“É preciso adiar o fim do mundo para
contar mais história”
“Parece que
eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra,
envoltos na terra”, escreve o líder indígena Ailton Krenak em seu “Ideias para
Adiar o Fim do Mundo” (Companhia das Letras, 2019).
Ailton Krenak
durante mesa "Vaza-Barris" com Zé Celso e mediação de Camila Mota
- Mathilde Missioneiro/Folhapress
“Eles” não é só o povo de sua etnia, os
krenak, indígenas de Minas Gerais, mas o que é visto como uma “sub-humanidade:
os caiçaras, índios, aborígenes que ficaram esquecidos nas bordas do planeta,
nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América
Latina, que são os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados
nessa terra.”
Uma das mais proeminentes lideranças indígenas
do país, Ailton Krenak está pop: convidado da Flip (Festa Literária
Internacional de Paraty), passa o dia em bateria de entrevistas e é parado
na rua por pedidos de fotos. “Quase que arrependi de ter vindo, não consigo nem
dormir”, brinca.
É preciso adiar o fim do mundo, conclui o
livro de Ailton, para “sempre poder contar mais uma história.”
E que indígenas tem contado histórias?
Ailton nem precisa pensar para responder, tem
na manga uma lista de escritores que os brancos deveriam prestar mais atenção:
Daniel Munduruku, Cristino Wapichana, Olívio Jekupé, Tiago Hakiy, Eliane
Potiguara, Marcia Kambeba —” a marca das mulheres é a denúncia do genocídio. É
como se o sentimento as atingisse mais”, diz.
Quarto dia de Flip
tem mesa com cordelista Jarid Arraes e Ney Matogrosso
“Depois
de terem passado muito tempo lutando por demarcar a terra, os povos indígenas
resolveram demarcar a tela”, diz ele, que cita também os cineastas Alberto
Alvares e o kaxinawá Zezinho Yubê como alguns dos realizadores a se prestar
atenção.
“Ideias para Adiar o Fim do Mundo” é um
compilado de duas palestras e uma entrevista que o Ailton deu entre 2017 e 2019
em Portugal, “lugar que evitei visitar durante 50 anos”, ele conta à Folha.
“Quando teve a celebração dos 500 anos das
viagens dos portugueses pelo mundo afora, fizeram um evento, me convidaram e eu
não fui. Achei que era uma festa portuguesa, e ainda por cima ia celebrar a
invasão do meu mundo, então eu não ia fazer coro com essa turma.”
Mas “com o tempo, a gente vai ficando mais
tolerante a algumas coisas que não suporta na juventude”, afirma.
Em Paraty, participou de mesa
com o diretor de teatro Zé Celso —que abriu agitando um chocalho, num
ritual conhecido por Teru Ande entre os krenak, de invocação dos espíritos
marét— e deu autógrafos.
Na outra ponta, outros
indígenas são vistos aos montes vendendo artesanato sentados nas ruas
da cidade histórica —há povos guarani e pataxó na região.
“O povo indígena continua sem ter um lugar, e
esse lugar tem que ser buscado a cada dia, como uma reinvenção do mundo. O
lugar dos índios na Flip [como convidado] é um lugar simbólico. Ele não muda
nada”, diz Ailton.
“Quem ainda demarca os territórios são os
brancos, em Paraty é a mesma coisa. A cidade é celebrada pela sua
colonialidade. Se isso fosse só na arquitetura, estava bem composto. A questão
é que isso está também na cultura. Nós estamos imersos no colonialismo até o
pescoço.”
Florestania
Se a violência do Estado tira o direito de povos
tradicionais à cidadania, nas palavras de Ailton, é preciso pensar em uma coisa
nova. “Uma outra experiência que chamamos de ‘florestania’: construir espaços
de convivência, criação e reprodução da cultura em termos de povos que vivem
mais na natureza, na floresta.”
É o embate entre natureza e cidade a principal
marca de diferença entre povos, nas palavras do líder indígena. “Não de raça ou
de cor, nada disso, mas uma compreensão do que é que importa para viver: um rio
com água limpa, a terra com saúde.”
Os krenak vivem na
margem esquerda do rio Doce (Watu, na língua deles), que foi inundado em 2015
por um mar de
lama de rejeito de mineração da Samarco.
“As comunidades que vivem à beira do rio têm
que ser abastecidas por caminhão pipa, têm que receber suprimentos de fora
porque não conseguem produzir seu próprio alimento, e estão em estado de
refugiados em seu próprio território. Essa é a situação dos krenak.”
Não poluir um rio inteiro é uma boa ideia para
adiar o fim do mundo, diz.(Krenak é a junção de dois termos na língua dos borun: kre, cabeça, e nak, terra)
Thiago
Amâncio, 13 de
julho de 2019 às 12:20
Texto originalmente publicado pela Folha de São Paulo sob o título "'É preciso adiar o fim do mundo para contar mais história', diz autor indígena"
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