a pecuária assumiu um papel
importante de incorporação de terra, tomando terras públicas e as transformando
em propriedades privadas, além de ser um mecanismo de especulação de
terra", pontua.
Soja
Anos depois, chegou a vez da soja
entrar na Amazônia. Isso só foi possível graças ao avanço de pesquisas
agronômicas no desenvolvimento de sementes e técnicas que possibilitaram o cultivo
do grão em regiões tropicais. A expansão da commodity começou no sul do país e
seguiu avançando para o norte, entrando primeiro no Cerrado e, posteriormente,
no bioma amazônico.
"A demanda contínua na década de
1990 e início dos anos 2000 criou uma dinâmica de desmatamento em que a soja
substituiu os pastos existentes, estimulando novos desmatamentos para a criação
de gado na Amazônia", afirma a cientista política Regine Schönenberg, do
Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim.
Amazônia
brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.
Além do aumento da demanda mundial
pelo grão, melhorias na rede de infraestrutura e, principalmente na BR-163,
conhecida como rodovia da soja, que liga o Mato Grosso a Santarém, no Pará,
impulsionaram a expansão da atividade na região.
Por serem os últimos a chegar neste
ciclo, os produtores de soja argumentam que não contribuem para o desmatamento.
Na opinião do geógrafo Antonio Ioris, da Universidade de Cardiff, essa retórica
é uma falácia devido à sinergia entre os setores.
"Em termos retóricos, pega bem
para o setor de grãos dizer que não desmata. Nessa lógica, eles tentam se
eximir de responsabilidades. Mas, ainda que muitas vezes não seja o sojicultor
que desmata a floresta, o pecuarista desmata sabendo que a terra vai ganhar
valor e que poderá vendê-la para o sojicultor”, explica Ioris.
Nesse ciclo, pesquisadores destacam um
dos principais fatores que contribuem para continuidade deste processo: a
grilagem e posterior legalização destas terras. "Pode demorar um pouco
mais ou um pouco menos, mas no final das contas essa terra acaba sendo
regularizada, e quem está lá ou seus familiares passam a ser os
proprietários", afirma a geógrafa Neli Aparecida de Mello-Théry, da USP.