Os projetos herdados da ditadura militar
que ameaçam terras de indígenas isolados
O Ibama apreendeu toneladas de madeira ilegal na terra indígena de
Pirititi em 2018
Duas terras onde vivem indígenas isolados estão sob ameaça devido a
projetos de desenvolvimento herdados da ditadura militar, mostram dados de um
relatório técnico do Instituto Socioambiental (ISA, organização sem fins
lucrativos com foco em temas ambientais e indígenas).
Os projetos são a pavimentação da rodovia BR-319, no Amazonas, e a
retomada do projeto do Linhão do Tucuruí (uma grande linha de energia passando
no meio da terra indígena), em Roraima.
Habitadas por grupos isolados que nunca tiveram contato com
não-indígenas, as terras de Jacareúba-Katawixi (AM) e Pirititi (RR) estão em
regiões que devem ser afetadas pelos projetos e estão prestes a perder a
proteção legal que tinham até agora.
Ambas as terras eram protegidas por Portarias de Restrição de Uso,
um mecanismo legal temporário para proteger indígenas isolados decretado pela
Funai (Fundação Nacional do Índio) e que precisa ser renovado periodicamente,
normalmente a cada três anos.
A portaria decretada para a terra indígena de Pirititi, no entanto,
venceu no domingo (5/12) e foi renovada por apenas seis meses, tempo visto como
muito curto por ambientalistas. A da terra indígena de Jacareúba-Katawixi vence
nesta quarta (8/12) e a Funai ainda não se manifestou sobre a sua renovação.
Dados e imagens captados por satélites analisados pelo ISA mostram
que ambas as regiões já tiveram explosões de desmatamento durante a pandemia
com a expectativa dos invasores de que as portarias não fossem renovadas.
"Percebemos um aumento do desmatamento no período anterior ao
vencimento das portarias", explica Antonio Oviedo, coordenador do programa
de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA.
"É um padrão mesmo, o desmatamento aumenta com a especulação
desses invasores de que essas áreas eventualmente entrem nos cadastros públicos
e eles possam requerer a titulação desses terrenos", afirma Oviedo.
Acredita-se que a Amazônia tem a maioria das tribos isoladas no
mundo
O governo afirma que a retomada dos projetos é necessária para a
infraestrutura da região. Mas pesquisadores e comunidades locais dizem que
outras alternativas poderiam ser estudadas e criticam a falta de um compromisso
claro com a mitigação dos impactos das obras.
Diversos estudos apontam para o impacto socioambiental de grandes
obras no coração da floresta. Um
deles, publicado na revista científica Biological Conservation, mostra que
95% do desmatamento acumulado na Amazônia se concentram em uma distância de
5,5km das estradas na região. Outro, publicado no
International Journal of Wildland Fire, aponta que 85% dos incêndios
florestais também se concentram nesse raio.
Os ministérios da Infraestrutura e das Minas e Energia (MME)
inicialmente não responderam aos questionamentos da BBC News Brasil. Mas após a
publicação da reportagem, o MME afirmou que o licenciamento do linhão do
Tucuruí seguiu os protocolos de consulta aos indígenas e que foi
"escolhido o traçado com menor impacto socioambiental". Já a pasta da
infraestrutura afirmou que tem o "compromisso de assegurar que a rodovia
(BR-319) seja modelo no respeito à conservação do meio ambiente e traga
desenvolvimento sustentável para a região."
Estudos demonstram os efeitos prejudiciais da construção de
rodovias para os ecossistemas cortados por elas
Sobrevivência ameaçada
A terra indígena de Jacareúba-Katawixi, no Amazonas, é habitada
pelos indígenas Katawixi, um grupo isolado que nunca teve contato com
não-índios, mas que deixa vestígios de ocupação observados em expedições, como
construção de abrigos e colheita de frutos. Seu modo de vida é totalmente
dependente da natureza preservada.
Com a portaria de restrição de uso prestes a vencer, a terra está
em uma região que deve ser afetada pela pavimentação da BR-319, estrada de 885
km que liga Manaus a Porto Velho por terra.
Iniciada em 1968 e inaugurada em 1976, a rodovia foi idealizada e construída
no coração da floresta pelo governo militar como parte de um "plano de
integração nacional", que incluía o incentivo à migração e a criação da
Transamazônica.
Nos anos seguintes, a BR-319 foi se degradando com a falta de
manutenção. Cheia de atoleiros e crateras, seu estado chegou a um ponto que
levou ao seu fechamento na década de 1980. Desde 2015 ela tem trechos abertos
para o trânsito, mas sem pavimentação.
Em junho de 2020, o governo Bolsonaro publicou um edital para a
pavimentação de 52 km da rodovia. Na época, no entanto, não havia um estudo de
viabilidade econômica e nem a elaboração de um estudo detalhado de impacto
ambiental (chamado EIA/RIMA).
O edital foi questionado na Justiça pelo Ministério Público Federal
justamente pela falta do estudo ambiental, mas o Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes (Dnit) argumentou que havia um entendimento com o
Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) que
tornava o EIA/RIMA desnecessário.
Em abril, o Dnit conseguiu derrubar na Justiça a liminar obtida
pelo MPF que impedia a continuação das obras e posteriormente apresentou uma
análise de impacto ambiental. No entanto, pesquisadores e ambientalistas
questionam a capacidade do governo de mitigar as consequências das obras.
O Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), órgão de monitoramento
do próprio governo, fez diversos estudos que apontam para os impactos
ambientais do projeto. Um deles traz a
projeção de que o desmatamento aumente em 1.200% no entorno com a retomada de
obras na estrada.
Nesse cenário, a sobrevivência dos Katawixi está extremamente
ameaçada, afirma Elias Bigio, coordenador da Operação Amazônia Nativa (Opan) e
ex-coordenador geral de Índio Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC) da Funai.
"Eles estão sob forte pressão de grilagem, de madeireiras e
garimpos ilegais. E a violação ao território indígena culmina na morte e no
extermínio dessa população", afirma Bigio, que explica que grande parte
dos indígenas isolados são sobreviventes de massacres de invasores do passado.
O ministério da Infraestrutura disse em nota que "com a
recuperação e a pavimentação, a região terá ganhos econômicos e sociais,
proporcionando ao estado do Amazonas a conexão com o restante do Brasil".
A pasta também afirma que o processo de licenciamento ambiental "está em
fase de análise pelo Ibama" e que "o estudo de impacto ambiental e
suas complementações já foram protocolados".
"Além disso, já houve a realização das audiências públicas,
conforme preconiza a legislação brasileira, e de vistoria do Ibama e do
Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes", afirma a pasta.
O ministério diz também que "a pavimentação irá permitir uma
presença maior de órgãos fiscalizadores, como Polícia Federal e Polícia
Rodoviária Federal" e maior presença do Estado na região.
Após declínio vertiginoso na ditadura, população waimiri atroari
hoje soma 2.160 integrantes
Torres na floresta
A presença dos indígenas isolados Piruichichi (Pirititi) na terra
indígena Pirititi, em Roraima, é conhecida desde os anos 1980, a partir dos
relatos dos Waimiri-Atroari, grupo com histórico de contato que também vive na
região.
Os Pirititi são colocados em situação de extrema vulnerabilidade
com o fim da vigência da portaria de restrição de uso e a passagem do Linhão do
Tucuruí pela terra indígena, afirma Elias Bigio.
Terras indígenas sofrem pressão de desmatamento e de grileiros
A primeira portaria foi decretada pela Funai em 2012 e vinha sendo
renovada a cada três anos desde então. Neste ano, no entanto, a Funai renovou a
portaria por apenas seis meses, tempo visto como insuficiente pelos indígenas e
por pesquisadores.
"Seis meses é muito pouco. Não dá para fazer estudos, para
ouvir a comunidade, para retirar invasores. Só beneficia os madeireiros ilegais
e os grileiros", afirma Antonio Oviedo, do ISA.
O MPF entrou com uma ação neste ano de 2021 com recomendações para
a proteção do povo indígena isolado, incluindo o avanço do processo de
demarcação definitiva da terra e ações de combate aos invasores.
O Linhão de Tucuruí é uma linha de transmissão de energia elétrica
de 1.800 km que pretende ligar alguns estados do norte ao sistema nacional de
energia. Com o atual traçado, ela cortaria a terra indígena dos Waimiri-Atroari
em 125 km.
Apesar da linha ser mais recente, tendo sido leiloada em 2008,
explica Bigio, ela também é parte de um projeto para a região que é herança da
ditadura militar.
A usina hidrelétrica de Tucuruí, que a linha pretende ligar ao
sistema de energia nacional, foi construída em 1974 no Pará como parte de um
projeto do governo militar de explorar reservas minerais na Amazônia, o que
gerava demanda de grande produção de energia elétrica. Sua segunda etapa foi
concluída somente em 2008, ano em que o Linhão foi leiloado.
Os impactos da construção da hidrelétrica estão entre os mais
estudados no Brasil, com inúmeras pesquisas que relatam como ela afetou as
comunidades ribeirinhas e indígenas no entorno. Além do desmatamento e
invasões, a construção hidrelétrica ampliou a presença de mosquitos, trouxe
inúmeras doenças, afetou a pesca (essencial para a sobrevivência dos indígenas
e dos ribeirinhos) e gerou contaminação com mercúrio, resultado do garimpo
trazido para a região.
Já o Linhão de Tucuruí se tornou foco de conflitos ao passar por
inúmeras terras públicas e particulares, incluindo áreas de reserva. A
construção do linhão exige o desmatamento de certas áreas para a construção de
torres de até 300 metros, além de trazer outros impactos apontados pelo próprio
Ibama, como poluição, aumento do fluxo de pessoas e de doenças e novas frentes
de desmatamento.
O trecho que passa pela terra indígena Pirititi estava com as obras
paradas por causa da possibilidade de impacto socioambientais e aguardava
aprovação do Ibama. Com as novas direções apontadas pelo governo Bolsonaro, no
entanto, o Ibama e a Funai autorizaram a construção do trecho.
"É surpreendente que a Funai esteja fazendo isso", afirma
Elias Bigio. "O que deveria ter sido feito era fazer uma consulta técnica,
para que a comunidade indígena próxima, com históricos de contato, pudesse
participar. Eles não foram ouvidos e a autorização não segue as diretrizes da
própria instituição. Há uma portaria da Funai com mais de 80 anos que proíbe
empreendimentos em terra de indígenas isolados."
Ministério de Minas e Energia diz que o linhão de Tucuruí margeará
a BR-174, que atravessa o território waimiri atroari
O presidente Jair Bolsonaro já defendeu publicamente que os povos
indígenas — 1,1 milhão do total de 213 milhões da população brasileira —
deveriam ter suas terras reduzidas. É uma postura que Bolsonaro tem desde antes
de se tornar presidente. Em 1998, quando ainda era deputado federal, ele disse
ao jornal Correio Braziliense que era uma "vergonha" as forças
militares brasileiras não serem "tão eficientes como as
norte-americanas" em "exterminar povos indígenas".
Após a publicação da reportagem, o ministério das Minas e Energia
disse que "o traçado da linha considerou as alternativas estudadas, tendo
sido escolhido o traçado com o menor impacto sócio ambiental" e que o
Ibama e a Funai analisaram as medidas de "controle, mitigação e
compensação dos impactos identificados" e deram suas aprovações.
Harlison Araújo, assessor jurídico da Associação Comunidade Waimiri
Atroari, afirma que os indígenas da comunidade apresentaram uma proposta de
compensação ambiental sobre a qual o governo federal ainda não se manifestou.
Eles lutam há
anos para serem ouvidos pelo governo sobre as obras.
"Se o governo não considerar a proposta, não tem acordo",
diz Araújo. "Tratam como se fosse culpa dos índios o projeto não ir para
frente, mas foi o governo que não trabalhou direito."
Araújo lembra que não houve consulta prévia à população antes do
leilão e que o governo não considerou os 27 impactos irreversíveis, apontados
pelo próprio Ibama e pela Funai, e os outros 10 que são apenas mitigáveis.
"[Tanto o Linhão quanto a pavimentação da BR-319] são
empreendimentos que se colocam como se os índios fossem um empecilho, como se a
vida das pessoas fosse apenas um transtorno no meio do caminho", diz Elias
Bigio. "Isso quando é perfeitamente possível se estudar alternativas que
respeitem os povos locais e garantam sua proteção."
O MME disse que o processo de licenciamento "contemplou os
protocolos da consulta aos indígenas foram seguidos, e estão sendo
integralmente cumpridos" e que o governo "dialoga com a comunidade
indígena sobre a proposta de criação de grupo de trabalho referente às
compensações ambientais."
A pasta disse também que o sinal verde para o projeto "é um
avanço significativo no processo que interligará Boa Vista ao Sistema
Interligado Nacional, levando à capital de Roraima a segurança e a qualidade do
sistema elétrico disponível nas outras capitais do país."
BBC News Brasil em São Paulo
Leticia Mori, 8 de dezembro de 2021