segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Isolados: Mortandade e Guerra (O Globo)

  

Isolados

Mortandade e Guerra entre Aldeias

 

O sertanista José Meirelles quando trabalhava na base da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, na foz do Igarapé Xinane com o rio Envira Foto - Arquivo Pessoal

 

RIO - Responsável por fiscalizar durante 22 anos um imenso território com a presença de ao menos quatro etnias desconhecidas no Acre, o sertanista José Meirelles faz uma previsão sombria das consequências do contato feito entre índios isolados e uma aldeia localizada no rio Envira, na fronteira com o Peru, revelado pelo GLOBO. 

Há relatos de índios com tosse, dores de cabeça e cansaço na aldeia Terra Nova, onde foi feito o contato com os isolados. A Funai diz que já enviou uma equipe ao local para investigar o caso. 

O contato, considerado raro por indigenistas, acontece em meio ao momento de maior risco desses povos originários por conta do avanço da Covid-19 dentro das florestas. 

Por experiências passadas, Meirelles arrisca a cravar "99,9% de chances" de que algum desses isolados tenha contraído gripe de algum indígena que more nessa aldeia e, de volta para suas malocas, espalhado a doença. 

- E eu não estou nem falando de coronavírus. A probabilidade desses índios terem escapado de pegar gripe é a mesma de eu ganhar na Mega-Sena. E, se pegaram, podem estar todos mortos - afirma.


Fotos mostram índios isolados na fronteira do acre


Índios isolados no Rio Envira disparam flecha contra aeronave, entre a fronteira do Acre e o Peru, em foto de 2008. Foto - Gleison Miranda/Funai


Ricardo Stuckert e José Meirelles flagraram movimento de isolados na floresta do Acre. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Índios atiraram flechas na tentativa de afastar a aeronave. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo


As fotos foram feitas durante um voo de helicóptero próximo à fronteira com o Peru. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Maloca de palha registrada durante o sobrevoo feita por José Meirelles. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Uma das características desses índios é ter parte da frente da cabeça raspada e cabelos grandes atrás. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Vista aérea da região em que os índios foram encontrados. Foto - RICARDO STUCKERT / Agência O Globo

 

Meirelles aposta que pelas descrições feitas pelo cacique Cazuza Kulina ao GLOBO tem conviccção de se tratar do mesmo grupo que avistou em 2008 durante um sobrevoo quando era coordenador na Fundação Nacional do Índio (Funai) da Frente Ambiental de Proteção Etno-Ambiental do rio Envira, e depois em 2016, já fora da Funai. 

- Eu conheço o cacique Cazuza há mais de 30 anos e confio nele. Certamente aconteceu o contato. E pela descrição dele de que levaram vidro de garrafa para cortar cabelo é quase certo de serem os isolados que avistamos em duas oportunidades. Eles têm a cabeça raspada até o meio e cabelos grandes atrás, provavelmente pertencem a um grupo do tronco linguístico pano. 

De acordo com o sertanista, esse grupo de isolados vive numa área de difícil acesso, no centro da floresta, no Alto Rio Humaitá, e se dividem em até seis aldeias. Ele estima que há cerca de 400 indígenas isolados vivendo por lá. 

- Os homens andam nus, usando apenas uma casca de árvore em volta da cintura, onde amarram o pênis. Já as mulheres usam uma saia feita de algodão tingido, provavelmente tecido e fiado por elas - afirma Meirelles. 

O sertanista conta, ainda, ter conhecimento desses índios desde 1989 e que eles transitam na fronteira entre Brasil e Peru. Há também indicações de que eles têm o hábito de se mudar num raio de até 10km de tempos em tempos. 

'Carecas-cabeludos de pés grandes'

No voo que fez com o fotógrafo Ricardo Stuckert, no final de 2016, Meirellies diz ter percebido que eles têm pés grandes também, além do corte de cabelo diferenciado. 

- Essa informação de que os homens têm cortes de cabelo diferentes é muito relevante. Mostra claramente que eles pertencem a uma etnia que ainda desconhecemos. 

Meirelles participou de várias situações nas quais pôde registrar a presença de índios isolados nesta área do rio Envira. Na mais marcante e tensa delas, em 2014, ficou frente a frente a um grupo de isolados, em imagens que correram o mundo. (ASSISTA AO VÍDEO ABAIXO).




- Ali, no terceiro dia de contato, eles já estavam gripados. Foi preciso deixá-los de quarentena por dias, até se curarem, para voltar à aldeia deles. Agimos rápido com apoio médico - conta. Esse mesmo grupo, 10 anos antes, tinha flechado Meirelles no rosto durante uma emboscada na mata enquanto saía para pescar. 

Confira os principais trechos da entrevista: 

Qual o risco de um contato desse tipo em meio à pandemia?

Nessa altura do campeonato eu não estou nem preocupado com a Covid. Se esses índios estiveram na aldeia, dormiram lá, apareceu um monte de gente, pegaram roupa, comeram macaxeira, eu tenho 99,9% de certeza que eles pegaram uma gripe. Como já faz uns dez dias, se isso ocorreu, já deve ter um monte de gente morta na aldeia. 

O que fazer em uma situação dessas?

Isso é um problema seríssimo. Eu não sei o que a Funai vai fazer em relação a isso, pois ali é uma região de difícil acesso, eles vivem no centro da mata, esses índios não vivem na beira de rio. Eles vivem onde começa o enrugamento da Cordilheira dos Andes. Numa situação dessas, não tem que colocar um servidor da Funai numa canoa velha para subir. Tinha que ter acionado um helicóptero para que essa tal equipe que está indo para lá não fique presa na seca dos rios, em pleno verão amazônico. É um trabalho delicado, qualquer mal-entendido, qualquer atitude mal pensada pode levar ao desastre, até porque uma guerra pode estar em curso por lá... 

Como assim guerra?

Se essa hipótese da qual estou falando se confirmar e começar a morrer gente, o que os índios isolados vão pensar? Aqueles malditos índios que visitamos botaram feitiço na gente pra matar. E daí sabe o que vai acontecer? Os homens que não estiverem doentes vão voltar lá e flechar os madiha que deram roupas contaminadas por "feitiço”, no entendiimento deles. Então, além da gripe e da mortandade, a gente vai assistir a uma guerra. Olha o tamanho da encrenca.


Indígenas e a Pandemia de Covid-19 no Brasil

 

Indígena Yanomami usa uma máscara enquanto aguarda para fazer teste de Covid-19 em um pelotão especial de fronteira, na terra indígena de Surucucu, em Alto Alegre, Roraima Foto - ADRIANO MACHADO / REUTERS

 

A assistente de enfermagem indígena Witoto, Vanda Ortega, 32 anos, cuida de um paciente durante uma visita ao Parque das Tribos, comunidade indígena nos subúrbios de Manaus, no Amazonas. Ortega vai de casa em casa equipada com luvas, um jaleco de proteção e uma máscara na qual se lê “Vidas indígenas importam”; mensagem inspirada no slogan “Black Lives Matter”; de militantes negros nos EUA Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

Soldado do Exército distribui máscaras faciais a membros da etnia Yanomami na terra indígena de Surucucu, em Alto Alegre, Roraima Foto - NELSON ALMEIDA / AFP

 

Equipe médica das Forças Armadas realiza um teste rápido para Covid-19 em um indígena na base do pelotão especial de fronteira, em Alto Alegre Foto - NELSON ALMEIDA / AFP

 

Enfermeiras indígenas da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) da etnia Arapiuns e da etnia Tapuia realizam um teste rápido para COVID-19 no chefe Domingos, da tribo Arapium, nas margens do baixo rio Tapajós, no município de Santarém, oeste do Pará Foto - TARSO SARRAF / AFP

 

A técnica de enfermagem indígena Kambeba, Neurilene Cruz, 36 anos, realiza testes para COVID-19 às margens do rio Negro, na aldeia Três Unidos, estado do Amazonas. Foto - BRUNO KELLY / REUTERS

 

Indígenas Sateré Mawé preparam ervas medicinais para tratar pessoas com sintomas da COVID-19 na comunidade Wakiru, no bairro de Tarumã, uma área rural a oeste de Manaus. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

O líder indígena André Sateré, 38 anos, coleta ervas medicinais como carapanaúba, caferana e sara tudo, todas nativas da floresta amazônica, para tratar pessoas que apresentam sintomas do novo coronavírus. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

O líder indígena Valdiney Sateré, 43 anos, colhe caferana, planta nativa da floresta amazônica usada como erva medicinal para tratar pessoas com a COVID-19 em sua comunidade. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

Javier Alexandre Andres Cruz, 26 anos, um indígena Tikuna contaminado com a COVID-19, é atendido em uma ambulância depois de chegar de jato da UTI de Tabatinga a Manaus. Foto - BRUNO KELLY / REUTERS

 

Indígenas sateré-mawé usam um smartphone para entrar em contato com um médico no estado de São Paulo para receber orientação em meio à pandemia de coronavírus, na comunidade Sahu-Ape, a 80 km de Manaus. Lar da maioria dos povos indígenas do país, o Amazonas é uma das regiões que foram mais afetadas pela pandemia. Foto - RICARDO OLIVEIRA / AFP

 

Indígenas participam do funeral do chefe Messias Kokama, 53, do Parque das Tribos, que morreu pelo novo coronavírus, em Manaus. Foto - BRUNO KELLY / REUTERS

 

O chefe Leno, da tribo Kunaruara, faz um remédio natural com infusão de mel, em sua aldeia, ao lado do rio Tapajós, no município de Santarém. Foto - TARSO SARRAF / AFP

 

Funcionário da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) verifica a temperatura dos membros da etnia Tikuna, em Lago Grande, Amazonas. Foto - AFP

 

Alguns índios da aldeia disseram que estão com sintomas de gripe...

Os kulina madiha ficam distante uns quatro ou cinco dias de canoa do município de Feijó. Trocaram muitas peças com a cidade, certamente tem muito vírus da gripe entre eles. Eu me lembro do contato que fizemos com os isolados em 2014, que chegaram na aldeia mexendo em tudo. No terceiro dia, eles já estavam gripados. Se não fosse o Dr. Douglas (o médico sanitarista Douglas Rodrigues, que trabalha no Xingu) vir de São Paulo para me ajudar, teria ficado ruim. E olha que eram apenas sete índios, mas a gente conseguiu tratar. Lá, nessa localidade de agora deve ter uns 400 índios. 

Já havia registro desses índios isolados nessa região?

É um grupo grande. Não tem só uma aldeia. São várias aldeias, cinco, seis, sei lá. Provavelmente tem umas 400 pessoas, vamos dizer assim. Pelas características do cabelo comprido, testa raspada... é o único grupo isolado que ainda tem por lá, nessa área. Captamos imagens deles em dois sobrevoos, um quando estava na Funai, em 2008, e outro em 2016, quando estava acompanhado do fotógrafo Ricardo Stuckert. Eles atiraram muitas flechas contra o helicóptero e as imagens correram o mundo pela BBC. 

O cacique me disse que não entendeu bem a fala deles...

Por conta das fotos, do tipo de roçado e das festas deles, eu desconfio que fazem parte de grupos identificados como pano. Madiha (Kulina) é outro tronco linguístico, eles não entenderiam mesmo, apenas algumas palavras podem ser semelhantes. 

Como o senhor vê as ações do governo no combate à Covid-19 nas aldeias?

Com muita tristeza. Pode ter certeza que deve ter alguém no governo Bolsonaro que está achando tudo isso ótimo.

 

O Globo

Daniel Biasetto

17 de agosto de 2020 às 20:51

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