quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Macuxi: Ritual (Folha de São Paulo)

PIMENTA, BÊNÇÃOS E LUTA

O ritual para celebrar tradições indígenas e desejar sorte à nova presidente da Funai

 

Ritual da pimenta na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Foto: Pedro Alencar/UFRR

 

São sete e meia da manhã na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no município de Normandia, a 268 km de Boa Vista, capital de Roraima. Mais de 50 indígenas se organizam em roda no Centro Regional Lago Caracaranã. Uma pajé defuma o maruwai, uma pedra encontrada na raiz de uma árvore. O ritual é uma forma de trazer proteção e purificação. Tudo acontece no malocão, como é chamada a grande construção de estacas de madeira coberta por palha. No centro do malocão, um grupo faz fila para começar o segundo ritual daquela manhã: a pajé Mariana Macuxi esfrega pimenta malagueta nos olhos de homens, mulheres, indígenas e não indígenas. A pimenta malagueta foi moída previamente e colocada em um recipiente abençoado pela pajé. Com uma vareta, ela coloca o produto nos olhos das pessoas. Assim que a pimenta entra no olho, o choro vem, e os indígenas abaixam a cabeça em oração. A pimenta é, para os indígenas, uma forma de obter proteção contra doenças. 

Os  povos indígenas da Raposa Serra do Sol estão ali para celebrar mais de meio século de existência do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Na verdade, 52 ao todo. A comemoração dos 50 anos foi adiada pela pandemia, e a deste ano foi ainda maior por uma novidade: pela primeira vez uma indígena foi indicada ao comando da Funai. Joenia Wapichana, indígena da etnia Wapichana, participou dos rituais de abertura e do primeiro dia de celebração, em 16 de janeiro. Diante dos pajés, falou da  importância de celebrar o aniversário do CIR e disse que ainda há muito o que conquistar. 

“Acredito que ainda tem muitos desafios e muitas demandas. A criação do Ministério dos Povos Indígenas  é justamente a concretização do que se pensou há 50 anos atrás sobre protagonismo dos povos indígenas, exercício dos direitos básicos. Pra isso necessariamente há muito tempo deveria ter esse ministério”, afirmou a presidente da Funai.

  

Joenia Wapichana, nova presidente da Funai – Foto: Elane Oliveira

 

Roraima é o estado mais indígena do Brasil. Tem 56 mil autodeclarados indígenas, 8,5% da população total. O Conselho foi criado em 1971, depois da chamada primeira Assembleia dos Tuxauas, realizada em 4 de janeiro daquele ano na comunidade do Surumu, município de Pacaraima. Foi quando várias lideranças indígenas de Roraima se uniram para reivindicar a demarcação das terras e autonomia para as comunidades diante de violência, exploração e invasão de seus territórios. Hoje o CIR reúne 10 etnias (Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi) que se dividem em 465 comunidades em todo o estado. No Conselho os líderes deliberam sobre as questões das comunidades, além de apontar demandas prioritárias que precisam ser resolvidas. A luta dos povos indígenas de Roraima foi fundamental para a demarcação da Raposa Serra do Sol, em 2009.

O vice-coordenador geral do CIR, Enock Taurepang,  se emocionou ao falar sobre as conquistas da organização durante esses anos de luta. “O que estamos vivendo é um momento de alegria, com Joenia assumindo a Funai, Marizete [de Souza] na Funai regional… Mas, parentes, nós temos que tomar muito cuidado com as conquistas! Porque, muitas das vezes, a nova geração que está vindo pode achar que tudo é facilidade e tudo vem de mão beijada! Então vamos refletir... e vamos criar forças para que na facilidade a gente se torne ainda mais forte! A gente não quer um plano do governo: a gente quer o plano do movimento indígena!”.

Este ano, a celebração pelo aniversário do CIR teve o lema “União, luta, resistência e conquistas”. Mais de dois mil indígenas participaram do evento. As comemorações  terminaram nesta quinta-feira.


Folha de São Paulo

Elane Oliveira

19 de janeiro de 2023, às 17h25

sábado, 7 de janeiro de 2023

Fascismo: O que é ser fascista? (BBC)


Fascismo

Nos últimos anos, “fascista” se tornou um dos adjetivos mais populares e talvez menos compreendidos do debate político brasileiro. Usado na maioria das vezes para desqualificar (ou xingar) adversários políticos, a utilização atual do termo guarda pouca ou nenhuma referência com a ideologia criada na Itália do início do século XX por Benito Mussolini e que inspiraria outros extremismos - como o nazismo - e serviria de catalisador para o mais sangrento conflito de nossa história, a Segunda Guerra Mundial.

Mas o que de fato é o fascismo e quem são (ou eram) fascistas? Neste vídeo, nossa repórter Nathalia Passarinho primeiro explica as origens desta ideologia e se ela se enquadra à esquerda ou à direita do espectro político. Depois, porque alguns pesquisadores identificam elementos do fascismo em movimentos atuais de extrema direita – e porque alguns consideram que a ideologia ficou no passado. E no fim, conta como o uso desses termos se transformou num insulto tão usado na briga política do Brasil e de outros países.

O que é ser fascista?

Nos últimos cinco anos, a palavra “fascista” foi usada mais de 400 vezes em discursos de deputados brasileiros na Câmara. “Eu fui chamada de fascista indiretamente por uma parlamentar...” (Carla Zambelli). “Todos nós da bancada que defende a democracia e que se opõe a um governo antidemocrático e fascista...” (André Figueiredo).

Na forma como ele é usado hoje para xingar adversários políticos, tem pouco ou às vezes nada a ver com a ideologia criada na Itália do início do século XX por Benito Mussolini. Essa ideologia inspirou outros extremismos - como o nazismo - e foi o catalisador para o mais sangrento conflito na história, a Segunda Guerra Mundial. Aliás, o tema voltou aos holofotes na Itália com a chegada ao poder da primeira-ministra Giorgia Meloni, cujo partido tem raízes no fascismo. Mas como fascista virou um insulto tão comum? Precisamos voltar no tempo. 


Benito Mussolini. Fonte: BBC 


O cenário é a Europa logo depois da Primeira Guerra Mundial. O conflito sangrento deixou cerca de 20 milhões de mortos, 20 milhões de feridos e uma Europa destruída. Também sacudiu as instituições políticas da região. Na Rússia os bolcheviques implantavam a primeira experiência comunista com a revolução de 1917. Ao mesmo tempo, na Itália, Benito Mussolini, um ex-socialista, criava o movimento que ficaria conhecido como fascismo. O objetivo principal era combater o socialismo. O nome se baseava na palavra de origem latina fasces. Uma espécie de machado com gravetos amarrados usado na Roma antiga como símbolo de autoridade e unidade do Estado.

 

Ilustração do feixe de madeira que deu origem ao nome fascismo. Fonte: BBC

 

Mussolini e seus aliados eram conhecidos como os “camisas-negras”. Passaram a atuar como um partido na política italiana, mesmo que suas propostas não fossem muito claras e que, por vezes, não passassem de atos de violência. Para se ter uma ideia, Mussolini foi questionado certa vez pelo jornal italiano Il Mondo sobre quais seriam suas principais propostas políticas. Em resposta, o líder fascista disse: “Nosso programa é quebrar os ossos dos democratas do Il Mondo, e quanto antes, melhor”.

Em 1921, com poder crescente, o Partido Fascista foi convidado a integrar a coalizão do governo italiano. No ano seguinte, num momento de caos político na Itália, os camisas-negras marcharam por Roma. Mussolini se apresentou como o único homem capaz de restaurar a ordem. Foi assim que ele chegou ao poder, com apoio de grandes empresários e do Vaticano. Aos poucos desmontou todas as instituições democráticas. Em 1925, virou ditador e assumiu o controle de todos os poderes do Estado. O regime parlamentar e democrático italiano daria lugar a um Estado totalitário, sem liberdades individuais ou políticas.

Depois do início do movimento fascista italiano, seria a vez do líder nazifascista Adolf Hitler chegar ao poder na Alemanha em 1933. Hitler propunha remédios extremistas para os problemas do pós-guerra e culpava abertamente comunistas, judeus, ciganos e minorias religiosas por essas mazelas. Em 1920, ele fundou o movimento nazista com bandeiras nacionalistas, antissemitas, anticomunistas e anticapitalistas.

Em 1932, com a Alemanha em frangalhos política e economicamente, os nazistas viraram o maior partido do Parlamento. No ano seguinte, Hitler virou chanceler da coalizão de governo e, como Mussolini, desmontou as instituições democráticas. Virou um ditador. Em 1939, os fascistas italianos e os nazistas alemães assinaram um pacto militar, e a Alemanha invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. A ascensão de Mussolini e Hitler fez com que analistas no mundo todo passassem a tentar entender a ideologia responsável pelo genocídio de milhões de pessoas e por uma guerra que abalaria as estruturas do mundo todo.

 

Mussolini e Hitler. Fonte: BBC

 

Ao longo de décadas, estudiosos conseguiram identificar alguns ingredientes típicos do caldeirão fascista. Vou listar alguns: um líder forte, um contexto de crise socioeconômica, algum apoio das elites capitalistas, o militarismo, o racismo, o pragmatismo, ou seja, adotar e abandonar ideias a depender das circunstâncias, o Anti-intelectualismo, o controle da sociedade, as paixões mobilizadoras, a propaganda, a mentira, o medo generalizado, a violência, a religião, o anticomunismo e o nacionalismo. Há dezenas de milhares de livros e artigos em torno do tema.

 

Fascismo e Nazismo. Fonte: BBC

 

Mas, nas palavras do historiador americano Robert Paxton, “no final das contas, nenhuma interpretação do fascismo parece ter conseguido satisfazer a todos de forma conclusiva”. É que o fascismo tem muita coisa em comum com outras formas de poder totalitárias, ditatoriais, populistas, autoritárias e tirânicas. Para Robert Paxton, o fascismo vem da preocupação obsessiva de um determinado grupo social com a decadência e a humilhação. Disso surge um partido de base popular formado por militantes nacionalistas, que recebe algum tipo de cooperação, mesmo que ambígua, das elites tradicionais. O avanço do fascismo se dá com a rejeição às liberdades democráticas; a limpeza étnica, uma expansão internacional violenta; e desrespeito às leis e à ética.

No mundo acadêmico e político - inclusive na Itália e na Alemanha -, há praticamente um consenso de que o fascismo e o nazismo são de extrema direita. Ou seja, estão no lado completamente oposto do comunismo nessa espécie de escala ideológica. O próprio Museu do Holocausto em Israel, fundado em homenagem aos mais de 6 milhões de judeus mortos pelo regime liderado por Hitler, classifica o nazismo como de direita. O museu avalia que o clima de frustração após a Primeira Guerra Mundial e a percepção de ameaça do comunismo, “criou solo fértil para o crescimento de grupos radicais de direita na Alemanha, gerando entidades como o Partido Nazista”.

 

Mais de 6 milhões de judeus foram mortos no Holocausto pelos nazistas. Fonte: BBC

 

Para Kevin Passmore, autor de Fascismo: Uma Breve Introdução, o fascismo é um movimento de extrema direita justamente porque se opõe com hostilidade extrema ao socialismo e ao feminismo. O fascismo alega que esses movimentos priorizam “classes ou gêneros em vez da nação”. Essa oposição aproxima os fascistas a setores conservadores no campo da direita, que são contrários a mudanças econômicas, sociais, políticas, morais ou culturais. Mas os fascistas estão dispostos a ir bem além e atropelar os interesses conservadores – inclusive família, propriedade e religião – se isso for necessário para garantir o que enxergam como os interesses da nação.

Por outro lado, um grupo bem pequeno de especialistas elenca semelhanças entre o fascismo e o comunismo. E parte desses especialistas (e alguns políticos) se baseia nisso para alegar que o fascismo é de esquerda. O argumento é que tanto o comunismo quanto o fascismo contestam o capitalismo liberal e são totalitários, ou seja, controlam todos os aspectos da vida das pessoas.

O “socialista” no nome do partido liderado por Hitler, Partido Nacional-Socialista, é frequentemente citado nos debates de internet que falam no nazismo como um movimento de esquerda. O próprio Hitler comentou o tema em uma entrevista a George Sylvester Viereck, em 1923. Hitler explicou por que se declarava um “Nacional Socialista” uma vez que o programa de seu partido era a antítese do que era comumente associado ao socialismo. Ele respondeu que queria tomar a expressão “socialismo” dos socialistas.

Estudiosos concordam que associar Hitler ao socialismo não faz sentido. O linguista brasileiro Izidoro Blikstein, especialista na análise do discurso nazista e totalitário, explica que a base do nazismo está no termo “nacional”, não no “socialista”. Ou seja, o mais importante era a defesa do que eles enxergavam como “próprio dos alemães”. É a chamada teoria do arianismo. “Dizer apenas que Hitler era um político de direita é apequenar o nazismo. Foi mais do que direita ou esquerda. Foi uma doutrina arquitetada para defender uma raça, embora esse conceito seja discutível e pouco científico”, avalia Bilkstein.

Já a historiadora Denise Rollemberg diz que é bastante complicado classificar o nazifascismo no espectro político atual. Ela explica:

 

“O nazismo nasce no meio de uma crise de referências muito grande após a Primeira Guerra. Os valores muitas vezes vão se embaralhar, e esses conceitos de direita e esquerda atuais não resolvem bem o problema. (...) Eles rejeitavam o que era a direita tradicional da época e também a esquerda que estava se estabelecendo. Eles procuravam se mostrar como um terceiro caminho.”

 

Isso nos leva a outro grande debate: dá para chamar de fascista pessoas ou movimentos extremos dos dias de hoje? Ou será que o termo só serve para se referir àquele contexto do início do século XX? É algo em discussão no próprio berço do fascismo.

A Itália elegeu em 2022 como premiê Giorgia Meloni, a primeira líder de extrema direita ali desde a queda de Mussolini. Meloni rejeita veementemente essa conexão e diz que a ideologia fascista ficou para a história. Mas ela pertence ao Irmãos da Itália, partido que tem raízes no movimento fascista e tem como símbolo as chamas tricolores, associadas a Mussolini.

O cientista político Gianlucca Passarelli explicou essa aparente ambiguidade à BBC: “O partido dela não é fascista. Fascista significa chegar ao poder e destruir o sistema. Ela não fará isso, nem poderia. Mas há alas do partido ligadas ao movimento neofascista. Ela sempre ficou no meio desses dois lados”.

O historiador Emilio Gentile é considerado o maior especialista vivo em fascismo na Itália. Para ele, os termos fascismo ou fascista só devem ser adotados para descrever os movimentos de massa organizados militarmente que tomaram o poder entre a Primeira e a Segunda Guerra, que negaram a soberania popular e transformaram completamente a sociedade com objetivos imperialistas. Ou seja, promoveram a dominação política, econômica e cultural de outros países e territórios. Seria um erro, na visão de Gentile, usar essas palavras para falar dos movimentos violentos de extrema direita de hoje. O motivo é que isso nos impediria de entender o que há de novo nesses movimentos atuais e o perigo que eles representam, argumenta o historiador italiano. Ele disse: “O problema hoje não é o retorno do fascismo, mas quais são os perigos que a democracia pode gerar por si só, quando a maioria da população - ao menos, a maioria dos que votam - elege democraticamente líderes nacionalistas, racistas ou antissemitas.” Isso não é um consenso.

O especialista em radicalismo e populismo Federico Finchelstein enxerga vários paralelos entre o fascismo histórico do início do século XX e líderes que ele classifica como populistas no século XXI. Esses líderes costumam se apresentar como solução messiânica dos problemas nacionais e como representantes autênticos da vontade do povo. Finchelstein argumenta que o populismo é uma forma autoritária de democracia que reformulou o fascismo depois do fim da Segunda Guerra, em 1945. Ele, inclusive, cita como exemplos desse “novo populismo” o trumpismo nos Estados Unidos e o bolsonarismo no Brasil.

Já que estamos falando de Brasil, vamos relembrar a história do fascismo no país. Aqui, esse movimento era chamado de integralismo. Inspirada em Mussolini, a Ação Integralista Brasileira, a AIB, surgiu em 1932 com um discurso marcado por anticomunismo, nacionalismo, antiliberalismo, defesa do cristianismo, conservadorismo, corporativismo, antissemitismo e culto ao seu líder e fundador, o escritor Plínio Salgado. Para ele, o liberalismo político-econômico e o comunismo eram faces da mesma moeda. O Brasil chegou a ter quase 200 mil filiados ao movimento integralista, chamados de camisas-verdes, em alusão aos camisas-negros italianos. Todas as sedes do movimento eram decoradas com fotos de Plínio Salgado, e cartazes com os dizeres: “O integralista é o soldado de Deus e da pátria, homem novo do Brasil que vai construir uma grande nação”.

 

Marcha integralista. Fonte: Acervo AIB/PRP-Delfos/PUCRS

 

Para Robert Paxton, a AIB “foi a coisa mais próxima a um partido de massas fascista nativo da América Latina”. Mesmo depois que o partido foi extinto por Getúlio Vargas, que Plínio Salgado perdeu uma eleição presidencial e morreu, em 1975, o integralismo não acabou.

O historiador brasileiro Leandro Pereira Gonçalves explica que o movimento se pulverizou nos anos 1970 e fez nascer vários pequenos grupos neofascistas. Um deles reivindicou a autoria de um ataque a bomba contra a sede do grupo humorístico Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, em 2019. Além disso, o lema do integralismo, “Deus, Pátria, Família”, voltou à tona como lema da Aliança Pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro tentou criar, sem sucesso.

 

Neofascismos. Fonte: BBC

 

O bolsonarismo, por sua vez, é caracterizado por alguns pesquisadores como um movimento neofascista ou pós-fascista. Veja a descrição do historiador argentino Federico Finchelstein: “No Brasil, uma ideologia com propagandas golpistas, muito próxima do fascismo, tem se intercalado com o nacionalismo e o messianismo”. Messianismo, nesse caso, seria a crença em um líder que chegaria para salvar a todos e tornar a vida melhor. A associação do bolsonarismo com o fascismo, no entanto, é fortemente negada por apoiadores de Bolsonaro. Veja o que escreveu no Twitter o filho dele e deputado federal Eduardo Bolsonaro:

 

“Qualquer um que se oponha ao PT será chamado de nazista, fascista. Não se trata de um conceito, mas sim uma tentativa de caluniar o oponente. Tática do vale-tudo! Os rótulos (fascista, negacionista etc.) não fazem qualquer sentido, não têm conexão com a realidade, apenas servem para controlar a narrativa.”

 

Segundo o autor Wilson Gomes, a estratégia política de chamar adversários de fascistas, genocidas ou comunistas busca o pânico moral e satanizar os adversários. “Você transforma o adversário, em termos discursivos, em uma posição inaceitável de um ponto de vista moral”. Será que isso banaliza o fascismo e o nazismo? É um debate recorrente.

O historiador americano Stanley Payne, um dos maiores estudiosos do movimento fascista, diz que o fascismo “continua sendo o mais indefinido dos termos políticos mais importantes”. Aliás, essa indefinição é ideal para impulsionar o uso indiscriminado do termo – parecido ao que ocorre com outros termos políticos de difícil definição, como liberal, conservador e comunista.

Em seu livro Antifascismo, o jornalista e escritor conservador americano Paul Gottfried argumenta que termos como fascista e nazista são usados atualmente pela esquerda como instrumento de propagação do medo. Mas a acusação de fascista não se restringe a políticos ou personalidades de direita. Até mesmo Lula já foi chamado de fascista por adversários da direita ou mesmo da esquerda, como Ciro Gomes na campanha presidencial de 2022.

O curioso é que essas referências ao fascismo ou ao nazismo, além de muitas vezes serem exageradas, academicamente imprecisas e falaciosas, têm pouco poder de convencimento, na opinião da English Speak Union, ONG britânica que promove a comunicação e o pensamento criativo.

Amanda Moorghen, pesquisadora da ONG, concluiu que

 

“Adotar acusações de fascismo como insulto não ajuda a se aproximar do público nem favorece seu ponto no argumento. Em vez disso, você aumenta o nível de agressividade do debate, forçando uma polarização entre 'bom' e 'mau' numa discussão que, por outro lado, poderia ter posições mais razoáveis dos dois lados”.

 

BBC News Brasil

Nathalia Passarinho, 7 de janeiro de 2023

https://youtu.be/ejz6tgfeGF8

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Acídia (Christianity Today)

 

O que é a acídia e como ela se tornou um inimigo de nossa alma

A apatia costumava ser uma virtude. Mas é o vício oculto da nossa cultura


 

Image: Illustration by Chidy Wayne

 

O conceito de apatia tem uma longa história no mundo ocidental. Não somos a única cultura a tratá-lo como algo “legal”, “bacana”. Os grandes filósofos do passado debateram sobre seu significado e valor. De fato, entre certos filósofos gregos, a apatia era uma das maiores coisas a que se poderia aspirar. O termo grego apatheia significa “sem pathē” (sem paixões); no pensamento de alguns filósofos, as paixões muitas vezes se referem a emoções violentas como amor, medo, tristeza, ira, inveja, luxúria, dor ou prazer que surgem em resposta ao mundo lá fora.

Segundo os estoicos, por exemplo, os sábios - aqueles que desejam uma vida próspera - são indivíduos totalmente livres de paixões. Em outras palavras, os sábios não são vulneráveis aos altos e baixos da vida neste mundo. Eles são autossuficientes; os acontecimentos exteriores da vida “apenas roçam a superfície” de suas mentes, como observa Martha Nussbaum em The Therapy of Desire [A terapia do desejo]. O objetivo da vida é o que poderíamos chamar de “impassibilidade” ou serenidade da alma. Mesmo grandes filósofos não estoicos, como Aristóteles, reconheciam o valor de se limitar as paixões, pois acreditavam que a boa vida estava reservada aos apáticos.

Os primeiros pensadores cristãos estavam bem cientes da antiga tradição filosófica de pensamento que valorizava a apatia. Curiosamente, como seus antecessores filosóficos, eles buscaram aplicar o conceito de apatheia não apenas aos seres humanos, mas também a Deus.

Aqueles que fizeram algum curso de introdução à teologia podem ter encontrado o termo impassibilidade nas discussões sobre os atributos de Deus. A impassibilidade é uma tradução do termo grego apatheia para o latim, e foi um conceito muito discutido entre os pais da igreja.

Segundo o teólogo Pavel Gavrilyuk, falar de Deus como alguém impassível é dizer que “ele não tem as mesmas emoções que os deuses dos pagãos; que seu cuidado pelos seres humanos é livre de interesse próprio e de qualquer associação com o mal”. Impassibilidade significa que Deus não é dominado por emoções, nem tem suas emoções afetadas por nada que seja externo a ele.

Embora possa ser apropriado atribuir “emoções” a Deus, a impassibilidade (ou apatheia divina) exclui aquelas que lhe são impróprias. Assim, por exemplo, quando falamos de Deus como amor, na verdade estamos falando de um Deus apaixonado. Mas é uma paixão impassível, um amor que não é ditado pelo mundo exterior. Em outras palavras, diferente de nós, Deus não está sujeito a paixões violentas. Apatheia é outra maneira de se referir à imutabilidade e à solidez da afeição de Deus por tudo o que ele é e por tudo o que ele fez.

De acordo com alguns pensadores da igreja antiga, a apatia humana é um estado de ser virtuoso e uma imagem da própria virtude de Deus. Uma pessoa dotada de apatheia é alguém que dominou suas paixões por meio da disciplina e alcançou um verdadeiro amor por Deus. De acordo com Evágrio de Ponto, um monge do quarto século, “O amor é fruto da impassibilidade”. Apatheia era algo a ser buscado, o ápice de uma vida bem ordenada que examinou a si mesma e submeteu-se.

No entanto, o tipo de apatia com que lidamos nada tem a ver com a tentativa consciente de nos fortalecer contra os altos e baixos da vida ou com a tentativa de cultivar um desapego do mundo que gere amor por Deus. Acredito que, para os cristãos primitivos, o conceito que melhor se aproxima do que chamaríamos hoje de apatia não é apatheia, mas sim um termo nada palatável - preguiça (ou acídia).

Quando pensamos em preguiça, podemos pensar em uma criatura que se move lentamente ou em alguém viciado em televisão, que passa o dia todo de pijama, em frente à TV, comendo potes de sorvete Ben & Jerry's. No entanto, os cristãos descreveram a passividade de maneira muito mais rica.

A acídia é um termo grego que significa literalmente “indiferença, letargia, exaustão e apatia”. Um dos primeiros e mais influentes pensadores sobre a acídia foi Evágrio de Ponto. Ele compilou uma lista de oito tentações mortais, que mais tarde se transformaram no que hoje conhecemos como os sete pecados capitais. Embora ele seja um desconhecido para muitos de nós, suas reflexões sobre as dimensões espirituais da apatia são inspiradoras:

A acídia é uma afeição intangível, que desvia nossos passos, nos leva ao ódio pela diligência, a uma batalha contra a solitude, a um tempo tempestuoso para a salmodia, à preguiça de orar, a um afrouxamento da ascese [autodisciplina estrita], à sonolência inoportuna, ao sono recorrente, à opressão da solidão, ao ódio da própria cela, a ser contrário às obras ascéticas, a ser um oponente da perseverança, à mordaça da meditação, à ignorância das escrituras, a tomar parte na tristeza.

A acídia é uma companhia constante. Tem como alvo as práticas espirituais que pretendem nos trazer vida, como a oração, a solitude, a leitura das Escrituras, o trabalho árduo e a perseverança em fazer o bem. Em suas instruções práticas aos colegas monges sobre vários vícios, Evágrio de Ponto dedica mais espaço a descrever a acídia do que a qualquer outra coisa.

Da mesma forma, outro monge e importante pensador, João Cassiano, descreve a acídia como uma inquietação que nos leva a perseguir tudo, exceto nossos deveres mais importantes. A acídia distrai. Ela nos torna preguiçosos e lentos em relação às nossas responsabilidades espirituais e práticas. É uma preguiça seletiva que torna atrativo todo o restante.

Uma escritora mais atual, Nicole M. Roccas, faz uma síntese bastante útil da acídia em Time and Despondency [Tempo e desânimo], apontando que ela pode assumir formas diferentes em pessoas diferentes. Por exemplo, pode se manifestar como (1) inquietação, incapacidade de terminar um livro, de orar mais longamente ou de terminar uma tarefa; (2) produtividade acompanhada de raiva ou tédio pelas coisas que está fazendo; ou (3) uma inclinação para dormir, comer, se preocupar e se distrair.

Um fio comum que une essas várias manifestações é a falta de propósito ou a falta de objetivo. As coisas são deixadas de lado, são feitas com o propósito errado ou sem qualquer propósito. Como observa Rebecca Konyndyk DeYoung em Glittering Vices [Vícios glamurosos], o coração fica insensível às “exigências do amor” - isto é, às coisas para as quais Deus nos chamou.

Em Creed or Chaos? [Credo ou caos?], Dorothy Sayers chama a acídia de “o pecado de não acreditar em nada, não se importar com nada, não procurar saber de nada, não interferir em nada, não desfrutar de nada, não amar nada, não odiar nada, não encontrar propósito em nada, viver para nada e apenas continuar vivo, pois não há nada pelo que a pessoa morreria.” Isso é indiferença sem propósito e sem objetivo.

A acídia, segundo os cristãos a conceberam ao longo da história, é realmente uma categoria que nos ajuda a entender o que conhecemos pelo nome de apatia. Como um diagnóstico da alma, ela aponta para o fato de que o que quer que esteja acontecendo em nós não é algo meramente psicológico ou emocional, mas também espiritual. De fato, a acídia parece ser caracterizada principalmente por sua resistência ao espiritual. E não é isso que achamos tão preocupante na apatia?

Importantes pesquisas psiquiátricas sobre a apatia têm sido feitas, especialmente entre pessoas com enfermidades graves como Alzheimer ou Parkinson.

No entanto, a pesquisa pode ser aplicada de forma mais ampla a todos os que estão tentando entender a apatia. Uma das definições mais comumente citadas descreve a apatia como uma falta de motivação que “não é atribuível a um nível reduzido de consciência, a um déficit intelectual ou a sofrimento emocional”.

Se a falta de motivação for acompanhada de falta de esforço, falta de interesse em aprender ou falta de emoção, então, o paciente pode ser clinicamente diagnosticado com uma patologia real. Alguns pacientes simplesmente relatam a apatia como “um levantar e ir embora” ou “a falta de uma faísca”. Essas frases fazem um excelente trabalho no sentido de articular um sentimento que muitos de nós compartilhamos.

No entanto, o valor da precisão clínica consiste em que, à medida que aprimoramos a definição da patologia, ficamos em melhor posição para tratá-la. Por exemplo, a apatia tem pontos em comum com outras patologias, como a depressão.

Além disso, os estudos sobre a apatia foram capazes de chegar a uma lista restrita dos vários fatores que contribuem para ela, como fatores ambientais ou biológicos. Por exemplo, imigrantes ou membros de minorias étnicas às vezes se adaptam às diferenças de cultura ou de idioma tornando-se apáticos. A mudança de cultura, ou a sensação de estar isolado dentro de uma cultura, interfere na sua busca de valores ou objetivos, e a apatia é apenas uma forma de lidar ou de se adaptar ao seu ambiente.

Estudos também mostram que o tipo de apatia que nos preocupa é, em grande parte, uma resposta adquirida ao mundo. Não é necessariamente algo com o qual alguém nasceu e, portanto, algo que se esteja destinado a ter pelo resto da vida. Pessoas relativamente saudáveis que ficam apáticas perderam o interesse pelas coisas - mas apenas por algumas coisas. Na verdade, o psicólogo Robert S. Marin define formas típicas de apatia como “apatia seletiva”.

A nossa apatia é justamente o oposto da apatia que nossos antepassados tanto prezavam.

O que é, então, a apatia? Quem precisamente é esse inimigo que está contra nós? Estamos a quilômetros (e a centenas de anos) de distância da antiga virtude da apatheia. Nossa apatia é justamente o oposto da apatia que nossos antepassados tanto prezavam. A nossa é uma apatia destituída de amor; a deles era definida pelo amor. A nossa condena a autodisciplina; a deles exigia a autodisciplina.

A apatia não é depressão profunda, nem desespero, nem desânimo. Não é o mover misterioso do fiel cristão a tatear nas trevas em direção a Deus. Em vez disso, é uma postura medíocre que oscila entre a confusão e o desengajamento.

A apatia, como a literatura da psicologia nos deixou cientes, é basicamente um déficit de motivação, de esforço, de interesse, de iniciativa e de desejo por coisas que antes considerávamos significativas. É um distúrbio psicológico, possivelmente não da mesma magnitude que tem a depressão clínica, mas ainda assim debilitante à sua maneira. A acídia apenas descreve o desânimo que sentimos em relação às coisas do Espírito; é um nome para a dimensão espiritual da apatia.

A apatia é uma patologia psicológica e espiritual, na qual experimentamos um amortecimento prolongado da motivação, do esforço e das emoções, bem como uma resistência às coisas que fariam a nós mesmos e a outros florescer.

É um pecado que se expressa como inquietação, falta de objetivo, preguiça e falta de alegria para com as coisas de Deus. Não é apenas uma parte do comportamento adulto mais altamente evoluído, algo como ser alguém descolado demais para se importar com as coisas. É uma patologia.

A Escritura fala do pecado como uma doença que contamina todas as pessoas, desde que originou-se em Adão (Romanos 5.12), e que continua vivo em nós, produzindo todo tipo de mal (7.8,20). A Bíblia também afirma que éramos escravos do pecado, que precisávamos ser libertados do cativeiro (João 8.34-36; Romanos 6.6). Finalmente, o pecado é descrito como transgressão da Lei (1João 3.4), que traz condenação (Romanos 5.18; 6.23) e requer propiciação (3.23-25; 1João 2.2).

Na obra Not the Way It’s Supposed to Be [Não do jeito que deveria ser], Cornelius Plantinga descreve o pecado como o “vandalismo” do shalom. O shalom, biblicamente falando, significa “florescimento universal, integridade e deleite” - o jeito que as coisas deveriam ser. Nós violamos o shalom quando nos voltamos contra a boa ordem que Deus estabeleceu. Nós a subvertemos quando vivemos de modo que prejudica o nosso bem-estar e a nossa alegria, bem como os dos outros. E porque o shalom tem a ver, em última análise, com o nosso relacionamento com o Criador, sua vandalização é direcionada a Deus.

Como escreve Plantinga, “O pecado não é apenas a violação da lei, mas também a violação da aliança com o salvador. Pecar é macular um relacionamento, é entristecer o pai divino e benfeitor, é trair o parceiro a quem nos unimos por um vínculo sagrado.”

Essa mácula acontece por meio de nossas ações, bem como de nossas atitudes. A apatia é uma doença da alma; é uma deformidade do coração que precisa ser curada. A apatia, do modo que muitos de nós a experimentamos, é uma forma de escravidão. Parece que não conseguimos sair dela, e nos vemos regularmente nos rendendo a seus avanços.

Em última análise, a apatia, como recusa de amar aquele que mais inspira e mais merece amor, é um crime moral e espiritual. É um pecado em seu sentido mais básico. Suas origens podem ser misteriosas, mas sua orientação não é. É uma frieza para com Deus e uma indiferença para com as coisas que trazem shalom - duas atitudes que precisam ser perdoadas, vencidas e curadas.

Devemos lamentar nossa apatia, embora não a lamentemos como aqueles que não têm esperança. Deus é conosco e por nós em nossa apatia.

 

Christianity Today

Uche Anizor, 04 de janeiro de 2023

Uche Anizor é professor associado de teologia na Talbot School of Theology. Conteúdo adaptado e traduzido de Overcoming Apathy, por Uche Anizor©2022.