Coronavírus e
Invasores
A Situação dos
Indígenas no Brasil
Precariamente assistidas pelo governo e pressionadas pela
crescente onda de invasões em seus territórios, as comunidades indígenas
enfrentam quase sozinhas o avanço da pandemia do coronavírus nas aldeias. Até o
final de segunda-feira (13), o vírus já havia matado três indígenas — um
adolescente Yanomami, de 15 anos, em Roraima, uma idosa Borari, de 87 anos, em
Alter do Chão, no Pará, e um homem da etnia Mura, de 55 anos, em Manaus — e
contagiado nove pessoas no total. Outros 23 casos estão sendo tratados como
suspeitos e 31 foram descartados, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde
(MS).
“A melhor forma de prevenir agora é manter as comunidades isoladas
e orientar que não saiam e nem recebam visitas. Temos um histórico muito
perverso de doenças contagiosas, que dizimaram etnias inteiras no passado.
Todos estão assustados”, diz Sônia Guajajara, coordenadora executiva da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A preocupação maior das
entidades, segundo ela, é se prevenir contra a fase mais dura do contágio, que
ameaça as comunidades indígenas, proporcionalmente, na mesma projeção de avanço
às cidades.
Longe da briga travada entre o presidente Jair Bolsonaro e o
ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, as comunidades indígenas da Amazônia
contam basicamente com o trabalho de suas lideranças comunitárias, das
entidades indigenistas e profissionais de saúde, que travam uma guerra quase
solitária contra o vírus. “Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual),
vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que
apresentam sintomas de contaminação”, diz Sônia Guajajara.
“Faltam EPIs
(Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para
testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”,
relata Sônia Guajajara.
Há duas semanas ela vinha pressionando a Secretaria Especial de
Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, pela antecipação da campanha de
vacinação contra H1N1 nas aldeias, prevista para o final de abril, e para que
se adote como critério a possibilidade de contágio comunitário, uma vez que em
muitas regiões, além da miscigenação, há forte interação entre aldeias e
cidades. Nesta segunda (13), o secretário nacional de Saúde Indígena, Robson
Santos Silva anunciou que a vacinação começará na próxima quinta-feira, com a
distribuição de 750 mil vacinas para comunidades indígenas de todo país.
Os profissionais de saúde estão coletando amostras de material
para análise laboratorial de pessoas que apresentem sinais da Covid-19 e que
tenham viajado. Os demais são avaliados pelos sintomas e medicados como gripe.
Mas não têm, segundo Sônia Guajajara, os prometidos kits para testagem rápida.
“Não é gripezinha. É uma doença altamente letal e com risco maior aos
indígenas”, diz a coordenadora da APIB.
O vaivém descontrolado de pessoas nos garimpos ilegais, segundo as
entidades indigenistas ouvidas pela Agência Pública, é atualmente o grande
desafio dos profissionais de saúde e das lideranças que lutam para evitar o
contato. “Exigimos que os órgãos de segurança tirem os invasores das terras
indígenas. O risco de contágio é iminente”, diz Sônia. APIB e CIMI sustentam
que no vácuo deixado pela ausência da Funai, Agência Nacional de Mineração
(ANM) e da redução dos controles pela Polícia Federal e Exército, os garimpos
ilegais, grilagem de terras e exploração ilegal de madeira estão aumentando na
Amazônia. Lideranças dos Karipuna, em Rondônia, alertaram entidades
indigenistas sobre invasores limpando áreas a 10 quilômetros da Aldeia Panorama
para extrair madeira. Levantamento do jornal O Estado de São Paulo, com base em
informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), aponta que as
áreas desmatadas praticamente dobraram na Amazônia, saltando de 2.649
quilômetros quadrados, para 5.076 quilômetros quadrados.
O ritmo do avanço da mineração ilegal é igualmente preocupante.
“Só nas terras dos Yanomami já são mais de 30 mil garimpeiros”, disse o
coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Antônio Eduardo
Oliveira. Até o final do ano passado, a estimativa era de 20 mil garimpeiros. Oliveira
afirma que a crise sanitária fragilizou ainda mais os controles e abriu brechas
para a ação dos invasores. Segundo ele, a SESAI, que já havia afastado seus
agentes das áreas de conflito com restrição a viagens imposta pela Funai, não
tem plano de emergência preventivo ou de contenção caso a doença avance sobre
as comunidades indígenas.
Antônio
Eduardo Oliveira é coordenador do Cimi
Robson Santos Silva, o secretário de Saúde Indígena, disse à
Pública que a SESAI estruturou seu plano de ação para acompanhar a evolução da
doença. “O plano é móvel e pode ser modificado a cada etapa”, disse ele. Num
vídeo divulgado pelo site da SESAI, Silva alertou que nesta semana começa a
fase mais complicada. “Estamos entrando na pior etapa, que é essa que se inicia
agora. O vírus tende a se expandir”, disse ele, apelando para que os indígenas
permaneçam isolados e em suas comunidades. A SESAI, segundo ele, cuida da saúde
básica em distritos indígenas, enquanto o SUS atenderá a todos, incluindo os
casos mais graves de indígenas infectados. O secretário disse que não quer
acusar os hospitais, mas afirma que os três indígenas que faleceram não
deixaram suas aldeias com sintomas do coronavírus.
“Desde o início da crise estamos cobrando a ação do governo, mas
não há até agora qualquer resposta. Com o sucateamento da Funai os riscos
aumentaram”, afirma Oliveira. O CIMI pediu que seus 200 funcionários envolvidos
com assistência aos índios saíssem de aldeias e passassem a monitorar à
distância a situação. Sônia Guajajara afirma que a Funai foi desmontada e
reaparelhada para atender ruralistas e mineradoras, estimuladas pela política
do governo Bolsonaro de incentivos às atividades econômicas em terras
indígenas. O ministro da Justiça e da Segurança, Sergio Moro, a quem a Funai é subordinada,
segundo ela, se comporta como quem ignora completamente os riscos do
coronavírus. “Ele não fala nada”, cutuca.
Na última segunda (13), Moro quebrou o silêncio. Disse que o
contágio que resultou nas três mortes ocorreu fora das aldeias e que as ações
do MJ começaram pelo isolamento nas comunidades. Segundo ele, visitações a
comunidades só em casos excepcionais, para levar suporte. As invasões, que
chamou de intromissão, Moro disse tratar-se de um desafio aos órgãos de
controle.
Há duas semanas a APIB, com a ajuda do Ministério Público Federal,
conseguiu derrubar parte de uma portaria do presidente da Funai, Marcelo
Xavier, que permitia às coordenações regionais fazer contato com índios
isolados, tarefa complexa e delicada, executada por um departamento específico
da autarquia. Em tempos de pandemia o contato com gente despreparada, alerta
Sônia, representaria um alto risco porque índios isolados não têm defesas no
organismo nem contra os vírus mais comuns.
Também o Ministério Público Federal recomendou ações emergenciais
de proteção à saúde dos povos indígenas e citou “cenário de risco de genocídio”
sem as ações recomendadas.
Coordenador do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), Enoque
Taurepang afirma que a movimentação de garimpeiros e dos empresários que os
financiam, está gerando um cenário de alto risco para os Yanomami, que já
apresentam sérios problemas de saúde em decorrência do derrame de mercúrio em
rios e córregos na extração de ouro.
Na avaliação
de Sônia Guajajara, o ministro Sergio Moro tem ignorado completamente os riscos
do coronavírus
“Infelizmente a situação do garimpo nos Yanomami é incontrolável.
Tem empresários de outros estados dentro das áreas. A gente chega lá e fala que
é proibido, mas eles não obedecem, não conhecem a palavra não. Eles mudam o
nome da invasão: dizem que é trabalho e não atendem”, conta Taurepang, que tem
usado as redes sociais para orientar as 245 comunidades indígenas de Roraima
filiadas ao CIR.
Como as atividades do Exército na região também estão funcionando
precariamente em decorrência da crise sanitária, segundo ele, os empresários de
garimpo intensificaram as invasões certos de que não sofrerão represálias. A
última ação conjunta da Polícia Federal e Exército para desalojar garimpeiros
ocorreu no dia 13 de março, na comunidade de Napoleão, da etnia Macuxi, na TI
Raposa Serra do Sol. Os dois órgãos desmontaram um garimpo em construção,
prenderam o empresário que financiava a atividade e quatro indígenas.
“Hoje já não conhecemos mais nem as rotas que estão sendo usadas
pelos garimpos ilegais. Estão entrando sem a preocupação de ter o exército no
encalço deles. A gente não pode fazer muita coisa e nem sabe direito o que está
acontecendo nos garimpos nesse momento. Uma coisa é a comunidade lutar contra
as invasões e outra situação é ter um presidente que faz com que essas
atividades aconteçam dentro das nossas terras. Um presidente que em toda
oportunidade fala de exploração mineral”, critica o dirigente.
Ele diz que a lei não funciona nos garimpos ilegais: “Lutamos
contra o Estado, contra essa doença e não sabemos até quando podemos segurar
todos esses ataques. Se fosse pela lei indígena daria para dar um jeito. Mas
somos subordinados a um Estado, a lei e a Constituição, que só funciona para
beneficiar os empresários nesse governo. Não podemos fazer muita coisa”.
Ele diz que a ausência de órgãos de órgãos do Estado e a falta de
equipamentos básicos nos postos de atendimento para os profissionais de saúde —
como luvas, máscaras e álcool em gel e de remédios — estão levando medo de
contágio aos índios e às lideranças que fazem a mediação entre sedes de vilas e
aldeias.
Ontem, o jornal O Estado de São Paulo informou que há duas semanas
a Funai recebeu mais 11 milhões de recursos emergenciais para usar na proteção
indígena mas não gastou nenhum centavo.
O coordenador de saúde indígena da região Leste de Roraima,
Adriano Corinthia, afirma que há uma atenção especial com a entrada de
venezuelanos e com o controle do fluxo entre as aldeias, vilas e cidades, mas
que o atendimento é o de rotina, sem material que permita fazer o teste de
coronavírus. “Temos uma reserva mínima de materiais para os profissionais de
saúde e medicamentos (apenas) para tratamento sintomatológico caso surja algum
caso”, disse o enfermeiro Manoel Avelino, que trabalha com os Yanomami. Para
suprir a carência de material, o governo federal enviou ao Estado peças
ilustrativas de campanha com informações recomendadas pelo MS. Segundo ele, os
garimpos ilegais são áreas de risco de contágio.
No ano passado, a insegurança na região levou o CIR a organizar
grupos de vigilância, proteção e monitoramento, os chamados guardiões, para
garantir o controle dos territórios indígenas contra invasões. Com a maior
população indígena do país, estimada em 55 mil pessoas distribuídas em 413
comunidades em 32 TIs já demarcadas, o equivalente a 46,2% de sua superfície,
Roraima é um dos pontos mais assediados do país por empresários de mineração,
que investem pesado em garimpos ilegais.
O cenário gerado pela pandemia do coronavírus, diz ele, aumentou a
tensão na região. “A situação é complicada. Temos problemas de imigração,
garimpos ilegais e agora a evasão de pessoas que estão saindo das cidades, das
sedes das vilas e indo para as aldeias e áreas rurais em busca de refúgio. A
gente trabalha com os grupos de vigilância no controle do nosso território. Mas
essas pessoas, por si só, sem equipamentos não podem fazer esse trabalho porque
é também expor a vida delas ao risco de pegar essa doença”, alerta o
coordenador do CIR.
Enoque Taurepang assumiu o comando do CIR no ano passado. É líder
da etnia na Comunidade Araçá, no município de Amajari, na fronteira com a
Venezuela, onde 53,8% da população, estimada em 11.560 pessoas em 2017 pelo
IBGE, é indígena. Na vila indígena vivem entre 1.800 a 2 mil pessoas que,
segundo ele, se já sofriam com o fluxo migratório de quem chega ao Brasil pela
BR-174, nos últimos dias vivem assombradas com os riscos de contágio do
coronavírus. Mais a Leste, na TI Raposa Serra do Sol, a miscigenação é um dos
fatores preocupantes. Os três municípios da TI têm população predominantemente
indígena, com 88,1% em Uiramutã, 56,9 % em Normandia, na fronteira com a Guiana
Inglesa, e 55,4% em Pacaraima, fronteira com a Venezuela. Roraima é o estado
com maior proporção de indígenas, com 11% de uma população calculada em 450,4
mil pessoas em 2010, o que explica a forte presença das etnias nas cidades,
inclusive na capital, Boa Vista. Segundo o Censo de 2010, 8.500 dos 450 mil habitantes
da capital se declararam indígenas — os que vivem nas cidades não são atendidos
pela SESAI, mas recebem, como a população em geral, o tratamento do SUS.
O plano de contenção das entidades como o CIR é controlar o
retorno de índios de diferentes etnias que vivem nas cidades e, diante do medo
do contágio, estão buscando refúgio nas áreas rurais. “Nosso principal objetivo
para esse momento é fazer barreiras nas entradas de acesso para que tanto a
população não indígena não entre, quanto para que os parentes não saiam. Se for
necessário buscar algum gênero para dar suporte à família, que seja de forma
organizada. A gente está fazendo o que pode, parando totalmente a vida da
comunidade para combater o vírus e sobreviver dentro de nossos territórios”, afirma
Enoque. Ele lembra, no entanto, que é difícil convencer um pai de família a
ficar em isolamento, quando ele precisa sair para caçar e pescar. “Não tem como
pedir que os pais fiquem 24h dentro de casa, uma vez que eles não têm um ganho,
um salário ou apoio”.
Enoque conta que tem acompanhado diariamente os balanços feitos
pelo comitê gestor do coronavírus e as medidas anunciadas pelo Ministério de
Saúde, mas sente que não há nada claro sobre como lidar com as comunidades
indígenas que, além de biologicamente mais frágeis aos vírus influenza, já
enfrentavam o abandono dos órgãos estatais e a forte investida de grileiros e
garimpeiros.
O coordenador do CIR afirma que as comunidades estão lutando
sozinhas para enfrentar um provável avanço do vírus. “É necessário que o
governo e as instituições competentes venham nos ajudar. Precisamos dos
materiais básicos para prevenir e combater a doença caso ela chegue às
comunidades. Mas parece que as comunidades não existem, vivem em outro mundo.
Não há até hoje nenhuma política ou programa emergencial para cuidar da nossa
gente, que é mais vulnerável e luta sozinha aqui na ponta”.
Nos últimos dias o CIR fez chegar às comunidades por aplicativos
de celular, rádio ou telefone, mensagens suspendendo reuniões ou festejos que
exijam aglomerações. “De nossa parte a estratégia é usar as redes sociais e
tudo o que for possível em comunicação para manter nosso povo informado sobre
tudo o que está acontecendo. Alertamos para que levem a sério e se previnam. É
o que podemos fazer”, diz.
No congresso, a tentativa de aprovar medidas “urgentíssimas”
A deputada
federal Joenia Wapichana (Rede-RR) coordena a Frente Parlamentar Mista em
Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas
No Congresso, a reação indígena ao coronavírus é capitaneada pela
deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar Mista
em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. “Há uma preocupação a mais quanto
ao aumento das invasões das terras indígenas, principalmente em áreas que já
têm histórico de invasão. Esse período de crise sanitária em nenhum momento fez
frear as invasões dentro das terras indígenas, que buscam a exploração dos
recursos naturais”, disse a parlamentar em entrevista online a jornalistas na
última quinta-feira (9).
Joenia também afirma que os povos indígenas têm agido rápido e com
firmeza para impedir que a Covid-19 se alastre nas aldeias. “As comunidades têm
feito um trabalho incansável de alertar a sua própria população a não ir ao
centros urbanos, adotando medidas de isolamento para que não haja a entrada de
pessoas estranhas, esforços justamente para proteger a coletividade”, declarou.
Diante disso, há uma preocupação com a segurança alimentar: estão
sendo discutidas maneiras para que a distribuição de cestas básicas não seja
prejudicada, já que servidores de órgãos como a Funai, vindos de fora das
aldeias, são quem realiza a entrega dos suprimentos. Ontem (13), a ministra da
Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves anunciou que a pasta entregará
323 mil cestas de alimentos a 161 famílias indígenas e quilombolas com ajuda da
Funai e Fundação Palmares.
No Parlamento, Joenia tem contado com aliados no trabalho de
contenção ao coronavírus entre os povos tradicionais. No fim de março, ela apresentou
uma Proposta de Fiscalização e Controle (PFC) para monitorar a atuação da Sesai
e do Ministério da Saúde no enfrentamento da pandemia entre a população
indígena – a ideia é acompanhar os processos administrativos e verificar
eventuais omissões dos dois órgãos.
Junto a outros parlamentares, a deputada também propôs um Projeto
de Lei (PL) que obriga a União a liberar ao Subsistema de Saúde Indígena
recursos adicionais, não previstos nos Planos de Saúde dos DSEIs, em caso de
pandemia, emergência e calamidade em saúde pública. Essa e outras propostas
recentes sobre direitos indígenas devem ser apensadas a outro PL, que determina
a adoção de medidas “urgentíssimas” de ajuda às comunidades enquanto durar o
decreto de calamidade pública. Estão entre as ações o pagamento de auxílio
emergencial no valor de um salário mínimo a indígenas de todo o país, reforço
na proteção territorial e incremento da estrutura de saúde dos estados e
municípios para que possam comportar o tratamento de indígenas cujos casos demandam
internação.
Vasconcelo Quadros, Anna Beatriz Anjos
14 de abril de 2020 às 12:00hs
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