quinta-feira, 3 de junho de 2021

Economia com alma para a Amazônia (O Globo)

 

Economia com alma para a Amazônia

 

Dom Cláudio Hummes, Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB.


Os alertas de que o desmatamento na Amazônia Legal derrubou mais de 500 quilômetros quadrados de florestas, somente em abril de 2021, devem inquietar-nos ainda mais se desejarmos garantir vida com dignidade para todas as pessoas. No contexto da pandemia, o desmatamento está intimamente vinculado a outras violações de direitos humanos e da natureza, como a grilagem de terras, a mineração em territórios indígenas, a precariedade dos serviços de saúde e a criminalização dos defensores e defensoras de direitos.

Na encíclica “Laudato Si”, que está para completar seis anos de publicação, nosso querido Papa Francisco assinalou que todas as coisas estão interligadas, são interdependentes. Humanidade e natureza não podem ser assumidas como se uma não dependesse da outra. Por isso, a economia não pode se abster de incluir as questões ambientais nas suas definições e práticas, pois isso, lembra o Papa, aumentará ainda mais as situações históricas de injustiças, empobrecimento e violência. Os gritos ecoados como consequências do desmatamento na Amazônia são um apelo para toda a sociedade, mas especialmente para as diferentes esferas de governo, sobre a urgência em repensar os modelos econômicos injustos e insustentáveis.

Sensível a esta realidade, jovens, economistas, universidades, pastorais e a sociedade civil responderam a um outro chamado do Papa Francisco: “estabelecer um pacto para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã.” Essa é a economia de Francisco, um movimento que está refletindo e atuando com experiências concretas para promover a dignidade humana e o cuidado com a Casa Comum, e para que a economia não seja um emaranhado de estatísticas sem vida. Por isso, é necessário dar uma nova alma à economia. E qual pode ser o novo rosto da economia? Quais pactos podemos firmar em nossas comunidades, cidades, no Brasil e no mundo?

Esse pacto precisa respeitar as comunidades tradicionais, especialmente povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos da Amazônia. Na exortação “Querida Amazônia”, o Papa também indica que estes irmãos e irmãs não são pessoas que devem ser convencidas sobre nossos projetos, mas antes de tudo precisam ser escutados, porque são os principais interlocutores para promover políticas justas e democráticas. Escutar os povos e comunidades para dar uma nova alma à economia é um dever de justiça, porque são eles que conhecem suas realidades e, como sujeitos de direitos, imaginam e já estão construindo a sociedade do bem viver, ainda que ameaçados. Se não ouvirmos os povos tradicionais, a Amazônia continuará sendo um território destinado à exploração desenfreada a serviço da economia de poucos para poucos.

Além do direito à participação em qualquer projeto, especialmente aqueles relacionados à economia, comunidades tradicionais também são detentoras de conhecimentos abandonados pela nossa sociedade modernizada, e foram elas as responsáveis pela conservação da floresta e toda a sua biodiversidade. Por isso, nenhum projeto, mesmo aqueles erigidos sobre a ótica da qualidade de vida, devem ser realizados sem reconhecer o mundo de símbolos e visões potentes que esses povos construíram ao longo de suas histórias. A prepotência de nossas sociedades urbanas e modernas, com uma economia que explora recursos sem reconhecer os limites da Casa Comum, coloca em risco não apenas a continuidade da vida na Amazônia, mas de toda a humanidade.

No Brasil, a economia de Francisco é também chamada de economia de Francisco e Clara, porque reconhece a presença das mulheres na construção de novas economias. Santa Clara foi companheira de São Francisco de Assis na contemplação, no cuidado com os empobrecidos e empobrecidas e no amor a todos os seres da Casa Comum. Os novos pactos para “realmar” a economia e cuidar da Amazônia precisam fortalecer as experiências que nossas comunidades estão realizando junto com mulheres, jovens, associações, empreendimentos solidários.

Na Amazônia e em outros biomas, a economia de Francisco e Clara já é uma realidade porque as pessoas estão organizadas para produzir e comercializar a partir da economia solidária, da agroecologia ou experiências pilotos de transição energética. A Igreja Católica no Brasil, através de vários dos seus organismos, sempre acompanhou esses grupos e agora, inspirada pelo Papa Francisco e atenta às urgentes demandas sociais, quer contribuir ainda mais para transformar a realidade e promover justiça socioeconômica com distribuição justa de renda, sem jamais destruir a Amazônia e outros biomas.

Por isso, a Igreja continuará acompanhando e exigindo dos governos que adotem medidas de cuidado integral com a Amazônia e toda a Casa Comum, especialmente nesse momento histórico em que são discutidos diversos projetos de lei e outras políticas públicas para superar a crise econômica agravada pela pandemia do novo coronavírus. A economia não deve ser um emaranhado de números ou uma promessa de desenvolvimento a qualquer custo, mas antes de tudo um serviço para promover a justiça e superar as desigualdades sociais, sem jamais esquecer que para isso precisamos de salvaguardar o meio ambiente e toda a sua biodiversidade.

Que o exemplo de São Francisco de Assis e Santa Clara inspire-nos a ser cuidadores e cuidadoras da vida e promotores de uma nova economia.

 

O Globo Opinião

Dom Cláudio Hummes, em 03/06/2021 às 17:28hs

Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB

Sob a Inspiração do Papa

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Cheias no Amazonas (Folha de São Paulo)

  

Cheias no Amazonas

Impulsionado pelas mudanças climáticas, rio Negro registra cheia histórica em Manaus

 

Principal cidade da Amazônia, Manaus registrou nesta terça-feira (1º) a maior cheia desde o início das medições no rio Negro, há 119 anos. Por causa das mudanças climáticas, seis das dez maiores cheias nesse período ocorreram no século 21.

A capital amazonense já sofre com inundações há um mês. A cota de inundação severa (29 metros) foi ultrapassada no dia 30 de abril. A previsão é de que a situação se estabilize e que as águas comecem a baixar em breve, um processo longo que deve levar algumas semanas. As medições e os alertas de cheia são de responsabilidade do Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM).

No centro, algumas ruas da região do porto estão interditadas. A prefeitura montou passarelas sobre as calçadas e vias alagadas e transferiu a tradicional feira de peixes para uma balsa. Já os comerciantes improvisaram barreiras com sacos de areia e vêm jogando cal na água parada para tentar neutralizar o cheiro insuportável de fezes.

 

População caminha sobre madeira no centro de Manaus em meio a cheia recorde do rio Negro - Alberto César Araújo/Amazônia Real

 

Nos igarapés, o represamento das águas pelo rio Negro provoca um acúmulo de lixo, que em alguns trechos chega a cobrir toda a superfície. Os moradores mais próximos dependem de pinguelas estreitas para transitar e, dentro das casas, lançam mão de plataformas de madeira (marombas) para suspender móveis e eletrodomésticos em meio ao fedor.

Segundo a Defesa Civil, cerca de 450 mil pessoas foram afetadas pelas cheias no Amazonas, o equivalente a 10% da população do estado. A cheia atingiu 58 dos 62 municípios amazonenses. Um deles, Anamã, no rio Solimões, está com todo o casco urbano alagado há algumas semanas.

Além de Manaus, foram registradas cheias recordes em Parintins (rio Amazonas), em São Gabriel da Cachoeira (rio Negro) e em Manacapuru (rio Solimões).

Pesquisa do Instituto Igarapé publicada em 2018 mostrou que o Amazonas é o estado do país com o maior número de pessoas deslocadas em decorrência de fenômenos naturais desde o ano 2000, seguido por Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Foram 840.252 deslocados ao longo de 18 anos, dos quais 84% em decorrência de inundações. Manaus apareceu como a 6ª cidade com maior número de desabrigados e desalojados por desastres naturais do país: 59.756, dois quais 81% vítimas de enchentes.

Responsável pelo sistema de alerta hidrológico do Amazonas, a pesquisadora em geociência do Serviço Geológico Luna Gripp afirma que não há dúvidas de que os eventos extremos estão se tornando mais frequentes.

“Em menos de três anos, já repetimos um evento que deveria ocorrer a cada 50 anos, se considerarmos o que ocorria antigamente”, diz Gripp, ao lembrar que houve uma grande cheia em 2009, logo superada pela de 2012. "Os movimentos extremos estão mais frequentes e também cada vez com maiores magnitudes”.

Uma diferença neste ano, segundo a pesquisadora, é que as chuvas acima da média no início do ano atingiram simultaneamente as cabeceiras do rio Negro e do Solimões, os principais afluentes do rio Amazonas. O resultado é que tanto São Gabriel quanto Parintins registraram níveis recordes, apesar de estarem a 1.172 km de distância, em linha reta.

 

Cheia do rio Negro provoca alagações no bairro do Educandos, em Manaus - Alberto César Araújo - 24.mai/Amazônia Real

 

“A frequência das grandes enchentes está aumentando, assim como a frequência de grandes vazantes”, corrobora o ecólogo Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), que atribui as mudanças ao aquecimento global.

No longo prazo, o pesquisador afirma que um dos fatores que mais impactam a mudança no regime de chuvas na Amazônia é a chamada Circulação Walker.

Desde os anos 1990, o aumento da temperatura no Atlântico Sul vem intensificando a circulação de vento de leste para oeste, causado pela diferença de temperatura da superfície do Atlântico Sul e a parte leste do Pacífico, que está ficando mais fria, aumentando essa amplitude.

São esses ventos vindos do Atlântico que transportam o vapor d’água que gera chuva para a Amazônia. Com a intensificação da Circulação Walker, a tendência é de que entre ainda mais água na maior bacia hidrográfica do mundo, segundo Fearnside.

 

Centro de Manaus durante cheia histórica do rio Negro - Michael Dantas/France Presse

 

Por outro lado, o desmatamento tende a diminuir as chuvas na Amazônia, mas esse é um fenômeno mais paulatino e regionalizado, afirma o pesquisador. Ele cita o caso do rio Tocantins, cuja bacia já está bastante desmatada.

Nesse caso, ocorre um paradoxo: ao mesmo tempo em que a supressão de árvores diminui a precipitação pluviométrica, a ausência da cobertura vegetal faz com que a água das chuvas escoe rapidamente para os rios, aumentando as cheias.

Não é o caso da enchente de Manaus, provocada tanto pelo rio Negro quanto pelo Solimões, que represa o primeiro no Encontro das Águas, a alguns quilômetros do centro. Longe de grandes estradas e do agronegócio, ambas bacias ainda sofrem pouco com o desmatamento da floresta amazônica.

 

Folha de São Paulo

Fabiano Maisonnave

02 de junho de 2021 às 10h06