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sábado, 31 de outubro de 2020

Violência: Miscigenação (Folha de São Paulo)

  

O Passado Violento do Brasil

Africanos, Indígenas, Europeus

  

Ao olharmos com atenção o DNA do brasileiro, podemos encontrar indícios da chegada dos colonizadores e de povos imigrantes, da vinda forçada de africanos para o Novo Mundo, dos encontros com povos indígenas isolados e também evidências da violência que fez parte da formação do país.

Esse conhecimento tem sido acumulado ao longo dos últimos anos com base no trabalho de grandes nomes da genética nacional como Francisco Salzano (1928-2018) e Sérgio Pena, mas recentemente ganhou projeção após a divulgação dos resultados do projeto DNA do Brasil, publicados em primeira mão pela Folha.

Entre os mais de mil genomas sequenciados e analisados até o momento, foi detectada uma contribuição europeia em 75% dos cromossomos Y (ou seja, de herança masculina), enquanto no DNA das mitocôndrias, organelas celulares herdadas somente da mãe, a contribuição africana é de 36% e a indígena, 34%.



Ou seja, para fechar essa conta, os cruzamentos só podem ter sido assimétricos. Eles se deram com muitos homens de origem europeia e muitas mulheres de origem indígena e africana.

São dois os motivos principais: a baixíssima presença de mulheres de origem europeia no processo de ocupação e exploração do Brasil colônia, especialmente nos primeiros 300 anos, e a violência que permeou as relações entre povos de diferentes origens desde o descobrimento do país.

Como uma população inicialmente apenas 5% europeia acaba gerando 75% da herança masculina?

“Nenhuma explicação biológica de fenômenos que se dão em outras espécies é plausível para descrever isso”, diz Tabita Hünemeier, professora da USP e integrante do projeto DNA do Brasil. “É estranho que ainda hoje haja pessoas que não saibam que o Brasil teve um passado violento. Como morreu 90% da população nativa? Como vieram para cá milhões de escravos?”

Hünemeier, que foi orientada por Salzano no doutorado, é estudiosa do genoma de populações indígenas.

Segundo ela, um dos resultados mais interessantes de pesquisa recentes é que, apesar da extinção de muitos desses grupos, cada vez mais são identificados esses traços no DNA da população que hoje habita o Brasil.

A história da família da técnica em contabilidade e costureira Carmen Inazer Bento, 86, ilustra a diversidade da formação do povo brasileiro e de como o passado pode permanecer marcado em nosso DNA, apesar das aparências.

Sua avó materna, índia, foi pega ainda pequena para viver na casa de uma família branca, onde trabalhava como criada. Deram-lhe o nome de Lídia.

Eduardo, um guarda-livros (contador) português que chegara ao país em 1901, obteve permissão da família para se casar com ela. Juntos tiveram Carolina, mãe de Carmen.

Já o pai de Carmen era Joaquim, filho de negros de Minas Gerais que viveram no fim da escravidão no Brasil. “Meu pai não gostava de falar no assunto, mas meu avô morreu bêbado, debaixo de um pé de café”, conta Carmen, emocionada.


A família da técnica em contabilidade e costureira Carmen Inazer Bento, 86, que ilustra a diversidade da formação do povo brasileiro e de como o passado pode permanecer marcado em nosso DNA - Arquivo pessoal


O encontro entre Carolina e Joaquim, carroceiro que vivia viajando, aconteceu no interior de São Paulo. O casal viveu entre Lins e Serra Negra e, além de Carmen, teve outros dois filhos, Wilson e Maria Inês.

Carmen se casou com Wilson Bento, negro, e teve quatro filhos: Cláudia, Cleide, Ariovaldo e Alexandre.

O curioso é que o irmão de Carmen se casou com uma mulher branca, e seus filhos são, ao menos fenotipicamente (ou seja, na aparência), brancos.

Isso faz que na mesma geração de uma família existam pessoas com diversos tons de pele, apesar de dividirem uma boa parte do DNA ancestral, negro e europeu, e até mesmo indígena, herdado de Lídia.



É muito provável que muitos de nós carreguemos, sem saber, um punhado desse genoma indígena, e é isso que fascina Hünemeier.

“Uma coisa é estudar a formação de São Paulo, outra é a ocupação da Amazônia. O processo histórico é diferente em cada região. Ao estudar o DNA temos dados reais, já que muitas vezes não há registros históricos, e é possível entender quem são esses grupos formadores”, conta a cientista. “Hoje a diversidade da população indígena é bem menor do que a de séculos atrás, mas ela ainda pode ser encontrada no genoma de quem vive nessas regiões.”

Os bancos de populações indígenas atuais contam com exemplares de 18 linhagens distintas.

Analisando apenas os primeiros genomas do novo projeto já foi possível encontrar 38 misturados ao DNA da população em geral, conta a pesquisadora.

A meta agora é, com o emprego de ferramentas computacionais capazes de analisar uma montoeira de dados de DNA antigo e moderno, destrinchar as populações e entender quem contribuiu para a formação do povo brasileiro e até mesmo quando esses encontros aconteceram.

Para Lygia Pereira, professora da USP que trabalha com Hünemeier no DNA do Brasil, além de recuperar informações sobre povos extintos por meio do genoma (apesar da pouca quantidade de cromossomo Y), vai ser interessante ver se tem alguma fração dessa herança indígena que aparece com maior frequência do que a esperada nos genomas de hoje.

Seria o que os cientistas chamam de seleção positiva: um gene pode gerar tamanha vantagem para o indivíduo que é mais provável que ele deixe descendentes, perpetuando (fixando) aquele gene na população.

“É uma mistura de história, antropologia, mas também há aí muita biologia e saúde humana. A quantidade de variantes que encontramos só nesses primeiros mil genomas estudados é incrível”, diz Pereira. “Tudo que previmos já foi confirmado nessa pequena análise, mas ainda temos muito o que aprender”.

 

Folha de São Paulo

Gabriel Alves

31 de outubro de 2020 às 18h00