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quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Amazonas: o Maior Rio do Mundo (G1)

 

Primeiro filme rodado na Amazônia passou quase um século desaparecido antes de ser recuperado 

 

Primeiro filme rodado na Amazônia passou quase um século desaparecido antes de ser recuperado.

O primeiro filme rodado na Amazônia passou quase um século desaparecido antes de ser recuperado há poucos meses do outro lado do oceano.

Amazonas — um dos maiores rios do mundo — é o protagonista desta relíquia do cinema mudo brasileiro. O primeiro longa-metragem produzido na Amazônia nunca foi exibido no Brasil. Silvino Santos, um português radicado em Manaus, começou as filmagens em 1918.

“Um dos cineastas pioneiros em se filmar a Amazônia e é um dos cineastas mais reconhecidos desse período na história do cinema brasileiro”, diz Sávio, pesquisador da UFPA.

Em dois anos, o cineasta registrou a cultura, o cotidiano e a biodiversidade amazônica. Como a comercialização de produtos da floresta no mercado do ver o peso, em Belém.  

O cineasta acompanhou a coleta de castanha, a produção de pirarucu e a pesca de peixe-boi — hoje, espécie ameaçada de extinção. O longa também mostra a Ilha do Marajó e a relação dos indígenas peruanos com a natureza. E, em Manaus, a imponência do Teatro Amazonas.

Quando o filme ficou pronto, em 1920, Silvino Santos encarregou um procurador de promover o longa-metragem na Europa. Mas pesquisadores descobriram que ele enganou o cineasta e passou a se apresentar como autor do filme. O longa-metragem foi vendido ilegalmente, recebeu até outro nome: “As Maravilhas do Amazonas” — e fez muito sucesso.

“A gente tem notícia que esse filme foi vendido para a Gaumont, que é uma distribuidora francesa e, a partir desse momento, esse filme começa a passar e ser exibido em diversos países, na França, na Itália, na Tchecoslováquia, na Espanha, na Inglaterra também, por quase uma década”, conta Sávio.

 

Primeiro filme rodado na Amazônia passou quase um século desaparecido antes de ser recuperado — Foto: Jornal Nacional/Reprodução


Klára Trsková trabalha na curadoria da Cinemateca de Praga, na República Tcheca. Era no acervo que estava a obra perdida de Silvino Santos. Por aqui, achavam que se tratava de um filme norte-americano.

“A minha colega Ivona ela é especialista no cinema mudo e ela viu que a estética dos filmes norte-americanos dos anos 20 não correspondia a este filme”, diz Klára.

A Cinemateca pediu ajuda de um curador italiano. Jay Weisseberg entrou em contato com o professor Sávio, no Brasil, e a verdade veio à tona, em 2023.

“Eu comecei a pesquisar e localizar documentos importantes, fotográficos, textuais, do que foi esse filme e dessa circulação na Europa. E foram esses documentos que permitiram essa identificação dessa cópia que foi achada na Cinemateca Tcheca”, conta Sávio.

O festival de cinema mudo Pordenone, na Itália, exibiu o filme e homenageou Silvino Santos. Pela primeira vez, o longa foi apresentado com o título original: Amazonas — o Maior Rio do Mundo.

“Foi realmente uma experiência impressionante e maravilhosa para mim se conectar com um filme tão importante para o Brasil”, diz o curador italiano Jay Weissberg.

“Todas essas imagens são um documento e têm um valor muito grande para a gente se compreender outras épocas e para a gente pensar também o nosso tempo. Que avanços a gente teve em termos de proteção da natureza, de relação com povos originários, é um documento muito importante para a gente pensar sobre essas diferenças entre as épocas”, diz Sávio Stocco.

 

G1

Jornal Nacional

23 de novembro de 2023 às 21h43

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Direito Real de Uso (Dia a Dia)

 Ribeirinhos ganham direito inédito de uso da terra no Amazonas após 16 anos de luta

Em março, 15 comunidades ribeirinhas do Rio Manicoré, no Amazonas, conquistaram, de maneira coletiva, uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU); é a primeira vez que isso ocorre no Estado.


 

Porto de comunidade ribeirinha no Rio Manicoré. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

 

Liderados por uma professora e uma agricultora familiar, 15 comunidades tradicionais das florestas públicas de Manicoré, município no sul do Amazonas, conquistaram em março o reconhecimento e o direito de uso coletivo do território após 16 anos de luta. É a primeira vez na história do Amazonas que povos tradicionais ganham uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) coletiva por tempo indeterminado.

Também é a primeira vez que a concessão é aplicada a famílias que não vivem em uma unidade de conservação. A reportagem é da Mongabay.

“Criamos o Território de Uso Comum do Rio Manicoré, uma experiência inédita de proteção”, diz o procurador do Estado Daniel Viegas, chefe da Procuradoria do Meio Ambiente, explicando que, para emitir a CDRU aos ribeirinhos do Rio Manicoré, o governo amazonense teve que alterar a legislação fundiária estadual.

 

Parte destes ribeirinhos luta, desde 2006, para que o território seja transformado em Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Mas, por medo e desinformação espalhados por madeireiros e grileiros, a maioria dos comunitários não aprova a reserva.

 

Formado por um mosaico de três Terras Indígenas, nove Unidades de Conservação e quase 9 mil km2 de florestas públicas não destinadas (é nesta área que vivem os ribeirinhos), a região do Rio Manicoré é uma das mais preservadas da Amazônia brasileira.

Além da preservação ambiental de uma área de extrema importância para a Amazônia, a CDRU ajudará a manter o modo de vida tradicional dos cerca de 4 mil ribeirinhos que vivem no território, entre extrativistas, agricultores familiares e artesãos de canoa e remo.

“O Manicoré vive do açaí, castanha, tucumã, banana, cacau e da roça. Vivem todos bem, do que a natureza dá, sem desmatar”, afirma a agricultora familiar Maria Clea Delgado, presidenta da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim), uma das responsáveis pela conquista da Concessão.

 

Mulher ribeirinha na região do Rio Manicoré; moradores se deslocam pelo território por meio de canoas e barcos. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

 

Quando a Mongabay visitou as comunidades, em junho, os comunitários se preparavam para a Festa do Açaí da comunidade do Estirão, a uma hora de barco do município de Manicoré.

“Todo mundo planta açaí aqui”, diz o agroextrativista Manoel Tomé Correa, exibindo com orgulho a pequena plantação de açaí da família — que inclui tios, os pais, dois irmãos e os sobrinhos, todos vizinhos.

 

“A Festa do Açaí do Estirão é a melhor festa do Rio Manicoré, um dia e uma noite de festa. Tem forró, tem a dança do açaí. Todo o dinheiro conseguido na festa vai para a nossa associação comunitária”, conta o agroextrativista.

 

Toda a família de Manoel nasceu na comunidade e trabalha coletando açaí, castanha e andiroba. Do açaí, eles fazem o suco e o creme; da andiroba, extraem o famoso óleo do fruto, usado para quase tudo no Amazonas: de repelente natural a remédio para curar dor de garganta. Tudo o que colhem e coletam do próprio quintal é vendido em Manicoré ou para atravessadores que percorrem o rio em busca dos produtos da floresta.

“Tem que preservar a floresta para depois não faltar. Aqui, a gente vive tranquilo. Mas estão destruindo aí para dentro, a gente ouve. Se destruírem, como vamos sobreviver?”, diz Manoel, que nunca saiu da comunidade.

Para a gestora ambiental Cristiane Mazzetti, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil, a CDRU é uma importante conquista na luta dos povos do Rio Manicoré.

 

“Apesar de a CDRU não ser um instrumento de conservação ambiental, ela tem objetivos que se aproximam dos de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, como a garantia da permanência das populações tradicionais e a manutenção das suas atividades sustentáveis, além do próprio reconhecimento do território”, explica Mazzetti.

 

O procurador do Estado Viegas concorda. “Por meio da regularização fundiária, a Concessão de Direito Real de Uso produz efeitos sobre a proteção ambiental, já que o texto da CDRU traz limites para a exploração no território”, afirma.

De acordo com a Lei n 9985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), populações tradicionais que vivem em reservas, florestas nacionais e demais unidades de conservação podem fazer uso dos recursos naturais de forma racional e desenvolver atividades econômicas sustentáveis, como o extrativismo, mas fica proibida a caça e a pesca profissional e a exploração dos recursos minerais.

 

O agricultor Manoel Tomé Correa mostra o óleo de andiroba feito pela família em uma comunidade no Rio Manicoré. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

 

“Balsas de madeira entram e saem toda semana”

Apesar da conquista, o objetivo da Caarim, formada por parte dos 4 mil ribeirinhos que habitam a área, é o de transformar a região em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

“Lutamos para que aqui seja uma RDS por causa das invasões e do desmatamento no nosso território. Queremos proteção”, explica a professora municipal Marilourdes Cunha da Silva, fundadora da Caarim.

Quem navega pelas águas que cortam a extensão territorial do município de Manicoré consegue avistar balsas que chamam atenção pelos nomes — Dona Raimunda, Fátima, Rosa —, mas também pela quantidade de toras de madeira que carregam. Algumas também levam gado e tratores.

“Tem muito madeireiro na região oferecendo dinheiro para a gente cortar árvores nativas. Por um angelim desse tamanho, estão pagando 400 reais”, conta um ribeirinho ao avistar um angelim de cerca de 30 metros de altura, nativo da região e cobiçado pelos madeireiros. “Tem gente que aceita cortar porque é um dinheiro rápido, mais rápido que plantar uma roça e ter que esperar meses para colher”, diz o morador, que por segurança não será identificado.

“Balsas com madeira entram e saem daqui toda semana. Três, quatro balsas carregadas de madeira saindo do Rio Manicoré toda sexta-feira. Isso [vem acontecendo] mesmo depois da CDRU”, relata uma moradora. Por segurança, ela também não será identificada.

Na altura do Rio Madeira, nas margens da área urbana de Manicoré, há, ainda, dragas de garimpo revirando o solo e poluindo as águas do rio.

 

Balsa com toras de madeira no Rio Manicoré em agosto de 2022. Foto: Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim)

 

“Já me ofereceram trabalho aí nessas balsas de garimpo do Madeira, mas eu disse não. Depois disso, uns homens apareceram na porta de casa com um amigo meu para tentar me convencer”, conta um ribeirinho que nasceu em uma das comunidades e hoje vive na área urbana.

 

De fato, o trânsito de balsas demonstra que a paisagem preservada das florestas de Manicoré tem mudado na última década: o território por onde se estende o município registrou mais de 150 km2 desmatados apenas no primeiro semestre de 2022. A quantidade já é maior que o desmatamento ocorrido nos doze meses de 2021, quando o município bateu recorde histórico, com 134,7 km2 devastados, segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes/Inpe).

 

“A gente já fotografou [as balsas de madeira], mandou para o MPF, fez ofício pedindo para fiscalizar e nunca recebemos nenhuma resposta. É por isso que queremos que essa área seja uma RDS, para frear esse desmatamento”, diz a presidenta da Caarim, Maria Clea.

 

Quanto ao garimpo, dados da Agência Nacional de Mineração levantados pela Mongabay mostram que existem 19 requerimentos de lavra garimpeira para uso industrial ativos em Manicoré.

Sobre as denúncias, a reportagem procurou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Ministério Público do Amazonas. O IBAMA não respondeu os questionamentos e o MP-AM afirmou que as denúncias dos comunitários são objeto de inquérito civil no Ministério Público Federal.

“Agora, estamos preocupados em como será o desmatamento nesse semestre. Estamos vendo que se os próximos meses forem igual a maio e abril, os desmatadores virão com tudo”, diz Clea.

Em março, mês em que o território do Rio Manicoré passou a ser protegido pela CDRU, o Greenpeace flagrou um desmatamento de 1.900 hectares no meio da floresta nativa. Em agosto, a organização voltou a sobrevoar a região e registrou uma queimada de grandes proporções na área desmatada, cuja fumaça chegou inclusive a encobrir o céu de Manaus, a cerca de 330 quilômetros dali.

 

Queimada registrada em agosto de 2022 dentro da CDRU do Rio Manicoré em área desmatada em março. Foto: Christian Braga/Greenpeace

 

O levante de mulheres ribeirinhas

Maria Clea e Marilourdes lutam há 16 anos pela criação da RDS do Rio Manicoré. Elas se conheceram ao acaso em 2006, durante um deslocamento de voadeira, espécie de canoa motorizada, pelo Rio Manicoré — os rios funcionam como ruas e estradas para os ribeirinhos, uma vez que não há vias terrestres que liguem uma comunidade a outra. Algumas comunidades estão a horas de barco da sede do município.

“Começamos a conversar sobre a situação do Manicoré e descobrimos que nós duas tínhamos criado associações em nossas comunidades. Pensamos: ‘Por que a gente não cria uma associação geral?’”, conta Clea, conhecida na região por histórias como a vez em que entregou nas mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma carta pedindo energia elétrica para as comunidades do Rio Manicoré.

Antes de fundarem oficialmente a Caarim, o primeiro passo da dupla foi descobrir “quem era o dono do rio”, como diz Clea, uma vez que os ribeirinhos que habitam o local há décadas não têm escritura das terras por essas serem florestas públicas não destinadas.

“Descobrimos que as terras são do estado (Amazonas) e buscamos orientação do Incra para saber o que poderia ser feito para nos proteger. Foi aí que nasceu a ideia de se criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável”, explica a agricultora.

A professora Marilourdes lembra com orgulho que, quando nasceu a Central das Associações, ribeirinhos de todas as comunidades apoiavam a criação da reserva.

“Nos primeiros anos, nossas reuniões tinham mais de 400 ribeirinhos, mas lá por volta de 2014, começou um movimento contrário. Começaram a espalhar uma conversa de que, se fosse aprovada a reserva, o ribeirinho seria proibido de caçar, pescar, tirar madeira para construir sua casa ou canoa, essas coisas. O comunitário ficou com medo de perder suas terras e a luta foi retrocedendo”, diz Marilourdes.

Segundo as lideranças, os boatos foram espalhados por políticos da região e pessoas ligadas a madeireiros ilegais vindos de Santo Antônio de Matupi, distrito de Manicoré.

A tensão entre apoiadores e não apoiadores piorou em 2015, quando aconteceu uma audiência pública sobre a proposta de criação da RDS do Rio Manicoré e a maioria dos presentes foi contra. “Fomos impedidas de falar nessa audiência pública”, afirma Clea.

Comunitários que apoiavam a Caarim na época relataram ter sofrido intimidações de anônimos, como ter suas voadeiras empurradas no rio para longe de suas comunidades.

O episódio conseguiu desarticular por cerca de quatro anos a luta da professora e da agricultora.

“De 2015 para cá, aumentou muito a grilagem de terras, a pesca ilegal, a extração de madeira da floresta. Os madeireiros colocaram a motosserra para funcionar quando viram que aquela audiência pública não deu em nada”, diz Clea.

 

Considerada uma das áreas mais preservadas da Amazônia, Manicoré tem registrado recordes de desmatamento desde 2015; no primeiro semestre de 2022, foram mais de 150 km2 de vegetação nativa cortados.

 

Dia a Dia Notícia

01 de setembro de 2022 às 12:56hs

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Economia com alma para a Amazônia (O Globo)

 

Economia com alma para a Amazônia

 

Dom Cláudio Hummes, Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB.


Os alertas de que o desmatamento na Amazônia Legal derrubou mais de 500 quilômetros quadrados de florestas, somente em abril de 2021, devem inquietar-nos ainda mais se desejarmos garantir vida com dignidade para todas as pessoas. No contexto da pandemia, o desmatamento está intimamente vinculado a outras violações de direitos humanos e da natureza, como a grilagem de terras, a mineração em territórios indígenas, a precariedade dos serviços de saúde e a criminalização dos defensores e defensoras de direitos.

Na encíclica “Laudato Si”, que está para completar seis anos de publicação, nosso querido Papa Francisco assinalou que todas as coisas estão interligadas, são interdependentes. Humanidade e natureza não podem ser assumidas como se uma não dependesse da outra. Por isso, a economia não pode se abster de incluir as questões ambientais nas suas definições e práticas, pois isso, lembra o Papa, aumentará ainda mais as situações históricas de injustiças, empobrecimento e violência. Os gritos ecoados como consequências do desmatamento na Amazônia são um apelo para toda a sociedade, mas especialmente para as diferentes esferas de governo, sobre a urgência em repensar os modelos econômicos injustos e insustentáveis.

Sensível a esta realidade, jovens, economistas, universidades, pastorais e a sociedade civil responderam a um outro chamado do Papa Francisco: “estabelecer um pacto para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã.” Essa é a economia de Francisco, um movimento que está refletindo e atuando com experiências concretas para promover a dignidade humana e o cuidado com a Casa Comum, e para que a economia não seja um emaranhado de estatísticas sem vida. Por isso, é necessário dar uma nova alma à economia. E qual pode ser o novo rosto da economia? Quais pactos podemos firmar em nossas comunidades, cidades, no Brasil e no mundo?

Esse pacto precisa respeitar as comunidades tradicionais, especialmente povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos da Amazônia. Na exortação “Querida Amazônia”, o Papa também indica que estes irmãos e irmãs não são pessoas que devem ser convencidas sobre nossos projetos, mas antes de tudo precisam ser escutados, porque são os principais interlocutores para promover políticas justas e democráticas. Escutar os povos e comunidades para dar uma nova alma à economia é um dever de justiça, porque são eles que conhecem suas realidades e, como sujeitos de direitos, imaginam e já estão construindo a sociedade do bem viver, ainda que ameaçados. Se não ouvirmos os povos tradicionais, a Amazônia continuará sendo um território destinado à exploração desenfreada a serviço da economia de poucos para poucos.

Além do direito à participação em qualquer projeto, especialmente aqueles relacionados à economia, comunidades tradicionais também são detentoras de conhecimentos abandonados pela nossa sociedade modernizada, e foram elas as responsáveis pela conservação da floresta e toda a sua biodiversidade. Por isso, nenhum projeto, mesmo aqueles erigidos sobre a ótica da qualidade de vida, devem ser realizados sem reconhecer o mundo de símbolos e visões potentes que esses povos construíram ao longo de suas histórias. A prepotência de nossas sociedades urbanas e modernas, com uma economia que explora recursos sem reconhecer os limites da Casa Comum, coloca em risco não apenas a continuidade da vida na Amazônia, mas de toda a humanidade.

No Brasil, a economia de Francisco é também chamada de economia de Francisco e Clara, porque reconhece a presença das mulheres na construção de novas economias. Santa Clara foi companheira de São Francisco de Assis na contemplação, no cuidado com os empobrecidos e empobrecidas e no amor a todos os seres da Casa Comum. Os novos pactos para “realmar” a economia e cuidar da Amazônia precisam fortalecer as experiências que nossas comunidades estão realizando junto com mulheres, jovens, associações, empreendimentos solidários.

Na Amazônia e em outros biomas, a economia de Francisco e Clara já é uma realidade porque as pessoas estão organizadas para produzir e comercializar a partir da economia solidária, da agroecologia ou experiências pilotos de transição energética. A Igreja Católica no Brasil, através de vários dos seus organismos, sempre acompanhou esses grupos e agora, inspirada pelo Papa Francisco e atenta às urgentes demandas sociais, quer contribuir ainda mais para transformar a realidade e promover justiça socioeconômica com distribuição justa de renda, sem jamais destruir a Amazônia e outros biomas.

Por isso, a Igreja continuará acompanhando e exigindo dos governos que adotem medidas de cuidado integral com a Amazônia e toda a Casa Comum, especialmente nesse momento histórico em que são discutidos diversos projetos de lei e outras políticas públicas para superar a crise econômica agravada pela pandemia do novo coronavírus. A economia não deve ser um emaranhado de números ou uma promessa de desenvolvimento a qualquer custo, mas antes de tudo um serviço para promover a justiça e superar as desigualdades sociais, sem jamais esquecer que para isso precisamos de salvaguardar o meio ambiente e toda a sua biodiversidade.

Que o exemplo de São Francisco de Assis e Santa Clara inspire-nos a ser cuidadores e cuidadoras da vida e promotores de uma nova economia.

 

O Globo Opinião

Dom Cláudio Hummes, em 03/06/2021 às 17:28hs

Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB

Sob a Inspiração do Papa

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Amazônia: Guerra (O Globo)

 

Amazônia

Simulação de Guerra sem Precedentes

 

Brasil testa lança foguetes em uma manobra no Amazona envolvendo mais de 3.500 militares. Foto: Reprodução de vídeo / Agência O Globo.


BRASÍLIA — O Exército brasileiro gastou R$ 6 milhões somente em combustível, horas de voo e transporte para simular uma guerra entre dois países na Amazônia, numa operação militar inédita, que ainda não havia sido feita no país. Os militares decidiram criar um campo de guerra em que um suposto país “Vermelho” invadiu um país “Azul”, sendo necessário expulsar os invasores.

A simulação ocorreu num momento de animosidade com a vizinha Venezuela, praticamente ao mesmo tempo em que o governo brasileiro decidiu retirar as credenciais dadas aos diplomatas do regime de Nicolás Maduro que atuam no Brasil. A operação envolveu 3,6 mil militares e se concentrou nas cidades de Manacapuru, Moura e Novo Airão, no Amazonas, num raio de 100 a 300 quilômetros de Manaus.


Mapa das manobras militares do Brasil na Amazônia. Foto: Editoria de Arte.


A “guerra” na região amazônica ocorreu entre 8 e 22 de setembro. No dia 18 daquele mês, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, fez uma visita a Roraima, região de fronteira com a Venezuela. O chefe da diplomacia de Donald Trump esteve em Boa Vista — a 840 quilômetros de Manacapuru — e foi ciceroneado pelo chanceler Ernesto Araújo. A visita foi duramente criticada, por ter ocorrido durante a campanha eleitoral em que Trump busca a reeleição, por ter se passado na região de fronteira e por ter emitido um sinal belicoso da relação de EUA e Brasil com a Venezuela.


Lançamento de mísseis

O valor gasto com a chamada Operação Amazônia, que incluiu o lançamento de mísseis com alcance de 80 quilômetros, foi obtido pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação. A lei também foi usada para obter a informação sobre o ineditismo da operação. Antes, o Ministério da Defesa se recusou a fornecer essas informações.

“Dentro da situação criada e com os meios adjudicados, foi a primeira vez que ocorreu este tipo de operação”, informou o Exército à reportagem. Os R$ 6 milhões gastos saíram do Comando de Operações Terrestres (Coter). A Força não informou os outros gastos com a operação, além de combustível, horas de voo e transporte de civis.

“Foram empregados diversos meios militares, tais como viaturas, aeronaves (aviões e helicópteros), balsas, embarcações regionais, ferry-boats, peças de artilharia, o sistema de lançamento de foguetes Astros da artilharia do Exército, canhões, metralhadoras, ‘obuseiro’ Oto Melara e morteiros 60, 81 e 120 mm, além de veículos e caminhões especiais”, afirmou o Exército.

Simulações de conflito e treinamento de militares já haviam sido feitos outras vezes, mas em escala menor, sem o uso de todos esses equipamentos e numa articulação entre Exército, Marinha e Aeronáutica. A reportagem pediu ao Ministério da Defesa e ao Exército, também via Lei de Acesso, informações sobre o tamanho das ações passadas. A Defesa não respondeu, e disse que caberia ao Exército responder. A Força informou que a Operação Amazônia, da forma como foi feita, é inédita.

O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e o comandante do Exército, Edson Leal Pujol, foram à região do “conflito” no dia 14 de setembro. Eles acompanharam, por exemplo, o disparo de mísseis.

O sistema Astros, com lançadores múltiplos de foguetes, é considerado um projeto estratégico para o Exército. A exemplo de outros projetos, terá mais previsão de recursos no Orçamento de 2021. A proposta de Orçamento enviada ao Congresso prevê R$ 141,9 milhões para esses mísseis em 2021. Neste ano, a previsão é de R$ 120,7 milhões.

Segundo informação do Comando Militar da Amazônia, 20 foguetes foram disparados pela artilharia do Exército no dia 15, na altura do quilômetro 61 da rodovia AM-010. O objetivo foi “neutralizar uma base do Exército oponente”. O Exército diz que trabalha na elaboração de lançadores de foguetes com alcance de 300 quilômetros.

Três dias após a incursão de Azevedo e Pujol na simulação de guerra na Amazônia, Pompeo, o secretário de Trump, visitou Boa Vista ao lado de Araújo. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), chamou a visita de “afronta” à “altivez de nossas políticas externa e de defesa”. O chanceler brasileiro reagiu e disse que Brasil e Estados Unidos “estão na vanguarda da solidariedade ao povo venezuelano”.

A guerra entre “azuis” e “vermelhos” foi causada pela invasão dos “vermelhos” em território “azul”, conforme a simulação feita pelo Exército. Os militares envolvidos atuaram na “libertação” de territórios como as cidades amazonenses de Manacapuru, Moura e Novo Airão. Segundo o Ministério da Defesa, houve ações também em Rondônia.

Não houve ações em Roraima, segundo a pasta. Mesmo assim, a operação contou com a participação de militares que atuam diretamente em regiões de fronteira, como os que estão na brigada de São Gabriel da Cachoeira (cidade do Amazonas na fronteira com Venezuela e Colômbia) e os da brigada de Boa Vista, capital de Roraima, estado que é a principal porta de entrada de refugiados venezuelanos no Brasil.

Participaram da operação as brigadas do Comando Militar da Amazônia, mais o grupo de artilharia de Rondonópolis (MT), o grupo de mísseis e foguetes de Formosa (GO), o comando de operações especiais de Goiânia, a brigada de artilharia antiaérea de Guarujá (SP) e a brigada de infantaria paraquedista do Rio.


Mudança de estratégia

Em agosto, O GLOBO mostrou a mudança da estratégia do governo de Jair Bolsonaro para a atuação das Forças Armadas, com a previsão inédita de uma “rivalidade entre Estados” na esfera regional e uma associação entre essa “rivalidade” e a necessidade de ampliação do orçamento para a Defesa, que chegaria a 2% do PIB nacional. A estratégia aparece em atualizações de documentos oficiais das Forças, as chamadas Política e Estratégia Nacional de Defesa, encaminhadas ao Congresso. Nos documentos, o governo Bolsonaro prevê pela primeira vez a ocorrência de “tensões e conflitos” em áreas vizinhas ao Brasil.

Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério da Defesa diz que a Operação Amazônia foi feita entre 4 e 23 de setembro. O Exército informou que a operação ocorreu entre 8 e 22 de setembro.

Segundo a pasta, “foi um exercício em campanha com tropa no terreno que simulou uma ação convencional no contexto de amplo espectro e em ambiente operacional de selva”. “As ações ocorreram sobre uma imensa área e tiveram como objetivo estratégico elevar a operacionalidade do Comando Militar da Amazônia. A operação consiste em importante preparação para a atividade-fim das Forças Armadas, de defesa da soberania nacional, principalmente em uma região que tem a prioridade do Brasil”, afirmou o ministério.

A reportagem enviou questionamentos ao Itamaraty e à Embaixada dos EUA sobre a visita de Pompeo no mesmo momento da simulação de guerra pelo Exército. Não houve retorno até a noite de terça-feira.


Leia também: Embora esperada, simulação de guerra na Amazônia foi usada ideologicamente, avaliam especialistas

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O Globo

Vinicius Sassine

Atualizado em 15 de outubro de 2020 às 12:35hs

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Caos Fundiário (DW)


Amazônia
O Caos Fundiário (DW)

É difícil saber a quem pertence cada parte dos mais de 5 milhões de quilômetros quadrados da região. Uma consequência de dois séculos de ocupação e exploração desordenadas, algo que se estende até hoje.

Vista aérea de ônibus em estrada margeada por florestas destruídas. Rodovia Transamazônica, uma tentativa de integrar a Amazônia

Uma fragilidade na gestão do território da Amazônia Legal, que se estende por 5,2 milhões de quilômetros quadrados, é saber quem é o dono de cada parte daquela terra. Apesar do avanço de tecnologias de georreferenciamento e gestão de informação, ainda não há no Brasil um sistema unificado com dados espaciais e cartorários sobre essas terras. Além disso, parte das áreas públicas na região ainda não teve sua finalidade definida, e outra parte sequer foi registrada.
O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), órgão federal responsável pelo ordenamento fundiário nacional, estima que na Amazônia Legal existam 450 mil quilômetros quadrados de terras públicas federais não destinadas, área equivalente a 1,3 vez o território da Alemanha. Essas glebas podem vir a ter funções variadas, como terras indígenas, unidades de conservação, quilombos, áreas militares, assentamentos de reforma agrária ou terrenos particulares.
Além disso, normas e fiscalização ineficazes sobre o registro cartorário de terras favoreceram a multiplicação de títulos fraudulentos. Em 2009, uma análise de cerca de 10 mil matrículas de imóveis suspeitas do Pará concluiu que eles, somados, representavam uma área de 4,9 milhões de quilômetros quadrados – ou quatro vezes o tamanho total do estado, segundo Jerônimo Treccani, professor de direito da Universidade Federal do Pará que participou do levantamento.

Raízes históricas
O caos fundiário na região da Amazônia se explica parcialmente pela história da ocupação de terras no Brasil. Entre a Independência, em 1822, e a Lei de Terras de 1850, houve uma política de acesso livre à terra – os interessados a ocupavam e, depois, pediam a regularização ao governo do Império. Isso beneficiou fazendeiros ricos, que usavam mão de obra escrava para estabelecer o domínio territorial.
Após a proclamação da República, a responsabilidade de organizar os registros fundiários passou para os governos estaduais, que criaram suas próprias normas e órgãos para regular o tema. A partir de 1970, com a criação do Incra, o governo federal voltou a ser responsável pela gestão fundiária de parte do território, e normas e critérios de medição diferentes passaram a coexistir, o que perdura até hoje.
Outro problema foi o modelo jurídico de ocupação da Amazônia adotado pelo regime militar, que estimulou a migração para a região com o objetivo de proteger esse território de supostas ameaças estrangeiras e desenvolver a economia do país.

Fragilidade jurídica na ditadura
Sob os militares, terras de tamanhos variados na Amazônia foram concedidas a particulares, mas eles não recebiam o título de propriedade. No lugar, o governo dava a esses posseiros uma licença de ocupação, vinculada ao cumprimento de certas condições por determinado período, como produção agrícola ou desmatamento de percentual da área. Nesse regime, o título de propriedade seria concedido apenas após alguns anos e se as cláusulas tivessem sido cumpridas.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59

Contudo, o poder público não manteve a estrutura administrativa necessária para fiscalizar essas condições e conceder os títulos posteriormente, e os ocupantes das terras passaram a realizar transações informais para transferir o controle dessas áreas. Segundo Treccani, cerca de 100 mil licenças de ocupação foram concedidas na Amazônia durante a ditadura, mas a conversão delas em propriedade efetiva "foi muito baixa". Esses processos se acumularam, e muitos ainda não tiveram sua situação resolvida.
A principal estratégia de ocupação da Amazônia foi a abertura de estradas no modelo "espinha de peixe": às margens das rodovias, em 100 quilômetros para ambos os lados, eram concedidos a particulares, com ramais aberto mata dentro. Segundo o projeto do regime militar, os lotes à beira da rodovia seriam menores, de 100 hectares, e destinados à agricultura familiar. Atrás dessa primeira fileira, haveria lotes de 500 hectares. Por fim, no fundo dessas faixas, ficariam os lotes maiores, de 3 mil hectares.
Segundo Treccani, esse modelo durou pouco. Com os problemas enfrentados pela principal rodovia aberta na época, a Transamazônica, que ficava fechada durante metade do ano por causa de condições climáticas, e a redução da estrutura do Incra a partir do final da década de 1970, muitos camponeses decidiram deixar seus lotes e o repassaram a outros posseiros. "Hoje você tem as grandes fazendas na beira da estrada, e os colonos, lá no fundo", diz.
A falta de segurança jurídica e de registros precisos também acabou por estimular conflitos de terra, com grandes grileiros tentando se apropriar à força de terras ocupadas por camponeses ou populações tradicionais que não detêm o título de propriedade sobre as áreas.

Tentativa de regularização
Uma iniciativa para reduzir o problema fundiário na Amazônia se deu a partir de 2009, com o programa Terra Legal, que teve apoio da Alemanha, através do Ministério para Cooperação Econômica e Desenvolvimento.

Gráfico mostra desmatamento em estados da Amazônia

O programa tinha três objetivos principais: definir a destinação de áreas públicas federais na Amazônia, emitir títulos de propriedade para regularizar a situação de pequenos posseiros na região e fazer um mutirão de georreferenciamento das glebas.
Em dezembro de 2018, o programa havia emitido cerca de 41 mil documentos fundiários, correspondentes a mais de 150 mil quilômetros quadrados de terras públicas. Desse montante, foram concedidos 24 mil títulos de propriedade para produtores rurais, em sua maioria agricultores familiares, em uma área de cerca de 17 mil quilômetros quadrados.
No governo Bolsonaro, o Terra Legal foi extinto e o Incra assumiu a regularização fundiária na região. O órgão afirma que há hoje cerca de 105 mil processos de regularização fundiária na Amazônia Legal com o georreferenciamento pronto que aguardam análise.

Lacunas nos registros
O sistema de registro fundiário no país começou a melhorar apenas a partir de 2001, quando uma nova lei exigiu que os proprietários registrassem suas terras em cartórios da mesma comarca onde a gleba estava e com o georreferenciamento dos novos registros.
Porém, ainda não há um sistema unificado que reúna a delimitação geográfica dos terrenos e o status jurídico da terra registrado em cartório. Além disso, os governos federal e estaduais não têm clareza de quais áreas estão integradas ao patrimônio público.
No Pará, por exemplo, apenas 20 das 623 áreas incorporadas ao patrimônio do estado nos últimos 30 anos estão no Sigef (Sistema de Gestão Fundiária), um sistema federal que registra as informações georreferenciadas de limites de imóveis rurais, segundo Treccani. Parte das áreas públicas federais também ainda não foi registrada em cartório.
Essa ausência de registro de áreas públicas favorece que particulares tentem declarar como suas partes desses terrenos. Na nova sistemática de regularização fundiária federal, estabelecida em dezembro de 2019, áreas públicas poderão ser transferidas a particulares sem vistoria no local, somente a partir da análise dos documentos apresentados pelo interessado e cruzamento de dados com outros sistemas do governo.

Evolução populacional na Amazônia

"Se eu posso declarar onde eu estou, mas o governo não tem conhecimento pleno daquilo que foi incorporado ao patrimônio público, é provável e quase seguro que o pretendente poderá estar localizado em terras nas quais o Incra ou os governos estaduais não tenham informações seguras do ponto de vista documental e espacial, e é muito possível que haja titulação [aos particulares] de áreas que já foram tituladas [como pertencentes ao poder público] no passado", diz Treccani.
Em nota à DW Brasil, o Incra afirma que está desenvolvendo um novo sistema informatizado para conduzir os pedidos de regularização fundiária que incluiu o cruzamento com outros sistemas do governo federal. O órgão também diz que uma nova versão do Sigef, mais moderna e integrada a outras bases de dados, está em fase de testes e deve entrar em funcionamento até o final de fevereiro [2020].
Em maio de 2016, a então presidente Dilma Rousseff editou um decreto determinando a criação de um novo sistema, o Sinter (Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais), que reuniria todas as informações dos serviços de registros públicos de imóveis, incluindo dados jurídicos registrados em cartórios, informações fiscais apuradas pela Receita Federal e limites georreferenciados de sistemas municipais, estaduais e federais, mas sua implementação ainda não foi concluída.

Mudanças recentes
No início, o Terra Legal tinha o intuito de priorizar a concessão de títulos a pequenos proprietários que estavam em terras públicas antes de 2004. O programa dispensou a realização de vistoria em áreas de até quatro módulos fiscais (cerca de 320 hectares em alguns municípios na Amazônia), concedeu o direito de pedir o título a quem estivesse nessas áreas antes de 2004 e definiu o limite de 1.500 hectares como tamanho máximo do terreno a ser regularizado.
Ao longo do tempo, mudanças nas regras ampliaram o limite de área que poderia ser regularizada e empurraram a data limite da ocupação para mais adiante. Sob o governo Michel Temer, o programa foi estendido a todo o país, o tamanho máximo da área foi ampliado para 2.500 hectares e o prazo de ocupação foi adiado para julho de 2008.
Bolsonaro estabeleceu novas regras na medida provisória 910/19, editada em dezembro. A norma já está em vigor, mas para virar lei deve ser votada no prazo de 120 dias pelo Congresso, que pode alterar ou derrubar o texto. O dispositivo dispensa a vistoria de pré-regularização para áreas de até 15 módulos fiscais (1.400 hectares em alguns municípios na Amazônia) e estende o prazo de ocupação para até dezembro de 2018 se o solicitante pagar o valor máximo pela terra.
Em setembro de 2019, também foi criado o Comitê Gestor de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, que tem recursos provenientes do Fundo da Petrobras para atuar na titulação e regularização fundiária. Segundo o Incra, porém, a mudança na direção do órgão em outubro de 2019 atrasou o início dos trabalhos do comitê, que ainda não tomou nenhuma medida concreta.

Bruno Lupion, 22 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Avanço Ilegal da Soja (DW)


Amazônia
O Avanço Ilegal da Soja (DW)

Maior produtor do grão do país, Mato Grosso vive alta de desmatamento e de ilegalidade. Na safra 2018/2019, 64% das novas áreas plantadas estavam no bioma amazônico.

Plantação de soja no Mato Grosso. A soja ocupa 10 milhões de hectares do Mato Grosso.

Nos campos de soja de Mato Grosso, a temporada de colheita da planta está no fim. Parte da safra, com previsão de render 34 milhões de toneladas, já começa a embarcar rumo ao principal consumidor: China. Em Sorriso, norte do estado, o grão enche os silos, as construções mais altas da cidade. De lá até Sinop pela BR 163, lavouras contínuas de soja se estendem por quilômetros, ocupando até terrenos na área urbana – ao lado de restaurantes, casas e centros de compras.
No principal estado produtor do país, o plantio de soja ocupa 10 milhões de hectares, área maior que Portugal. "O Mato Grosso se desponta devido à estabilidade do clima, tem as estações de chuva e de seca", afirma Tiago Stefanello, presidente do Sindicato Rural de Sorriso e representante da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja).
Em 2019, Mato Grosso também se destacou em outro ranking. Depois do Pará, o estado é o segundo maior responsável pelo desmatamento da Floresta Amazônica. Medições feitas pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) no programa Prodes, que verificou o desmatamento anual de julho de 2018 a agosto de 2019, mostram um aumento de 25% nas taxas de desmatamento em relação ao período anterior.

A produção de soja na Amazônia. Assistir ao vídeo 09:03.

A ilegalidade predomina: em 85% das áreas, o corte foi clandestino. "Mais da metade do desmatamento (56%) aconteceu em grandes propriedades rurais. Foram desmatamentos grandes, facilmente detectados pelo sistema de monitoramento via satélite", comenta Vinícius Silgueiro, coordenador de Geotecnologias do Instituto Centro de Vida (ICV).
Questionado sobre uma possível relação entre desmatamento e expansão da soja, Stefanello diz não acreditar nas taxas divulgadas pelo Inpe. "Tem um monte de parque, de terra indígena que queima e colocam tudo na conta do produtor", responde à DW Brasil.
Onde o corte da floresta foi autorizado, não há dúvidas sobre a intenção de quem desmatou. "Os municípios que lideram o desmatamento legal estão na zona de expansão da soja. É quem tem dinheiro para viabilizar as emissões de autorizações e licenciamento de forma mais rápida", complementa Silgueiro.

Relações indiretas
Pesquisadores rastreiam há décadas a ligação entre o sumiço da Floresta Amazônica e a expansão da soja e apontam que, atualmente, a conversão direta da mata nativa em área de cultivo é menos comum que em períodos anteriores à Moratória da Soja. Declarada em 2006, os signatários do acordo firmaram o compromisso de não comprar soja de áreas desmatadas.
"A influência da soja nessa dinâmica pode ser entendida como indireta, porque seu avanço sobre as pastagens pode estimular o avanço da pastagem para as florestas", comenta Nathália Nascimento, que acaba de publicar um artigo sobre a pesquisa desenvolvida no Inpe.

Infográfico da Produção Global de Soja.

"Alguns estudos recentes apontam que, com a soja ocupando áreas de pastagens, a pecuária busca novos espaços e leva a mais desmatamento", pontua Nascimento. "Mas isso também depende do contexto da região", ressalta.
Stefanello afirma que entre os associados produtores de soja de Sorriso "muito raramente se fala em abertura ilegal". "O que a gente nota e vê, é que a soja está indo para as áreas que eram de pecuária. As pecuárias extensivas que, nos anos anteriores faziam as queimadas, jogavam pasto para o boi, hoje a viabilidade da agricultura é melhor que a pecuária", responde.
De uma forma ou de outra, a lavoura segue rumo à floresta. Na safra 2018/2019, 64% das novas áreas plantadas no Mato Grosso foram no bioma amazônico, somando 144 mil hectares, segundo mapeamento feito pela Universidade Estadual de Mato Grosso, disponível para consulta pública.

Avanço pelo portal
Nomeada a capital do agronegócio brasileiro por decreto federal, Sorriso está no chamado portal da Amazônia. Nesta área de transição entre cerrado e bioma amazônico, o projeto de ocupação populacional iniciado no governo militar atraiu majoritariamente agricultores do sul do país.

Vista aérea de campos de plantação. Plantação de soja na Amazônia: pesquisadores rastreiam há décadas a ligação entre o sumiço da floresta e a expansão da soja.

"Esses colonos foram assentados nessa região, e não teve nenhuma política de assentamento, de treinamento dessas pessoas. O que eles tinham de riqueza era a floresta", pontua Domingos de Jesus Rodrigues, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). "Então tiraram a madeira, depois veio a pecuária e, mais tarde, a soja."
A família de Stefanello chegou nessa época. "As famílias eram obrigadas pelo governo a abrir ou perdiam a terra. Hoje a gente é obrigado a preservar", argumenta.
Foi na década de 1990 que a soja iniciou sua soberania. O trabalho de pesquisa e adaptação de espécies feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) foi fundamental para que o estado se tornasse o maior produtor nacional na safra 2000/2001.

Pressão sobre a agroecologia
Na contramão deste cenário, a poucos quilômetros de Sinop – que também se considera capital do agronegócio e está dentro da Amazônia – os moradores do assentamento 12 de outubro tentam levar a agroecologia adiante.
"Como a gente está nesse local, o portal da Amazônia, a gente tinha mais esperança de produzir de forma saudável", afirma Marciano Manoel da Silva, assentado ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Produtor de hortaliças e vegetais sem uso de agrotóxicos, Silva diz que o assentamento sofre constantes ameaças. "Nós sentimos o cheiro do veneno que é passado ao redor, nas fazendas, de avião. O assentamento a todo momento está sendo seduzido pelo agronegócio, com falsas promessas de pessoas para arrendar sítio e plantar soja", detalha.

Futuro de bom senso
Do campus de Sinop da UFMT, a bióloga Ana Lúcia Tourinho acompanha o mapa do desmatamento com preocupação. "Nós estamos vendo a fragmentação da Amazônia, aumento do desmatamento e do fogo. A perspectiva não é positiva, mas de perdas drásticas", analisa.
Tourinho ressalta que essas perdas acabam reduzindo os próprios serviços prestados pela floresta à economia do país. "A mata nos presta serviços como o de polinização, onde a vida segue acontecendo livremente, sem que a gente precise pagar por isso", detalha.
Além disso, frisa a bióloga, é preciso considerar a íntima ligação entre floresta e produção de água. "As árvores tiram a água do fundo, de graça, e devolvem para a atmosfera", explica, fazendo menção à origem de boa parte das chuvas que caem na região.
O pesquisador da UFMT Domingos de Jesus Rodrigues é categórico: "Se a floresta desaparecer, vai ser uma perda muito grande, principalmente para a população humana. Porque nós teremos desertificação, redução de chuvas, aumento de calor, e isso contribuirá negativamente para a sobrevivência dessas populações", resume as principais conclusões de estudos científicos feitos nas últimas duas décadas.
O bom senso, defende, é que dois lados dialoguem. "Porque precisamos de alimento, mas também precisamos da preservação ambiental", afirma. "A preservação da floresta garante a sustentabilidade do agronegócio", resume.

Nádia Pontes (de Sinop e Sorriso), 21 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.