Macuxi
Fim na Colonização Forçada
O Instituto Insikiran
de Formação Superior Indígena da Universidade
Federal de Roraima (UFRR) tem desempenhado um papel muito
importante na valorização e no fortalecimento da língua e da cultura Wapichana
e Macuxi no Brasil.
Desde 2009 o Instituto Insikiran promove cursos de extensão em
Língua e Cultura Wapichana e Macuxi. O projeto foi elaborado pela professora
Ananda Machado, junto com Vítor Francisco Juvêncio, Wanja da Silva
Sebastião, Eliza Silvino da Silva e Venceslau, que são professores e
alunos do curso Licenciatura Intercultural, no Insikiran . Atualmente
há uma parceria com a Organização dos Indígenas da Cidade (ODIC) e Organização
dos Professores Indígenas de Roraima (OPIRR). Os professores são todos
indígenas Macuxi ou Wapichana (voluntários vinculados à ODIC ou acadêmicos da
UFRR).
Há três níveis de aprendizado (Iniciantes, Intermediário e
Avançado), que conta com a Oficina de Produção de Dicionário Multimídia
Wapichana e a Oficina de produção da materiais didáticos na língua Macuxi. Não
há limite de vagas.
Segundo a coordenadora do Programa
de Valorização das Línguas e Culturas Indígenas de Roraima e
professora do curso Gestão Territorial
Indígena do Instituto Insikiran, Ananda Machado, o objetivo do
projeto é contribuir na valorização do uso da língua e cultura Wapichana e
Macuxi nas comunidades indígenas e na cidade, dentre outras metas. Os cursos
são direcionados aos estudantes indígenas da UFRR, mas são abertos a todas as
pessoas que se interessam pelo tema.
Marcos Braga, professor do curso de licenciatura intercultural e
diretor do Instituto
Insikiran, explica que preservar a cultura indígena é preservar a
história do Brasil.
“A questão das línguas indígenas passa por um processo de
revitalização, do ponto de vista do próprio movimento indígena, de valorização
também quanto identidade, quanto cultura, nesse processo de retomada dos
territórios tradicionais, nesse processo da educação diferenciada
multicultural, multilíngue”.
Ele explica que a formação das línguas Wapichana e Macuxi está se
ampliando cada vez mais. O projeto, além de fazer parte do Programa de Extensão
Universitária (ProExt), também realiza formações em diversas comunidades por
todo o estado de Roraima.
Ivo Cípio Aureliano, do povo Macuxi, hoje advogado, assessor
jurídico do Conselho Indígena de
Roraima (CIR) e integrante da Rede de Advogados Indígenas do
Brasil, foi aluno e, posteriormente, professor da língua Macuxi no curso de
extensão do Instituto Insikiran, da UFRR.
Percebendo a necessidade de defender juridicamente seu povo, ele,
que também trabalha como intérprete e tradutor na área jurídica, se formou em
direito e para fazer parte de diversas iniciativas de preservação da
cultura e dos direitos indígenas em Roraima.
Ivo cresceu num ambiente em que até hoje só se fala Macuxi, já que
tanto seu pai, quanto sua mãe, se comunicam nesse idioma. Por conhecer a língua
falada, em 2012 entrou no curso de extensão para aprender também a escrita
Macuxi.
Foi a partir do conhecimento da escrita e do incentivo de
linguistas da Universidade que Ivo decidiu buscar mais informações sobre a
história de seu povo o que resultou em um convite para se tornar professor.
Ele destaca que o conhecimento da língua é importante para que se
possa conhecer a cultura e a história dos povos originários. Um dos pontos do
curso que mais chamaram a atenção de Ivo foi a história da construção da
escrita e como isso é estudado hoje.
Ele explica que foi um ambiente muito propício para que pudesse se
aproximar de outras pessoas que se interessavam e trabalhavam com sua língua
materna.
As aulas são teóricas e práticas para ajudar no vocabulário e no
entendimento dos sons da língua. Em uma das aulas os estudantes levam
ingredientes, todos se sentam no jardim, acendem o fogo e fazem junto a
damurida (caldo apimentado que, na cidade normalmente se faz com peixe, mas nas
comunidades se faz com carne de caça).
“Os alunos aprendem os nomes dos ingredientes, como se fala pra pedir isso ou aquilo, e aí todo mundo come e prova da damurida”, explica a coordenadora Ananda Machado. Já em outras aulas, os professores também trabalham teatro, cantos e danças nas línguas tradicionais.
Marcos Braga comemora os resultados do projeto. “É um programa que
tem dado os resultados positivos como a co-oficialização de línguas indígenas
no município de Bonfim (RR) e no município de Cantá (RR). E esse trabalho
externo é imprescindível, porque o trabalho do Insikiran é justamente buscar
novos aliados, buscar valorização étnico-cultural de Roraima. A Universidade
tem como uma das funções sociais a extensão universitária nesse tripé da indissociabilidade
do ensino, pesquisa e extensão”, explica.
Há uma luta também para co-oficializar as línguas Macuxi e
Wapichana também no município do Uiramutã (RR), o que dá para os
idiomas mais prestígio e reconhecimento dentro das escolas
municipais.
“É muito mais fácil você ensinar a falar uma língua à uma criança
pequenininha do que depois que cresce e isso já está comprovado
cientificamente. E também tem a questão da própria prefeitura contratar pessoal
[que conheça o idioma] para atender nos postos de saúde em todos os lugares
falantes dessas línguas indígenas”, completa a coordenadora do curso.
Com as medidas de distanciamento social, a professora Ananda,
com apoio do Insikiran e a Universidade
Virtual de Roraima (UNIVIRR), está coordenando as gravações
de videoaulas para o preparo específico ao concurso de professores
indígenas que deve ser lançado nos próximos meses.
“Nesse curso de videoaulas, os professores estão trabalhando
basicamente leituras de textos, interpretação, tradução e questões de
interpretação com múltipla escolha. E aí sempre ampliando o vocabulário e
explicando o funcionamento da língua de uma maneira aplicada a essa
interpretação”, explica a coordenadora.
Há também uma luta dentro da Universidade para que se crie um
curso de nível superior de professor de língua indígena. "Se a pessoa fica
5 anos estudando para dar aula de inglês, por que o Macuxi não pode ficar 5
anos estudando Macuxi para ser professor de Macuxi? Por que não tem um curso de
formação de tradutor e intérprete onde as técnicas atuais de tradução e
interpretação possam ser trabalhadas, assim como, questões jurídicas em relação
de alguns termos, de criação de neologismos?", questiona Ananda.
Ela explica que uma situação recente mostrou a necessidade de se
trabalhar o vocabulário das línguas originárias relacionando com as realidades
vividas hoje.
"Nós fizemos um trabalho com a língua Macuxi com uma aluna que se formou recentemente em medicina, e tinham partes do corpo que não existiam o nome na língua. Porque algumas visões indígenas são mais sintéticas, não chegam naquele ponto de detalhe de anatomia central que vai dividindo o osso em várias partes e tal. Então foram criados muitos neologismos. Eu acho que o estado tem essa dívida com esses povos no sentido de atender a essas necessidades".
Conquistas e cobranças
A Constituição
Federal de 1988 pode ser considerada um marco na conquista de
direitos das populações indígenas no Brasil. O antigo Estatuto do Índio
(Lei 6.001), de 1973, previa que os povos indígenas deveriam ser
"integrados" ao restante da sociedade. Já a Constituição veio para
garantir o respeito e a proteção à cultura dessa população, levando em conta a
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Um dos pontos mais importantes para os povos originários é a
garantia de uma educação diferenciada, intercultural, multilíngue e
comunitária. Segundo a Constituição e a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB), a coordenação nacional das
políticas de Educação Escolar Indígena é de competência do Ministério da
Educação (Decreto nº26, de 1991), cabendo aos estados e municípios a execução
para a garantia desse direito dos povos indígenas.
Mesmo com tantas leis no papel, essa não é uma realidade para
os povos indígenas no Brasil. O direito linguístico e cultural conquistado na
Constituição não é praticado, explica Ananda Machado. Na sua opinião, o poder
público não trabalha para colocar o ensino das línguas e da cultura indígena
nas escolas, mesmo estando garantido no Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI).
“Os povos não querem só o ensino de língua, eles querem escolas
bilíngues. Para isso, nós teríamos que ter materiais nessas línguas para todas
as disciplinas, não apenas o ensino da língua. São sonhos que na legislação já estão
conquistados, mas na prática...”, explica Ananda.
Para ela, a formação de professores indígenas que saibam falar e escrever as línguas originárias pode mudar a realidade de uma comunidade. O estudo dos idiomas deveria ser escolhido de acordo com a realidade de cada território, levando em consideração o percentual de cada povo que vive naquela região. As escolas hoje perpetuam o português, mas trabalhar esses idiomas originários faria da daquele um ambiente de preservação e ampliação da cultura indígena.
"O professor na escola tem essa função de ensinar o que essas famílias já não têm condição de ensinar em casa.", completa.
Ananda, Ivo e Marcos concordam que é importante que as políticas
públicas sejam pensadas de dentro pra fora, levando em consideração o que as
comunidades querem. “Por que eles toda vida vão ter que ficar se adequando a
editais que vêm de fora pra dentro? Tem recurso para cultura, mas tem que ter
um ponto de cultura, então tem que adequar ao ponto de cultura. E se eles
querem outra coisa? E se eles querem uma casa que receba as crianças, onde se
fale a língua indígena, onde se tenham práticas tradicionais de artesanato,
disso e aquilo?”, questiona Ananda.
Ela explica que esses povos ficam desassistidos de diversas políticas por conta desse não-diálogo. E que muitas vezes as especificidades de cada território, povo e cultura não são consideradas. Um exemplo disso é que muitas comunidades indígenas não conseguem cumprir os calendários escolares porque em determinadas épocas do ano há alagamentos e não há a possibilidade das aulas serem dadas.
Intercâmbios de conhecimento
Ivo conta que em sua sala de aula, a maioria das pessoas
trabalhavam com atendimento às comunidades indígenas, como professores,
enfermeiros e técnicos de enfermagem. Também haviam pessoas que de outras
áreas, mas que se interessavam pela questão indígena e queriam aprender mais sobre
a cultura e a língua. Ele destaca que alguns eram da área da antropologia, do
direito e das letras na UFRR.
O advogado conta que o conhecimento da língua por pessoas não
indígenas, mas que trabalham com essas comunidades, ajuda a garantir os
direitos e o acesso às políticas públicas à essa população.
“A língua é uma forma de se comunicar, né, e hoje em dia, no
Brasil, a gente vê a negação da identidade de um povo, principalmente em
relação à língua. A gente não vê espaço nessas instituições, nas instâncias
públicas, de valorizar realmente a língua indígena. São poucas as iniciativas
que a gente vê por aí. Eu acredito que a língua é algo fundamental para um
povo, algo que realmente pode garantir o acesso, primeiramente a informação.
Porque por meio da língua que o povo tem acesso à informação sobre seus
direitos, sobre as políticas públicas”, explica Ivo.
A coordenadora do curso explica que é muito gratificante quando
profissionais que trabalham diretamente com as populações indígenas buscam
conhecer seus idiomas, porque mostra uma preocupação em atender com dignidade
os povos.
“A área de saúde é uma das áreas em que se sofre muito, principalmente neste momento agora de pandemia, que é um momento bem-crítico. Tivemos o caso das mães Yanomami que não conseguiam se comunicar e ficaram por dias sem saber onde seus bebês estavam, e isso é recorrente aqui E é um direito garantido por lei esse que a pessoa seja atendida em sua própria língua e que é desrespeitado”, continua.
Um caso recente chamou a atenção dos professores do Instituto.
Ananda acompanhou o caso de perto. Um indígena Wai-Wai foi ao hospital
acompanhado da neta, que também não entendia muito bem o português. O avô
faleceu e a jovem não compreendia o que estava acontecendo e o que estava
escrito nos documentos.
Ananda destaca que aprender os idiomas indígenas é uma forma de
quebrar preconceitos e de mostrar respeito por esses povos. Ela explica que em
Roraima o preconceito contra essa população ainda é muito forte. No estado,
muitos nomes de lugares e até o próprio nome do estado, Roraima, vem das
línguas Caribes (línguas caribes, karib, caribas, caraíbas são uma família
linguística indígena da América Central e da América do Sul que compreende
cerca de 40 línguas faladas entre 60 e 100 mil pessoas).
As línguas Caribes estão dispersa por todo o norte da
América do Sul, desde a foz do Rio Amazonas até os Andes colombianos, mas
também aparece no Brasil central. Roraima significa um monte
azulado/esverdeado.
Quando se fala de escolas infantis, Ananda destaca que o acolhimento deve se dar já no primeiro contato. “Para um professor que, mesmo aqui na cidade, vai receber um aluno Macuxi em sua sala de aula, saber cumprimentar esse aluno Macuxi, ele saber cantar uma música, dançar, reconhecer a importância dessas culturas para educação, para o que a gente é, para que a nossa identidade, faz diferença”, explica.
Pandemia
Para Ivo, o estado tem deixado de cumprir seu papel com as
comunidades indígenas quando se trata de prevenção e combate ao coronavírus. “A
língua serve como uma ferramenta e o estado deveria propiciar meios adequados
de garantir acesso às informações nessas línguas”, defende Ivo.
Junto ao Conselho Indígena de Roraima, do qual é assessor
jurídico, Ivo participou da elaboração de cartilhas com informações sobre o
pandemia. O material conta com informações sobre onde surgiu, como se proteger
e quais os tratamentos.
Além do distanciamento social, a informação também pode ajudar a
salvar vidas, é o que explica o advogado Ivo Cípio, que fez a tradução para a
língua Macuxi. “Através da língua, a compreensão da doença se torna mais clara
e isso ajuda a evitar a propagação do vírus, além de conscientizar o nosso
povo”.
A produção foi feita em parceria do CIR com a UFRR, Instituto
Insikiran, Projeto Bem Viver, Nature and Culture Internacional, Niatero e
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), com
tradução de Josue Barbosa Andrade (Ingarikó), Ivo Cípio (Macuxi), Niatero
(Taurepang), Cléia Alice Morais da Silva (Wai-Wai), Jairo David Rodrigues
(Ye'Kuana) e Nilzimara de Souza Silva (Wapichana).
O material está sendo distribuído para dez regiões: Serra da lua, Amajari, Serras, Raposa, Tabaio, Auto Cuamé, Baixo Cotingo, Murupú, Surumu e Wai-wai.
Na mesma linha, a UFRR criou a campanha “Vamos Todos Cuidar de
Todos” #NinguémFicaPraTrás. Em parceria com o Instituto Insikiran, a
Universidade produziu vídeos com informações sobre os sintomas e formas de
evitar o contágio da covid-19 nas línguas indígenas Ye'kwana, Wapichana, Yanomami, Taurepang Pemom, Taurepang, que são algumas das
etnias indígenas presentes no estado de Roraima.
O professor Ivo explica que uma informação que não chega aos
indígenas, que não é compreendida por aquela população, não cumpre sua razão de
existir. Ivo completa, “a língua é o meio que deveria existir hoje para que
tenha os povos indígenas tenham direito a saúde, a educação e todos os outros
direitos”.
O Ivo acredita que disseminar o conhecimento tradicional é
garantir que essas línguas não caiam em extinção, como muitas outra que já
deixaram de existir no Brasil.
“É justamente para não deixar ficar no passado, que a gente
precisa registrar essa língua. O estudo é muito importante para que a língua
possa continuar viva hoje nesse mundo que a gente vive, para que apesar da
tecnologia e das demais áreas de conhecimento, essas línguas possam continuar
vivas”, explica.
“O conhecimento de línguas indígenas para a sociedade externa aos
territórios, aos povos indígenas, é uma forma de valorização e reconhecimento
na busca de uma sociedade mais tolerante que respeite o outro nas suas
diferenças culturais”, finalizou o professor e diretor do Instituto Insikiran,
Marcos Braga.
Ananda Machado compara o desaparecimento das culturas indígenas
com o fim de árvores e plantas da Floresta Amazônica.
“As coisas vão desaparecendo e às vezes sem a gente nem saber que
elas existiam. Há línguas que desapareceram e que não têm nenhum registro
escrito, nenhuma gravação, e isso ainda acontece na atualidade. Nós temos muito
mais línguas do que linguistas estudando essas línguas. É como se fosse um
etnocídio: você matar uma língua é matar uma cultura, porque você mata uma
única forma de existir. Você mata quem talvez saiba o nome de árvores que
talvez não existam mais, pássaros que não existam mais, que existam apenas
nessa língua, ou apenas nas histórias que se contam nessa língua, ou então
estejam presentes somente em danças que esse povo pratica" explica.
“A língua é um elemento bem central para a construção de uma
identidade, tanto que quando o colonizador chegou, o português foi enfiado à
ferro e fogo, levaram 100 anos para enfiar o português na
Amazônia” completa a professora.
Num tom esperançoso, a coordenadora do curso de extensão conclui
“a meta é que a gente consiga mudar um pouco essa direção dessa construção de
monolinguismo da língua portuguesa para de fato viabilizar essa riqueza que é
uma sociedade multilíngue, mais inteligente, mais aberta e com mais
possibilidades de troca”.
Martha Raquel
14
de agosto de 2020 às 21:45
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