sábado, 29 de agosto de 2020

Covid-19: Línguas e Culturas Ameaçadas (BBC)

 

Morte de Anciãos Indígenas

Línguas e Culturas Ameaçadas

  

Aritana era poliglota e conhecia profundamente a cultura de diversos povos do Xingu. Foto: AFP.


Quase um mês após a morte do líder indígena Aritana Yawalapiti, aos 71 anos, por covid-19, seu filho mais velho, Tapi Yawalapiti, relembra à BBC News Brasil como eram as conversas cotidianas com o pai.

Um dos mais importantes e respeitados líderes dos povos do Território Indígena do Xingu, Aritana tinha ascendência Yawalapiti e Kamayurá e falava dez línguas, de pelo menos três troncos linguísticos diferentes.

"Quando meu pai falava comigo em Yawalapiti, eu compreendia tudo e respondia em Kamayurá, a língua da minha avó, mãe do meu pai", explica Tapi em português, uma das cinco línguas faladas por ele.

Quando seu pai morreu, Tapi estava estudando a língua Yawalapiti com Aritana. Sua partida foi um golpe duro para a sobrevivência deste idioma, que está 'em perigo crítico' de desaparecer, segundo a Unesco.

"A perda do meu tio Aritana é a perda de 98% da nossa língua", disse Watatakalu Yawalapiti, sobrinha de Aritana, em uma declaração após a morte do tio.

Tapi explica que ainda há alguns outros falantes da língua Yawalapiti vivos — dois tios mais velhos, por exemplo — mas que seu pai tinha um conhecimento mais profundo, mais técnico, que tentava passar para os mais jovens.


Tapi Yawalapiti vai defender um mestrado sobre sua língua materna na Universidade de Brasília. Foto: Tapi Yawalapiti.

A língua Yawalapiti não é a única em risco de desaparecer.

O Brasil tem pelo menos 190 idiomas que correm o mesmo risco, segundo o Mapa das Línguas em Perigo da Unesco. A morte de diversos anciãos indígenas devido à pandemia torna essa situação ainda mais crítica.

Sem controle, a epidemia de covid-19 ameaça destruir, junto com a vida de milhares de pessoas, culturas inteiras de alguns povos, levando ao que representantes indígenas chamam de "verdadeiro extermínio de etnias".

"Os anciãos que estão desaparecendo são as bibliotecas vivas de todo esse conhecimento tradicional — da língua, dos costumes, das danças, da música. Esse conhecimento se preserva nos mais velhos, e é através deles que chega aos jovens e se reproduz", explica Angel Corbera Mori, professor de linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em línguas ameríndias.

As perdas de idosos indígenas acontecem no país todo. Só no Xingu, a covid-19 causou a morte do ancião Juca Kamayurá, do líder Jamiko Nafukuá e de Mamy Kalapalo, chefe da aldeia Kuluene.

Entre os Kokama, no Amazonas, ao menos 37 morreram com sintomas de covid-19, segundo a Associação dos Índios Kokama Residentes no Município de Manaus (Akim), a maioria idosos.

Em Alter do Chão, no Pará, a doença levou Lusia dos Santos Borari, de 87 anos, ainda no início da pandemia, em março. Em Roraima, morreu em junho Bernaldina José Pedro, anciã de 75 anos do povo Macuxi que vivia na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Em uma ação levada ao STF, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) disse que "falhas e omissões" do poder público no combate à epidemia do novo coronavírus entre os povos indígenas brasileiros estão levando a um "verdadeiro genocídio".

Essas populações têm, segundo a entidade, uma taxa de letalidade pelo vírus de 9,6%, enquanto, na população em geral, a taxa é de 4%, segundo o Ministério da Saúde.

A Apib diz ainda que o governo está não apenas falhando, mas ativamente colocando os indígenas em risco. Diversos pesquisadores já alertaram para o risco de a pandemia dizimar essas populações no país.


Aldeias yanomami também estão ameaçadas pela pandemia. Foto: Victor Moriyama / ISA.

O governo nega que haja negligência, mas batalhou na Justiça para não precisar cumprir os pedidos da Apib.

No entanto, o STF determinou em votação unânime que o governo tome medidas para garantir o combate à pandemia e atenda a medidas específicas pedidas pela entidade, como a criação de uma barreira sanitária e retirada de invasores de terras indígenas. 

Perda Irreparável

Bernaldina José Pedro, de 75 anos, era uma guardiã dos costumes tradicionais e da língua Macuxi. Ela tinha acabado de voltar para sua casa, na comunidade Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, quando morreu de covid-19 no fim de junho, após 11 dias de batalha contra a doença.

Ela contraiu o coronavírus na comunidade pouco tempo depois de voltar de uma temporada no estúdio do filho adotivo (também em Roraima) o artista Macuxi Jaider Esbell, que estava aprendendo a falar Macuxi com a mãe.

Essa língua não corre risco de desaparecer, porque tem muitos falantes e até já foi sistematizada em dicionários, mas muitos conhecimentos tradicionais se foram com Bernaldina.

"Ela conhecia um vocabulário completo, uma variedade enorme de construções", afirma Jaider. "É uma perda irreparável."


Bernaldina morreu em junho, vítima de covid-19. Foto: Jaider Eisbell.

Ele era aprendiz de Macuxi, um trabalho que envolvia muitas práticas. "Ela passou um período fazendo panelas de barro, fazendo a tradução dos cantos comigo, falando os nomes dos materiais, dos elementos (na língua materna). Infelizmente, esse processo foi interrompido", lamenta.

"Embora minha língua esteja salva, é sempre difícil manter, porque existe no Brasil a ilusão de uma língua padrão (o português), de uma língua 'nacional', e as crianças cada vez mais estão aprendendo só o português e tendo menos contato com a língua materna", afirma Jaider, que pretende fazer um memorial em nome de Bernaldina.

Ele diz que vai continuar fazendo as atividades que ela sempre quis preservar, como os trançados, os cantos, os remédios, as panelas de barro, atividades culturais.

Jaider conta que a comunidade da mãe em Roraima sofreu muito com a pandemia, especialmente no início. "A gente teve uma onda bem difícil, perdemos muitos professores e anciãos", diz.

Reunindo Um Povo

Em meio à mais recente luta para que que seu direito à saúde seja garantido, os Yawalapiti continuam sua batalha de décadas para preservação do seu povo, que já esteve próximo de desaparecer.

"A nossa história é muito longa, meu povo quase foi extinto", conta Tapi. "Morreram muitos e restaram só seis ou sete pessoas, pré-adolescentes, que foram morar em outras aldeias."

A última aldeia desapareceu, e os Yawalapiti que restaram cresceram em meio a outros povos, falando outras línguas no dia-a-dia.

"Eles ficaram muito tempo morando longe, acabaram não tendo mais contato. Então, havia o meu povo, mas ele estava espalhado", conta Tapi.

Com a chegada dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, sertanistas que lutaram pela demarcação de terras indígenas no Xingu, veio também seu alerta de que ameaças como os garimpos e o desmatamento estavam cada vez mais próximas.

Líderes indígenas então se atentaram para a importância da preservação de seus povos e tiveram ajuda dos irmãos Villas Bôas nessa tarefa.


Aritana era uma liderança reconhecida pelos diversos povos do Xingu. Foto: Tapi Yawalapiti.

Paru, avô de Tapi e pai de Aritana, foi um dos líderes responsáveis por reunir novamente os Yawalapiti espalhados e reativar a antiga aldeia.

Hoje, Tapi trabalha para concluir seu mestrado na Universidade de Brasília, para o qual estudou e relatou a língua Yawalapiti com o pai. A defesa da dissertação teria sido em maio, mas foi adiada para novembro por causa da pandemia. "Esse projeto será uma grande lembrança do meu pai", conta ele.

Além de chefe da aldeia Tuatuari, Aritana era defensor do território indígena, ativista pelos direitos dos povos do Xingu e guardião da cultura para os Kamayurá e Yawalapiti — e até para outros povos que não faziam parte da sua ascendência.

"Meu pai era visto como uma liderança geral no Xingu", diz Tapi, que agora tem a missão de assumir o papel de líder da etnia e defensor do Xingu que era de seu pai.

"O Xingu está de luto, mas eu recebi muita força, muita gente dizendo 'você agora assumirá o papel do seu pai'. É uma grande responsabilidade", diz ele.

"Nossa cultura é muito forte — os jovens dançam, pintam, estão cantando as músicas, mas o que está enfraquecido é a língua materna", afirma.

Faz parte de seus planos produzir um livro didático para ensinar a língua para crianças e jovens de seu povo — muitas delas falam línguas como Kamayurá.

O quanto o idioma é falado de forma fluente por gerações mais jovens e usado no dia a dia são alguns critérios para estabelecer o quanto ele está em perigo, explica o linguista Angel Corbera Mori.

"A preservação da língua é parte essencial da cultura, sem falantes, ela desaparece, e, com ela, se vão se aspectos muitos centrais."

A entrada de missionários religiosos nos territórios sem autorização, que visam converter os indígenas e fazem os jovens terem menos interesse pela cultura tradicional, é apontada por ele como uma das principais ameaças à preservação das culturas indígenas.

Mori ressalta que, no momento, no entanto, as preocupações são muito maiores. "A ameaça hoje é aos próprios falantes. A preocupação no momento é com a vida." 

 

BBC News Brasil

Letícia Mori

29 de agosto de 2020 às 10:33h

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Isolados: Medidas Urgentes (O Globo)

 

Isolados

Medidas Urgentes

 

Grupo de índios isolados que vive no interior do Acre fez contato no rio Envira Foto: Funai/Arquivo


RIO - O Ministério Público Federal (MPF) cobrou do governo ação imediata para acompanhar a situação dos povos indígenas que vivem na fronteira do Acre com o Peru, em meio à pandemia da Covid-19. O ofício, encaminhado à Fundação Nacional do Índio (Funai) e à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) na noite desta segunda-feira (17/08/2020), pede urgência dos órgãos para atuarem na recente situação de contato feito por um grupo de isolados que vive no alto curso do rio Humaitá, revelado pelo GLOBO no sábado (15/08/2020).

Após o contato feito por um grupo estimado entre 10 e 20 índios com a aldeia Terra Nova, no rio Envira, onde vivem os Kulina Madiha, os isolados teriam indo embora levando alimentos, panelas, machado e algumas peças de roupa, cobertas e redes. O GLOBO apurou junto a moradores da aldeia que há índios Kulina com sintomas de tosse, dor de cabeça e cansaço. A área onde vivem esses índios é um dos pontos da Amazônia no qual não existe barreiras sanitárias instaladas pelo governo federal.

O ofício do MPF dá prazo de 48 horas para Funai e Sesai se manifestarem com dados epidemiológicos relativos aos povos indígenas localizados na região do rio Envira, onde está a aldeia Terra Nova. "Especialmente quanto a ocorrência de síndromes gripais, respiratórias agudas graves, inclusive covid-19, e outras que entender relevantes para a avaliação de risco decorrente do contato", diz o documento.

Ex-chefe da base da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, o sertanista José Meirelles afirmou ao GLOBO que a probabilidade desses índios terem se contaminado em razão do contato é de "99,9%".

- E eu não estou nem falando de coronavírus. A probabilidade desses índios terem escapado de pegar gripe é a mesma de eu ganhar na Mega-Sena. E, se pegaram, podem estar todos mortos - afirma.

O pedido de urgência, assinado pela subprocuradora-geral da República Eliana Torelly, considerou o momento delicado em que vivem esses povos originários ameaçados de serem dizimados caso o coronavírus se espalhe por suas aldeias. Eliana coordena a 6ª Câmara da Procuradoria Geral da República (PGR) e exerce o papel, no âmbito do MPF, de integrar e revisar as ações institucionais destinadas à proteção da população indígena e comunidades tradicionais.

No ofício, Eliana questiona se houve acionamento do Plano de Contingência para Situações de Contato e ativação da sala de situação conforme determina a Portaria Conjunta nº 4.094/2018, do Ministério da Saúde e da Funai, que define princípios, diretrizes e estratégias para a atenção à saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato.


Fotos mostram índios isolados na fronteira do Acre

 

Índios isolados no Rio Envira disparam flecha contra aeronave, entre a fronteira do Acre e o Peru, em foto de 2008. Foto: Gleison Miranda/Funai

Grupo de índios isolados que vive no interior do Acre fez contato no rio Envira. Foto: Funai/Arquivo
 
Ricardo Stuckert e José Meirelles flagraram movimento de isolados na floresta do Acre. Foto: Ricardo Stuckert / Agência O Globo
 
Índios atiraram flechas na tentativa de afastar a aeronave. Foto: Ricardo Stuckert / Agência O Globo
 
As fotos foram feitas durante um voo de helicóptero próximo à fronteira com o Peru. Foto: Ricardo Stuckert / Agência O Globo
 
Maloca de palha registrada durante o sobrevoo feita por José Meirelles. Foto: Ricardo Stuckert / Agência O Globo
 
Uma das características desses índios é ter parte da frente da cabeça raspada e cabelos grandes atrás. Foto: Ricardo Stuckert / Agência O Globo
 
Vista aérea da região em que os índios foram encontrados. Foto: Ricardo Stuckert / Agência O Globo

O documento lembra ainda que os Kulina "mantêm contato frequente com a cidade de Feijó, que já conta com mais de 900 casos da doença" e que a visita dos isolados "pode contribuir para disseminar o vírus entre essa população".

Eliana cita ainda a “sabida vulnerabilidade imunológica dos povos indígenas isolados e a situação de emergência sanitária estabelecida no país”.


'Carecas-cabeludos de pés grandes'

Relatos feitos ao GLOBO pelo cacique Cazuza Kulina dão conta de que, há mais ou menos uma semana, um índio chegou sozinho à aldeia e pernoitou na casa de um morador. Um dia depois, de acordo com Cazuza, homens, mulheres e crianças (estimados entre 10 e 20 indígenas) também chegaram. O contato, considerado raro por indigenistas, acontece em meio ao momento de maior risco desses povos por conta do avanço da Covid-19 dentro das florestas.

Por não terem memória imunológica para resistir às mais simples gripes, esses povos originários correm risco de serem dizimados caso sejam contaminados.

Meirelles participou de várias situações nas quais pôde registrar a presença de índios isolados nesta área do rio Envira. Na mais marcante e tensa delas, em 2014, ficou frente a frente a um grupo de isolados. (ASSISTA AO VÍDEO ABAIXO).

  


Meirelles aposta que pelas descrições feitas pelo cacique Cazuza Kulina ao GLOBO tem convicção de se tratar do mesmo grupo que avistou em duas oportunidades: em 2008, durante um sobrevoo quando era coordenador na Funai, e depois em 2016, na companhia do fotógrafo Ricardo Stuckert, em imagens que correram o mundo.

- Pelo fato de que levaram vidro de garrafa para cortar cabelo é quase certo de serem os isolados que avistamos em duas oportunidades. Eles têm a cabeça raspada até o meio e cabelos grandes atrás, provavelmente pertencem a um grupo do tronco linguístico pano.

No voo que fez com o fotógrafo Ricardo Stuckert, no final de 2016, Meirelles diz ter percebido que eles têm pés grandes também, além do corte de cabelo diferenciado.

- Essa informação de que os homens têm cortes de cabelo diferentes é muito relevante. Mostra claramente que eles pertencem a uma etnia que ainda desconhecemos. De acordo com o sertanista, esse grupo de isolados vive numa área de difícil acesso, no centro da floresta, no Alto Rio Humaitá, e se dividem em até seis aldeias. Ele estima que há cerca de 400 indígenas isolados vivendo por lá.

- Os homens andam nus, usando apenas uma casca de árvore em volta da cintura, onde amarram o pênis. Já as mulheres usam uma saia feita de algodão tingido, provavelmente tecido e fiado por elas - afirma Meirelles.

O sertanista conta, ainda, ter conhecimento desses índios desde 1989 e que eles transitam na fronteira entre Brasil e Peru com certa assiduidade. Há também indicações de que eles têm o hábito de se mudar num raio de até 10km de tempos em tempos.

Procurada, a Funai afirma que enviou uma equipe ao local. O GLOBO confirmou na manhã desta terça-feira (18/08/2020) que até o momento não havia chegado ninguém por lá.


O Globo

Daniel Biasetto

18 de agosto de 2020 às 17:21


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Isolados: Mortandade e Guerra (O Globo)

  

Isolados

Mortandade e Guerra entre Aldeias

 

O sertanista José Meirelles quando trabalhava na base da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, na foz do Igarapé Xinane com o rio Envira Foto - Arquivo Pessoal

 

RIO - Responsável por fiscalizar durante 22 anos um imenso território com a presença de ao menos quatro etnias desconhecidas no Acre, o sertanista José Meirelles faz uma previsão sombria das consequências do contato feito entre índios isolados e uma aldeia localizada no rio Envira, na fronteira com o Peru, revelado pelo GLOBO. 

Há relatos de índios com tosse, dores de cabeça e cansaço na aldeia Terra Nova, onde foi feito o contato com os isolados. A Funai diz que já enviou uma equipe ao local para investigar o caso. 

O contato, considerado raro por indigenistas, acontece em meio ao momento de maior risco desses povos originários por conta do avanço da Covid-19 dentro das florestas. 

Por experiências passadas, Meirelles arrisca a cravar "99,9% de chances" de que algum desses isolados tenha contraído gripe de algum indígena que more nessa aldeia e, de volta para suas malocas, espalhado a doença. 

- E eu não estou nem falando de coronavírus. A probabilidade desses índios terem escapado de pegar gripe é a mesma de eu ganhar na Mega-Sena. E, se pegaram, podem estar todos mortos - afirma.


Fotos mostram índios isolados na fronteira do acre


Índios isolados no Rio Envira disparam flecha contra aeronave, entre a fronteira do Acre e o Peru, em foto de 2008. Foto - Gleison Miranda/Funai


Ricardo Stuckert e José Meirelles flagraram movimento de isolados na floresta do Acre. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Índios atiraram flechas na tentativa de afastar a aeronave. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo


As fotos foram feitas durante um voo de helicóptero próximo à fronteira com o Peru. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Maloca de palha registrada durante o sobrevoo feita por José Meirelles. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Uma das características desses índios é ter parte da frente da cabeça raspada e cabelos grandes atrás. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Vista aérea da região em que os índios foram encontrados. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Meirelles aposta que pelas descrições feitas pelo cacique Cazuza Kulina ao GLOBO tem conviccção de se tratar do mesmo grupo que avistou em 2008 durante um sobrevoo quando era coordenador na Fundação Nacional do Índio (Funai) da Frente Ambiental de Proteção Etno-Ambiental do rio Envira, e depois em 2016, já fora da Funai. 

- Eu conheço o cacique Cazuza há mais de 30 anos e confio nele. Certamente aconteceu o contato. E pela descrição dele de que levaram vidro de garrafa para cortar cabelo é quase certo de serem os isolados que avistamos em duas oportunidades. Eles têm a cabeça raspada até o meio e cabelos grandes atrás, provavelmente pertencem a um grupo do tronco linguístico pano. 

De acordo com o sertanista, esse grupo de isolados vive numa área de difícil acesso, no centro da floresta, no Alto Rio Humaitá, e se dividem em até seis aldeias. Ele estima que há cerca de 400 indígenas isolados vivendo por lá. 

- Os homens andam nus, usando apenas uma casca de árvore em volta da cintura, onde amarram o pênis. Já as mulheres usam uma saia feita de algodão tingido, provavelmente tecido e fiado por elas - afirma Meirelles. 

O sertanista conta, ainda, ter conhecimento desses índios desde 1989 e que eles transitam na fronteira entre Brasil e Peru. Há também indicações de que eles têm o hábito de se mudar num raio de até 10km de tempos em tempos. 

'Carecas-cabeludos de pés grandes'

No voo que fez com o fotógrafo Ricardo Stuckert, no final de 2016, Meirellies diz ter percebido que eles têm pés grandes também, além do corte de cabelo diferenciado. 

- Essa informação de que os homens têm cortes de cabelo diferentes é muito relevante. Mostra claramente que eles pertencem a uma etnia que ainda desconhecemos. 

Meirelles participou de várias situações nas quais pôde registrar a presença de índios isolados nesta área do rio Envira. Na mais marcante e tensa delas, em 2014, ficou frente a frente a um grupo de isolados, em imagens que correram o mundo. (ASSISTA AO VÍDEO ABAIXO).




- Ali, no terceiro dia de contato, eles já estavam gripados. Foi preciso deixá-los de quarentena por dias, até se curarem, para voltar à aldeia deles. Agimos rápido com apoio médico - conta. Esse mesmo grupo, 10 anos antes, tinha flechado Meirelles no rosto durante uma emboscada na mata enquanto saía para pescar. 

Confira os principais trechos da entrevista: 

Qual o risco de um contato desse tipo em meio à pandemia?

Nessa altura do campeonato eu não estou nem preocupado com a Covid. Se esses índios estiveram na aldeia, dormiram lá, apareceu um monte de gente, pegaram roupa, comeram macaxeira, eu tenho 99,9% de certeza que eles pegaram uma gripe. Como já faz uns dez dias, se isso ocorreu, já deve ter um monte de gente morta na aldeia. 

O que fazer em uma situação dessas?

Isso é um problema seríssimo. Eu não sei o que a Funai vai fazer em relação a isso, pois ali é uma região de difícil acesso, eles vivem no centro da mata, esses índios não vivem na beira de rio. Eles vivem onde começa o enrugamento da Cordilheira dos Andes. Numa situação dessas, não tem que colocar um servidor da Funai numa canoa velha para subir. Tinha que ter acionado um helicóptero para que essa tal equipe que está indo para lá não fique presa na seca dos rios, em pleno verão amazônico. É um trabalho delicado, qualquer mal-entendido, qualquer atitude mal pensada pode levar ao desastre, até porque uma guerra pode estar em curso por lá... 

Como assim guerra?

Se essa hipótese da qual estou falando se confirmar e começar a morrer gente, o que os índios isolados vão pensar? Aqueles malditos índios que visitamos botaram feitiço na gente pra matar. E daí sabe o que vai acontecer? Os homens que não estiverem doentes vão voltar lá e flechar os madiha que deram roupas contaminadas por "feitiço”, no entendiimento deles. Então, além da gripe e da mortandade, a gente vai assistir a uma guerra. Olha o tamanho da encrenca.


Indígenas e a Pandemia de Covid-19 no Brasil

 

Indígena Yanomami usa uma máscara enquanto aguarda para fazer teste de Covid-19 em um pelotão especial de fronteira, na terra indígena de Surucucu, em Alto Alegre, Roraima Foto - ADRIANO MACHADO / REUTERS

 

A assistente de enfermagem indígena Witoto, Vanda Ortega, 32 anos, cuida de um paciente durante uma visita ao Parque das Tribos, comunidade indígena nos subúrbios de Manaus, no Amazonas. Ortega vai de casa em casa equipada com luvas, um jaleco de proteção e uma máscara na qual se lê “Vidas indígenas importam”; mensagem inspirada no slogan “Black Lives Matter”; de militantes negros nos EUA Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

Soldado do Exército distribui máscaras faciais a membros da etnia Yanomami na terra indígena de Surucucu, em Alto Alegre, Roraima Foto - NELSON ALMEIDA / AFP

 

Equipe médica das Forças Armadas realiza um teste rápido para Covid-19 em um indígena na base do pelotão especial de fronteira, em Alto Alegre Foto - NELSON ALMEIDA / AFP

 

Enfermeiras indígenas da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) da etnia Arapiuns e da etnia Tapuia realizam um teste rápido para COVID-19 no chefe Domingos, da tribo Arapium, nas margens do baixo rio Tapajós, no município de Santarém, oeste do Pará Foto - TARSO SARRAF / AFP

 

A técnica de enfermagem indígena Kambeba, Neurilene Cruz, 36 anos, realiza testes para COVID-19 às margens do rio Negro, na aldeia Três Unidos, estado do Amazonas. Foto - BRUNO KELLY / REUTERS

 

Indígenas Sateré Mawé preparam ervas medicinais para tratar pessoas com sintomas da COVID-19 na comunidade Wakiru, no bairro de Tarumã, uma área rural a oeste de Manaus. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

O líder indígena André Sateré, 38 anos, coleta ervas medicinais como carapanaúba, caferana e sara tudo, todas nativas da floresta amazônica, para tratar pessoas que apresentam sintomas do novo coronavírus. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

O líder indígena Valdiney Sateré, 43 anos, colhe caferana, planta nativa da floresta amazônica usada como erva medicinal para tratar pessoas com a COVID-19 em sua comunidade. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

Javier Alexandre Andres Cruz, 26 anos, um indígena Tikuna contaminado com a COVID-19, é atendido em uma ambulância depois de chegar de jato da UTI de Tabatinga a Manaus. Foto - BRUNO KELLY / REUTERS

 

Indígenas sateré-mawé usam um smartphone para entrar em contato com um médico no estado de São Paulo para receber orientação em meio à pandemia de coronavírus, na comunidade Sahu-Ape, a 80 km de Manaus. Lar da maioria dos povos indígenas do país, o Amazonas é uma das regiões que foram mais afetadas pela pandemia. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

Indígenas participam do funeral do chefe Messias Kokama, 53, do Parque das Tribos, que morreu pelo novo coronavírus, em Manaus. Foto - BRUNO KELLY / REUTERS

 

O chefe Leno, da tribo Kunaruara, faz um remédio natural com infusão de mel, em sua aldeia, ao lado do rio Tapajós, no município de Santarém. Foto - TARSO SARRAF / AFP

 

Funcionário da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) verifica a temperatura dos membros da etnia Tikuna, em Lago Grande, Amazonas. Foto - AFP

 

Alguns índios da aldeia disseram que estão com sintomas de gripe...

Os kulina madiha ficam distante uns quatro ou cinco dias de canoa do município de Feijó. Trocaram muitas peças com a cidade, certamente tem muito vírus da gripe entre eles. Eu me lembro do contato que fizemos com os isolados em 2014, que chegaram na aldeia mexendo em tudo. No terceiro dia, eles já estavam gripados. Se não fosse o Dr. Douglas (o médico sanitarista Douglas Rodrigues, que trabalha no Xingu) vir de São Paulo para me ajudar, teria ficado ruim. E olha que eram apenas sete índios, mas a gente conseguiu tratar. Lá, nessa localidade de agora deve ter uns 400 índios. 

Já havia registro desses índios isolados nessa região?

É um grupo grande. Não tem só uma aldeia. São várias aldeias, cinco, seis, sei lá. Provavelmente tem umas 400 pessoas, vamos dizer assim. Pelas características do cabelo comprido, testa raspada... é o único grupo isolado que ainda tem por lá, nessa área. Captamos imagens deles em dois sobrevoos, um quando estava na Funai, em 2008, e outro em 2016, quando estava acompanhado do fotógrafo Ricardo Stuckert. Eles atiraram muitas flechas contra o helicóptero e as imagens correram o mundo pela BBC. 

O cacique me disse que não entendeu bem a fala deles...

Por conta das fotos, do tipo de roçado e das festas deles, eu desconfio que fazem parte de grupos identificados como pano. Madiha (Kulina) é outro tronco linguístico, eles não entenderiam mesmo, apenas algumas palavras podem ser semelhantes. 

Como o senhor vê as ações do governo no combate à Covid-19 nas aldeias?

Com muita tristeza. Pode ter certeza que deve ter alguém no governo Bolsonaro que está achando tudo isso ótimo.

 

O Globo

Daniel Biasetto

17 de agosto de 2020 às 20:51

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Macuxi (Brasil de Fato)

   

Macuxi

Fim na Colonização Forçada

 

Viagem feita pelos estudantes de língua Macuxi e Wapichana, em 2018, para o Festival de Panelas de Barro na comunidade Raposa I - Arquivo pessoal

Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR) tem desempenhado um papel muito importante na valorização e no fortalecimento da língua e da cultura Wapichana e Macuxi no Brasil. 

Desde 2009 o Instituto Insikiran promove cursos de extensão em Língua e Cultura Wapichana e Macuxi. O projeto foi elaborado pela professora Ananda Machado, junto com Vítor Francisco Juvêncio, Wanja da Silva Sebastião, Eliza Silvino da Silva e Venceslau, que são professores e alunos do curso Licenciatura Intercultural, no Insikiran . Atualmente há uma parceria com a Organização dos Indígenas da Cidade (ODIC) e Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIRR). Os professores são todos indígenas Macuxi ou Wapichana (voluntários vinculados à ODIC ou acadêmicos da UFRR). 

Há três níveis de aprendizado (Iniciantes, Intermediário e Avançado), que conta com a Oficina de Produção de Dicionário Multimídia Wapichana e a Oficina de produção da materiais didáticos na língua Macuxi. Não há limite de vagas. 

Segundo a coordenadora do Programa de Valorização das Línguas e Culturas Indígenas de Roraima e professora do curso Gestão Territorial Indígena do Instituto Insikiran, Ananda Machado, o objetivo do projeto é contribuir na valorização do uso da língua e cultura Wapichana e Macuxi nas comunidades indígenas e na cidade, dentre outras metas. Os cursos são direcionados aos estudantes indígenas da UFRR, mas são abertos a todas as pessoas que se interessam pelo tema.

Marcos Braga, professor do curso de licenciatura intercultural e diretor do Instituto Insikiran, explica que preservar a cultura indígena é preservar a história do Brasil.

“A questão das línguas indígenas passa por um processo de revitalização, do ponto de vista do próprio movimento indígena, de valorização também quanto identidade, quanto cultura, nesse processo de retomada dos territórios tradicionais, nesse processo da educação diferenciada multicultural, multilíngue”. 

Ele explica que a formação das línguas Wapichana e Macuxi está se ampliando cada vez mais. O projeto, além de fazer parte do Programa de Extensão Universitária (ProExt), também realiza formações em diversas comunidades por todo o estado de Roraima. 

Ivo Cípio Aureliano, do povo Macuxi, hoje advogado, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e integrante da Rede de Advogados Indígenas do Brasil, foi aluno e, posteriormente, professor da língua Macuxi no curso de extensão do Instituto Insikiran, da UFRR. 

Percebendo a necessidade de defender juridicamente seu povo, ele, que também trabalha como intérprete e tradutor na área jurídica, se formou em direito e para fazer parte de diversas iniciativas de preservação da cultura e dos direitos indígenas em Roraima. 

Ivo cresceu num ambiente em que até hoje só se fala Macuxi, já que tanto seu pai, quanto sua mãe, se comunicam nesse idioma. Por conhecer a língua falada, em 2012 entrou no curso de extensão para aprender também a escrita Macuxi. 

Foi a partir do conhecimento da escrita e do incentivo de linguistas da Universidade que Ivo decidiu buscar mais informações sobre a história de seu povo o que resultou em um convite para se tornar professor. 

Ele destaca que o conhecimento da língua é importante para que se possa conhecer a cultura e a história dos povos originários. Um dos pontos do curso que mais chamaram a atenção de Ivo foi a história da construção da escrita e como isso é estudado hoje.

Ele explica que foi um ambiente muito propício para que pudesse se aproximar de outras pessoas que se interessavam e trabalhavam com sua língua materna. 

As aulas são teóricas e práticas para ajudar no vocabulário e no entendimento dos sons da língua. Em uma das aulas os estudantes levam ingredientes, todos se sentam no jardim, acendem o fogo e fazem junto a damurida (caldo apimentado que, na cidade normalmente se faz com peixe, mas nas comunidades se faz com carne de caça).

“Os alunos aprendem os nomes dos ingredientes, como se fala pra pedir isso ou aquilo, e aí todo mundo come e prova da damurida”, explica a coordenadora Ananda Machado. Já em outras aulas, os professores também trabalham teatro, cantos e danças nas línguas tradicionais.  


Material produzido por alunos na língua Macuxi. Tradução Jamaxim. É como se fosse a mochila dos indígenas (ainda usam) / Arquivo pessoal

Marcos Braga comemora os resultados do projeto. “É um programa que tem dado os resultados positivos como a co-oficialização de línguas indígenas no município de Bonfim (RR) e no município de Cantá (RR). E esse trabalho externo é imprescindível, porque o trabalho do Insikiran é justamente buscar novos aliados, buscar valorização étnico-cultural de Roraima. A Universidade tem como uma das funções sociais a extensão universitária nesse tripé da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão”, explica. 

Há uma luta também para co-oficializar as línguas Macuxi e Wapichana também no município do Uiramutã (RR), o que dá para os idiomas mais prestígio e reconhecimento dentro das escolas municipais.

“É muito mais fácil você ensinar a falar uma língua à uma criança pequenininha do que depois que cresce e isso já está comprovado cientificamente. E também tem a questão da própria prefeitura contratar pessoal [que conheça o idioma] para atender nos postos de saúde em todos os lugares falantes dessas línguas indígenas”, completa a coordenadora do curso.

Com as medidas de distanciamento social, a professora Ananda, com apoio do Insikiran e a Universidade Virtual de Roraima (UNIVIRR), está coordenando as gravações de videoaulas para o preparo específico ao concurso de professores indígenas que deve ser lançado nos próximos meses.

“Nesse curso de videoaulas, os professores estão trabalhando basicamente leituras de textos, interpretação, tradução e questões de interpretação com múltipla escolha. E aí sempre ampliando o vocabulário e explicando o funcionamento da língua de uma maneira aplicada a essa interpretação”, explica a coordenadora. 

Há também uma luta dentro da Universidade para que se crie um curso de nível superior de professor de língua indígena. "Se a pessoa fica 5 anos estudando para dar aula de inglês, por que o Macuxi não pode ficar 5 anos estudando Macuxi para ser professor de Macuxi? Por que não tem um curso de formação de tradutor e intérprete onde as técnicas atuais de tradução e interpretação possam ser trabalhadas, assim como, questões jurídicas em relação de alguns termos, de criação de neologismos?", questiona Ananda. 

Ela explica que uma situação recente mostrou a necessidade de se trabalhar o vocabulário das línguas originárias relacionando com as realidades vividas hoje.

"Nós fizemos um trabalho com a língua Macuxi com uma aluna que se formou recentemente em medicina, e tinham partes do corpo que não existiam o nome na língua. Porque algumas visões indígenas são mais sintéticas, não chegam naquele ponto de detalhe de anatomia central que vai dividindo o osso em várias partes e tal. Então foram criados muitos neologismos. Eu acho que o estado tem essa dívida com esses povos no sentido de atender a essas necessidades".  


Evento de encerramento das aulas em 2016. Na foto está Janaina, professora de língua Wapichana e sua filha. Em segundo plano, à direita, professora Ananda Machado / Arquivo pessoal 

Conquistas e cobranças

Constituição Federal de 1988 pode ser considerada um marco na conquista de direitos das populações indígenas no Brasil. O antigo Estatuto do Índio (Lei 6.001), de 1973, previa que os povos indígenas deveriam ser "integrados" ao restante da sociedade. Já a Constituição veio para garantir o respeito e a proteção à cultura dessa população, levando em conta a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. 

Um dos pontos mais importantes para os povos originários é a garantia de uma educação diferenciada, intercultural, multilíngue e comunitária. Segundo a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a coordenação nacional das políticas de Educação Escolar Indígena é de competência do Ministério da Educação (Decreto nº26, de 1991), cabendo aos estados e municípios a execução para a garantia desse direito dos povos indígenas.

Mesmo com tantas leis no papel, essa não é uma realidade para os povos indígenas no Brasil. O direito linguístico e cultural conquistado na Constituição não é praticado, explica Ananda Machado. Na sua opinião, o poder público não trabalha para colocar o ensino das línguas e da cultura indígena nas escolas, mesmo estando garantido no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI)

“Os povos não querem só o ensino de língua, eles querem escolas bilíngues. Para isso, nós teríamos que ter materiais nessas línguas para todas as disciplinas, não apenas o ensino da língua. São sonhos que na legislação já estão conquistados, mas na prática...”, explica Ananda.

Para ela, a formação de professores indígenas que saibam falar e escrever as línguas originárias pode mudar a realidade de uma comunidade. O estudo dos idiomas deveria ser escolhido de acordo com a realidade de cada território, levando em consideração o percentual de cada povo que vive naquela região. As escolas hoje perpetuam o português, mas trabalhar esses idiomas originários faria da daquele um ambiente de preservação e ampliação da cultura indígena.  

"O professor na escola tem essa função de ensinar o que essas famílias já não têm condição de ensinar em casa.", completa.  

Ananda, Ivo e Marcos concordam que é importante que as políticas públicas sejam pensadas de dentro pra fora, levando em consideração o que as comunidades querem. “Por que eles toda vida vão ter que ficar se adequando a editais que vêm de fora pra dentro? Tem recurso para cultura, mas tem que ter um ponto de cultura, então tem que adequar ao ponto de cultura. E se eles querem outra coisa? E se eles querem uma casa que receba as crianças, onde se fale a língua indígena, onde se tenham práticas tradicionais de artesanato, disso e aquilo?”, questiona Ananda. 

Ela explica que esses povos ficam desassistidos de diversas políticas por conta desse não-diálogo. E que muitas vezes as especificidades de cada território, povo e cultura não são consideradas. Um exemplo disso é que muitas comunidades indígenas não conseguem cumprir os calendários escolares porque em determinadas épocas do ano há alagamentos e não há a possibilidade das aulas serem dadas.  


Três turmas Macuxi, nível 1, 2 e 3, no local onde é assado o peixe e feito a damurida. A turma avançada ajudava os iniciantes com os nomes dos ingredientes e com os tratamentos pessoais / Arquivo pessoal 

Intercâmbios de conhecimento

Ivo conta que em sua sala de aula, a maioria das pessoas trabalhavam com atendimento às comunidades indígenas, como professores, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Também haviam pessoas que de outras áreas, mas que se interessavam pela questão indígena e queriam aprender mais sobre a cultura e a língua. Ele destaca que alguns eram da área da antropologia, do direito e das letras na UFRR.

O advogado conta que o conhecimento da língua por pessoas não indígenas, mas que trabalham com essas comunidades, ajuda a garantir os direitos e o acesso às políticas públicas à essa população. 

“A língua é uma forma de se comunicar, né, e hoje em dia, no Brasil, a gente vê a negação da identidade de um povo, principalmente em relação à língua. A gente não vê espaço nessas instituições, nas instâncias públicas, de valorizar realmente a língua indígena. São poucas as iniciativas que a gente vê por aí. Eu acredito que a língua é algo fundamental para um povo, algo que realmente pode garantir o acesso, primeiramente a informação. Porque por meio da língua que o povo tem acesso à informação sobre seus direitos, sobre as políticas públicas”, explica Ivo. 

A coordenadora do curso explica que é muito gratificante quando profissionais que trabalham diretamente com as populações indígenas buscam conhecer seus idiomas, porque mostra uma preocupação em atender com dignidade os povos.

“A área de saúde é uma das áreas em que se sofre muito, principalmente neste momento agora de pandemia, que é um momento bem-crítico. Tivemos o caso das mães Yanomami que não conseguiam se comunicar e ficaram por dias sem saber onde seus bebês estavam, e isso é recorrente aqui E é um direito garantido por lei esse que a pessoa seja atendida em sua própria língua e que é desrespeitado”, continua.   

Um caso recente chamou a atenção dos professores do Instituto. Ananda acompanhou o caso de perto. Um indígena Wai-Wai foi ao hospital acompanhado da neta, que também não entendia muito bem o português. O avô faleceu e a jovem não compreendia o que estava acontecendo e o que estava escrito nos documentos. 

Ananda destaca que aprender os idiomas indígenas é uma forma de quebrar preconceitos e de mostrar respeito por esses povos. Ela explica que em Roraima o preconceito contra essa população ainda é muito forte. No estado, muitos nomes de lugares e até o próprio nome do estado, Roraima, vem das línguas Caribes (línguas caribes, karib, caribas, caraíbas são uma família linguística indígena da América Central e da América do Sul que compreende cerca de 40 línguas faladas entre 60 e 100 mil pessoas).

As línguas Caribes estão dispersa por todo o norte da América do Sul, desde a foz do Rio Amazonas até os Andes colombianos, mas também aparece no Brasil central. Roraima significa um monte azulado/esverdeado.

Quando se fala de escolas infantis, Ananda destaca que o acolhimento deve se dar já no primeiro contato. “Para um professor que, mesmo aqui na cidade, vai receber um aluno Macuxi em sua sala de aula, saber cumprimentar esse aluno Macuxi, ele saber cantar uma música, dançar, reconhecer a importância dessas culturas para educação, para o que a gente é, para que a nossa identidade, faz diferença”, explica. 


Pandemia 

Para Ivo, o estado tem deixado de cumprir seu papel com as comunidades indígenas quando se trata de prevenção e combate ao coronavírus. “A língua serve como uma ferramenta e o estado deveria propiciar meios adequados de garantir acesso às informações nessas línguas”, defende Ivo.

Junto ao Conselho Indígena de Roraima, do qual é assessor jurídico, Ivo participou da elaboração de cartilhas com informações sobre o pandemia. O material conta com informações sobre onde surgiu, como se proteger e quais os tratamentos. 

Além do distanciamento social, a informação também pode ajudar a salvar vidas, é o que explica o advogado Ivo Cípio, que fez a tradução para a língua Macuxi. “Através da língua, a compreensão da doença se torna mais clara e isso ajuda a evitar a propagação do vírus, além de conscientizar o nosso povo”.

A produção foi feita em parceria do CIR com a UFRR, Instituto Insikiran, Projeto Bem Viver, Nature and Culture Internacional, Niatero e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), com tradução de Josue Barbosa Andrade (Ingarikó), Ivo Cípio (Macuxi), Niatero (Taurepang), Cléia Alice Morais da Silva (Wai-Wai), Jairo David Rodrigues (Ye'Kuana) e Nilzimara de Souza Silva (Wapichana). 

O material está sendo distribuído para dez regiões: Serra da lua, Amajari, Serras, Raposa, Tabaio, Auto Cuamé, Baixo Cotingo, Murupú, Surumu e Wai-wai. 


Cartilha com termos sobre a pandemia traduzido para o Macuxi / Arte: CIR
 

Na mesma linha, a UFRR criou a campanha “Vamos Todos Cuidar de Todos” #NinguémFicaPraTrás. Em parceria com o Instituto Insikiran, a Universidade produziu vídeos com informações sobre os sintomas e formas de evitar o contágio da covid-19 nas línguas indígenas Ye'kwanaWapichanaYanomamiTaurepang PemomTaurepang, que são algumas das etnias indígenas presentes no estado de Roraima.

O professor Ivo explica que uma informação que não chega aos indígenas, que não é compreendida por aquela população, não cumpre sua razão de existir. Ivo completa, “a língua é o meio que deveria existir hoje para que tenha os povos indígenas tenham direito a saúde, a educação e todos os outros direitos”.  

O Ivo acredita que disseminar o conhecimento tradicional é garantir que essas línguas não caiam em extinção, como muitas outra que já deixaram de existir no Brasil. 

“É justamente para não deixar ficar no passado, que a gente precisa registrar essa língua. O estudo é muito importante para que a língua possa continuar viva hoje nesse mundo que a gente vive, para que apesar da tecnologia e das demais áreas de conhecimento, essas línguas possam continuar vivas”, explica. 

“O conhecimento de línguas indígenas para a sociedade externa aos territórios, aos povos indígenas, é uma forma de valorização e reconhecimento na busca de uma sociedade mais tolerante que respeite o outro nas suas diferenças culturais”, finalizou o professor e diretor do Instituto Insikiran, Marcos Braga.

Ananda Machado compara o desaparecimento das culturas indígenas com o fim de árvores e plantas da Floresta Amazônica.

“As coisas vão desaparecendo e às vezes sem a gente nem saber que elas existiam. Há línguas que desapareceram e que não têm nenhum registro escrito, nenhuma gravação, e isso ainda acontece na atualidade. Nós temos muito mais línguas do que linguistas estudando essas línguas. É como se fosse um etnocídio: você matar uma língua é matar uma cultura, porque você mata uma única forma de existir. Você mata quem talvez saiba o nome de árvores que talvez não existam mais, pássaros que não existam mais, que existam apenas nessa língua, ou apenas nas histórias que se contam nessa língua, ou então estejam presentes somente em danças que esse povo pratica" explica.

“A língua é um elemento bem central para a construção de uma identidade, tanto que quando o colonizador chegou, o português foi enfiado à ferro e fogo, levaram 100 anos para enfiar o português na Amazônia” completa a professora. 

Num tom esperançoso, a coordenadora do curso de extensão conclui “a meta é que a gente consiga mudar um pouco essa direção dessa construção de monolinguismo da língua portuguesa para de fato viabilizar essa riqueza que é uma sociedade multilíngue, mais inteligente, mais aberta e com mais possibilidades de troca”.  

 

Brasil de Fato

Martha Raquel

14 de agosto de 2020 às 21:45