Evangelizar
indígenas viola os direitos humanos?
Guilherme
de Carvalho
Cena
do filme “A Missão”, de Roland Joffé. | Foto: Reprodução
Causou
comoção a recente nomeação de Ricardo Lopes Dias, em 5 de fevereiro, para o
cargo de Coordenação de Proteção a Índios Isolados e de Recente Contato na
Funai. Moções de indignação se espalharam pela imprensa, com entrevistas
ferinas de intelectuais do campo das humanidades, especialmente antropólogos e
indigenistas, denunciando mais um ato de genocídio contra os indígenas
brasileiros. Rapidamente o Ministério Público Federal, sempre pronto a investir
com galhardia contra o dragão da influência religiosa no mundo público, agiu em
relação ao fato entrando com ação liminar em 11 de fevereiro para reverter a
nomeação de Lopes Dias, alegando “conflito de interesse”. Como se o laicismo
militante que possuiu o corpo do MPF não o colocasse, nesse caso, em frontal
conflito de interesse contra 90% da população que ele pretende defender.
Diante
dessa articulação do MP, a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos
(Anajure) se movimentou para solicitar participação no processo como amicus
curiae, solicitação negada no último dia 18 pela juíza Ivani Silva da Luz,
da 6.a Vara Federal do Distrito Federal, de modo estranho e inexplicado.
Em
todo o caso, a liminar do MP foi indeferida. Segundo a juíza, não é possível
afirmar de antemão e em tese que a mera nomeação represente conflito de
interesses com a política indigenista do Estado, nem violação da Constituição,
nem conflito com os sistemas de direitos humanos, nem desvio de finalidade. De
modo que, por ora, Lopes Dias fica no cargo.
O
caso certamente seguirá por algum tempo, mas nosso assunto não é exatamente
esse – se o nomeado é ou não a pessoa mais indicada para o cargo –, mas a questão
de fundo que se ergueu: evangelizar indígenas é uma violação? Ou, mais
amplamente: a prática da evangelização e do proselitismo religioso é algo
criminoso, ou contrário aos direitos humanos, ou manifestação de intolerância
religiosa, ou um gesto de violência cultural, ou coisa antiética?
É
crime?
Em
matéria de 13 de fevereiro de 2020 do site The Intercept, intitulada
“Pastor assume cargo na Funai para converter índios”, foi alegado exatamente
isso: que a evangelização de indígenas seria vedada pela Constituição: “O
artigo 231 da Constituição Federal proíbe a evangelização dos indígenas”.
Já
que, lendo com boa fé, a maior parte das pessoas inocentemente acreditará no
probo veículo de imprensa, será proveitoso citá-lo diretamente: “Artigo 231.
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os
seus bens”.
A
liberdade de religião ou crença não é uma liberdade meramente “privada”, ou
interna à consciência, embora tenha aí seu fundamento.
A
estripulia do panfleto de esquerda não poderia passar despercebida. O fato é
que o mencionado artigo da Constituição Federal não diz absolutamente nada nem
próximo do que é alegado no Intercept. Ele certamente garante a proteção
dos indígenas e de seus modos de vida, mas isso não significa per se uma
vedação ao contato e ao exercício da evangelização, mas de atos que intencionem
a mera destruição de seu modo de vida.
Na
verdade, tudo o que é direito dos indígenas no artigo 231 a respeito do
reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, excetuando-se a seção sobre direito à terra, é uma aplicação
particular do direito que todos os seres humanos têm. E isso nunca foi, nem
jamais será uma vedação ao proselitismo religioso.
É
contrário aos direitos humanos?
É
bastante promovida a tese de que o proselitismo religioso seria um gesto de
intolerância religiosa e uma violação dos direitos humanos. Nada mais falso. Vamos
aos elementos:
“Todo
ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este
direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e
pela observância, em público ou em particular.” (Artigo 18 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, 1948)
1.
Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse
direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de
mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar
sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público
como em privado.
2.
Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade
de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de
crenças.
3.
A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita
unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para
proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou
liberdades das demais pessoas.
4.
Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou
pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias
convicções.” (Artigo 12 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, 1969)
Segundo
o documento fundador do Sistema ONU de Direitos Humanos, e o equivalente em
nosso principal sistema regional, da OEA, a liberdade de religião ou crença não
é uma liberdade meramente “privada”, ou interna à consciência, embora tenha aí
seu fundamento. A religião é, por natureza, uma experiência coletiva,
envolvendo não apenas sentimentos, mas discursos, práticas sociais e instituições.
É
fato que muitas vezes a religião realiza um movimento universalizador ou
“católico” por sua própria natureza. Por essa razão grandes religiões, como o
Judaísmo, o Cristianismo, o Islã e o Hinduísmo, eventualmente associaram-se à
racionalidade filosófica para compor grandes padrões de interpretação da
totalidade da experiência humana e da realidade. Isso se dá por um aspecto,
interno às religiões, que é o desejo pelo bem e pela verdade.
De
modo que, a não ser na imaginação fantástica do indivíduo secularizado e urbano
moderno, o indivíduo “W.E.I.R.D.” segundo a descrição do psicólogo social
Jonathan Haidt (Western, Educated, Industrialized, Rich & Democratic),
a religião não é uma experiência privada. A religião é sempre uma geradora de
mundos simbólicos e de simbiose social e, pelo menos no caso das grandes
crenças, é também uma cosmovisão, uma hipótese de universalidade.
O
que é protegido envolve não apenas a crença, mas a prática, o culto e a
observância, inclusive em público. Ou seja, o direito de manifestar
publicamente a própria religião. Admite-se certamente que, quando tal
manifestação colocar em risco a segurança, a ordem, a saúde ou a moralidade,
pode ser necessário estabelecer limites – seria o caso, por exemplo, de versão wahabita
do Islã, com seu culto ao terrorismo, ou, para dar um exemplo próximo, da
presença de missionários cristãos entre grupos indígenas sem os cuidados
necessários para evitar transmissão de doenças e acesso inadvertido a
substâncias viciantes.
A
Convenção Americana dos Direitos Humanos especifica o direito de “professar e
divulgar a religião”, tanto em público quanto privadamente.
Mas
além disso – e esse ponto é da mais alta importância – é protegido para todas
as pessoas o direito de mudar de religião. Esse ponto exige esclarecimento.
Há,
no campo da religião ou crença, um elemento muito dinâmico e ao mesmo tempo
muito pessoal. A autenticidade religiosa não elimina a conexão coletiva, mas
muitas vezes se põe em choque com ela. Para os ocidentais essa autonomia da consciência
é tida em alta conta, e mesmo indivíduos muito secularizados sabem honrar o
papel de Martinho Lutero e da Reforma protestante para a emergência da
liberdade de consciência.
Ocorre,
no entanto, que tal liberdade religiosa não pode se realizar sem um campo de
pluralidade, sem um “mercado das crenças”. A disponibilização pública dos
diversos discursos e práticas espirituais que acreditem ter contribuições de
valor universal é condição de possibilidade para um verdadeiro exercício da
liberdade religiosa, exatamente como ocorre em qualquer outro campo da
sociedade – nos campos afetivos, acadêmicos, políticos ou econômicos, a lógica
é similar.
Mais
do que isso, a disponibilidade do acesso a diversas crenças religiosas permite
o livre exame e o discernimento crítico, em nome da verdade e do bem.
Sim,
é certo que nem todos empregarão essa acessibilidade da melhor forma possível;
mas isso é o que ocorre com qualquer liberdade. O direito ao devido processo
legal não visa deixar bandidos impunes, mas proteger a todos de injustiças;
similarmente, a disponibilidade das crenças não visa produzir confusão ou
tribalismo, mas crítica e autocrítica, aprendizado mútuo, dúvida ou
fortalecimento da crença, validação ou falseamento de suas pretensões de
universalidade, enfraquecimento de religiosidades moralmente questionáveis e
fortalecimento daquelas que humanizam o ser humano.
E
isso nos leva ao tema mais polêmico de todos: a Convenção Americana dos
Direitos Humanos especifica o direito de “professar e divulgar a religião”,
tanto em público quanto privadamente. Esse direito, corretamente entendido, não
é uma negação, mas uma ampliação e uma garantia fundamental para as liberdades
pessoais.
O
que temos aqui é nada menos que o sagrado direito ao proselitismo religioso. Um
direito que protege não apenas a liberdade de todos, mas também a liberdade do
discurso de fé, e a possibilidade de procurar e encontrar a verdade suprema
sobre a realidade. E – por que não? – a liberdade do descrente de contar a
todos sobre a sua descrença.
Ora,
indígenas não são menos que pessoas humanas, sujeitos de direitos humanos como
todas as outras. E aqui precisamos lembrar a Declaração e Programa de Ação de
Viena, resultantes da grande e histórica Convenção dos Direitos Humanos de
Viena, em junho de 1993. Essa convenção estabeleceu os princípios da
Universalidade, Interdependência e Indivisibilidade dos Direitos Humanos.
O
ponto dessa afirmação foi deixar claro que não se pode defender, por exemplo,
as liberdades civis fundamentais, ou direitos de primeira geração, e preterir
os direitos sociais, econômicos e culturais, ou direitos de segunda geração.
Mas
levanto aqui o óbvio: como falar no “direito de autodeterminação dos povos” e
na “dignidade humana” do indígena, para em seguida negar o direito à vida, ou o
direito à propriedade, ou o direito à liberdade de religião ou crença? Como
aplicar a eles alguns direitos e arbitrariamente vedar-lhes o acesso ao debate
religioso e filosófico sobre a Verdade suprema? Isso não faz absolutamente
nenhum sentido, e constitui um desvio da linguagem universal dos direitos
humanos.
Indígenas
são participantes do mesmo universo moral, com os mesmos direitos e, como é
inevitável, os mesmos deveres
O
que poderia ser apenas inferido é explicitamente afirmado na Declaração das
Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. Essa declaração,
que procura reconhecer ao máximo possível a autodeterminação e a capacidade
desses povos de manter sua coesão interna e identidade em face à sociedade
moderna, é aberta em seu Artigo 1 afirmando que:
“Os
indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das
Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito
internacional dos direitos humanos.”
Eles
são contados, portanto, como participantes do mesmo universo moral, com os
mesmos direitos e, como é inevitável, os mesmos deveres. Declaração similar se
encontra na Declaração Americana dos Direitos de Povos Indígenas, de 2016, em
seu artigo V.
A
declaração também garante o direito a não sofrer assimilação forçada ou
destruição de sua cultura, sendo os Estados obrigados a prevenir atos que
privem povos indígenas de sua integridade e identidade de seus valores
culturais (artigo 8). Por paridade: assim como um Estado nacional pode exigir
de imigrantes o reconhecimento e o respeito aos valores nacionais, mas sem
tiranizar sua identidade cultural, os Estados devem garantir o direito dos
indígenas à sua identidade.
Igualmente,
a Declaração Americana (no artigo XVI) garante a proteção à espiritualidade
indígena, ao direito desses povos de não sofrer pressões, imposições ou medidas
coercivas que limitem suas crenças e símbolos religiosos, e a medidas estatais
para garantir que sua vida religiosa seja respeitada e preservada.
Mas
nada disso implica a obrigação de assepsia ou de isolamento cultural. Assim
como a liberdade de religião ou crença inclui a liberdade de mudar de religião,
os direitos dos povos indígenas lhes garantem o direito de manter seus valores,
e não a vedação ao contato e à troca cultural. O texto da declaração deixa
implícito, inclusive, a necessidade de garantir a participação dos indígenas no
sistema internacional de direitos e seu protagonismo político nos Estados dos
quais fazem parte.
Mais
do que isso, podemos dizer que a tentativa de vedar arbitrariamente o contato
cultural constitui, por si só, uma verdadeira violação dos direitos humanos dos
indígenas, segundo o artigo 16 da Declaração de 2007:
1.
Os povos indígenas têm o direito de estabelecer seus próprios meios de
informação, em seus próprios idiomas, e de ter acesso a todos os demais meios
de informação não indígenas, sem qualquer discriminação.
2.
Os Estados adotarão medidas eficazes para assegurar que os meios de informação
públicos reflitam adequadamente a diversidade cultural indígena. Os Estados,
sem prejuízo da obrigação de assegurar plenamente a liberdade de expressão,
deverão incentivar os meios de comunicação privados a refletirem adequadamente
a diversidade cultural indígena.
A
mesma declaração garante igualmente o direito de “manter e desenvolver
contatos, relações e cooperação, incluindo atividades de caráter espiritual,
cultural... com outros povos” (artigo 36, inciso 1).
Por
que razão um indígena poderia ser instruído sobre direitos humanos e sobre seus
direitos políticos, mas não sobre outros aspectos de seu entorno cultural? Como
poderão as mulheres e crianças indígenas ter o direito à igualdade de gênero –
um dos grandes valores ocidentais – como se afirma no artigo VII da Declaração
Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, sem apreender os fundamentos
filosóficos e morais históricos desses direitos? Como poderão desfrutar do
“direito ao desenvolvimento” (artigo XXIX) sem algum tipo de síntese entre seus
valores e as noções modernas de desenvolvimento?
“A
tentativa de vedar arbitrariamente o contato cultural constitui, por si só, uma
verdadeira violação dos direitos humanos dos indígenas”
Qual
a inteligibilidade de uma negação aos cristãos do direito de anunciar o Evangelho
aos indígenas, enquanto os valores emancipatórios modernos recebem a permissão
de acesso?
Na
verdade, o Sistema ONU e o Sistema OEA destacam e protegem o que deve ser
protegido: o direito de autodeterminação desses povos, que deverão ver
preservada a sua capacidade de dizer “não” a qualquer proposta de síntese ou
modificação de sua cultura, valores e religião. Mas proteger sua
autodeterminação também significa dar-lhes também a possibilidade de dizer “sim”.
É
intolerância religiosa?
Há
quem alegue que criticar o sagrado do outro seria violência cultural. Muitos
evangélicos, católicos, adeptos de religiões de matriz africana e muçulmanos
têm esse entendimento. A crítica por cristãos aos deuses de religiões
politeístas tem sido frequentemente representada como gesto de intolerância.
Embora
esse seja assunto para outro artigo, quero antecipar a discussão mencionando
que tal compreensão tem sido rejeitada no Sistema Internacional de Direitos
Humanos.
Por
muito tempo a antiga Organização para a Cooperação Islâmica tentou emplacar a
tese de que os Estados da ONU deveriam estabelecer leis antiblasfêmia, com o
propósito de frear discursos “islamofóbicos” e garantir a segurança de todos
(ou seja, não atiçar extremistas islâmicos).
A
Comunidade Europeia e os Estados Unidos, entre outros, recusavam essa política
apontando o fato comprovado de que tais leis eram empregadas em países
islâmicos e outros para perseguir dissidentes religiosos e representantes de
outras religiões.
Precisamos
aprender a respeitar pessoas de todas as religiões, mas isso não significa a
obrigação de respeitar suas divindades, suas concepções de sagrado e suas
moralidades
Com
a “Primavera Árabe”, estabeleceu-se o “Processo de Istanbul” sobre uma base
completamente diferente: estabelecer uma política de defesa da liberdade
religiosa e de combate à discriminação sem o recurso a leis antiblasfêmia. E
isso levou à Resolução 16/18 da Comissão de Direitos Humanos da ONU, ao Plano
de Ação de Rabat e à Resolução 66/167 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em
2011.
O
que foi estabelecido por essas resoluções? Que a dignidade das pessoas de cada
religião, bem como seus lugares de culto e oficiais religiosos devem ser
protegidos da discriminação e da estereotipificação negativa; mas que suas
crenças e instituições não gozam da mesma proteção.
Em
outras palavras: precisamos aprender a respeitar pessoas de todas as religiões,
mas isso não significa a obrigação de respeitar suas divindades, suas
concepções de sagrado e suas moralidades. Guardando-se os limites para evitar o
discurso de ódio e a estereotipificação destrutiva, a crítica ao sagrado do
outro é perfeitamente legítima e não constitui violação de direitos humanos.
Literalmente
– podemos dizer – afirmar que o Deus dos cristãos é uma ilusão ou que é
moralmente questionável, não é per se intolerância nem discurso de ódio. Tudo
depende do contexto. Igualmente, considerar deuses de religiões politeístas
como ficções ou forças demoníacas não é, per se, uma negação da dignidade das
pessoas que creem em tais deuses.
É,
de jure, violência cultural?
Não
podemos ser cínicos aqui; evidentemente toda comunicação cultural implica a
possibilidade de mutação cultural e, eventualmente, de destruição, e o
imperialismo cultural não é uma ficção. E essa é uma preocupação central da
Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas de 2007 e da Declaração
Americana dos Direitos dos Povos Indígenas de 2016.
A
questão é sob qual ângulo se contempla o evento do contato cultural e os
processos de destruição e mutação que ele estabelece.
Na
perspectiva multiculturalista que hoje domina o pensamento antropológico,
segundo a qual, grosso modo, todos os sistemas civilizacionais seriam complexos
simbólicos puramente construídos, incomensuráveis e mutuamente relativos, a
imposição de quaisquer valores ocidentais modernos, por exemplo, sobre uma
cultura tradicional seria um ato de arrogância colonizadora. Ao assumir uma
inexistente e inverificável superioridade cultural, o colonizador comete
violência moral contra povos tradicionais, uma vez que sua identidade e sentido
de dignidade seriam indissociáveis de seus sistemas simbólicos.
Sem
ter a pretensão de solucionar, aqui, um debate imenso e já secular, é preciso
dizer claramente que essa posição é simplesmente insustentável.
Em
primeiro lugar, porque não é possível adotar uma política multiculturalista, e
uma ética de alteridade para fundamentar essa política, sem adotar
imediatamente uma versão de universalismo. No caso, esse tipo particular de
universalismo que já mencionamos: a compreensão historicista do humano, segundo
a qual a cultura seria uma construção simbólica e material autorreferenciada e
incomensurável, e não uma resposta à realidade e um aperfeiçoamento da natureza
humana.
O
caso, no entanto, é que mesmo essa visão é ainda derivada do ideal
renascentista do homem como demiurgo de si mesmo, “Causa Sui”, fonte de
onde brota a compreensão do mundo humano como o “Factum”, aquilo que é
meramente feito e não é natureza, tão fundamental de Hobbes a Foucault. Daí
viria o “Homo Faber” marxiano e, em associação com hipóteses
linguísticas como as de Saussure e Saphir-Wolf, a noção de que culturas seriam
sistemas de significados meramente construídos, autorreferenciais e não realísticos.
O
fato é que o multiculturalismo trai a si mesmo universalizando inevitavelmente
uma visão específica da natureza humana e, como um metafísico de armário,
impondo-a como um antilogos universal. Um antilogos que muitos não ocidentais
não aceitarão jamais, como os muçulmanos persas, por exemplo.
O
problema é que há mil razões para assumir uma visão realista da natureza
humana, da linguagem e da cultura como um sistema estruturado de diálogo com a
realidade, uma realidade que se impõe e que cobra pedágios do sistema cultural,
erguendo-se como régua e juiz independente sobre o seu destino.
Toda
a tese de uma clivagem entre humano e natureza, como se houvesse uma tábula
rasa sob uma multiplicidade de mundos culturais possíveis e incomparáveis, é um
antilogos, irreconciliável com a ciência moderna e com a sabedoria antiga.
Assim,
por exemplo, “tratamentos” de doenças, manejo inadequado de recursos, práticas
reprodutivas e hábitos de guerra, por exemplo, podem destruir uma civilização; culturas
não desabam apenas por tragédias naturais ou por um envelhecimento interno, mas
por sua parcialidade e insuficiência no trato com a realidade. Elas são
objetivamente avaliáveis; juízos de valor podem ser emitidos sobre elas.
Talvez
alguns exemplos de práticas culturais moralmente reprováveis no Oriente, na
Europa e nas Américas nos ajudem a esclarecer o ponto.
No
século 19 era ainda comum o Sati, a prática da queima de viúvas vivas,
com os corpos em bens de seus maridos, na Índia. Apenas no registro oficial,
foram mais de 8 mil casos entre 1813 e 1828. Essa prática abominável era um
aspecto da cultura local que expressava tanto crenças religiosas quanto um
sistema de valoração e uma teoria de bens na qual a mulher era inferior ao
homem. Nesse sistema a liberdade individual e “o direito da mulher sobre o seu
próprio corpo”, tão importantes em nossa era dos “direitos reprodutivos das
mulheres”, seriam algo simplesmente ininteligível. Mas, sob pressão de
missionários cristãos como o lendário William Carey, o governo colonial britânico
começou a agir contra a prática, até seu banimento por vias legais.
Também
os espartanos adotavam a prática de escravizar seus hilotas, cidadãos de
segunda classe, e de treinar seus jovens guerreiros aterrorizando e caçando
esses pobres escravos. Anualmente os jovens espartanos saíam nas Cripteias para
massacrar hilotas, como hoje se sai em blocos para o carnaval. Seus jovens eram
ensinados a lutar até a morte e indivíduos fracos ou deficientes eram
absolutamente desprezados. Por tudo o que sabemos hoje, psicopatas se dariam
muito bem em Esparta.
Entre
muitos povos antigos as práticas de guerra e execução dolorosa eram
extremamente comuns. Os assírios eram especialmente cruéis, com sua prática
sistemática de empalação. A execução por fogo ou apedrejamento era comum, e
praticada inclusive pelos hebreus, como se vê na Bíblia hebraica.
Os
astecas praticavam sacrifícios humanos de modo sistemático e permanente,
caçando impiedosamente indígenas de pequenas tribos para usá-los nesses
sacrifícios. Rios de sangue foram derramados para o seu culto – embora
certamente menos que os Estados nacionais “laicos” derramaram no século 20.
Mas, entre as mais abjetas práticas de culto de todos os tempos, eles
praticavam a adoração ao deus da chuva Tlaloc, prendendo dezenas de crianças e
aterrorizando-as ao máximo, até que chorassem bastante – porque, em sua visão
de mundo, o seu choro garantiria muitas chuvas –; então, elas eram
sacrificadas. Elas não eram apenas aterrorizadas ou apenas sacrificadas, mas
aterrorizadas e em seguida sacrificadas.
Seria
um exagero dizer que tal cultura não poderia ser preservada a não ser
abandonando tais práticas? Teria ela mais direito de manter seus valores do que
um arianismo nazista?
Para
não seguirmos criticando a outros, consideremos a nossa própria cultura moderna
ocidental. Não é verdade que ela não guarda boa relação com o meio ambiente e
que mostra grande dificuldade para proteger e conservar os biomas de nosso
planeta? Não é esse um julgamento objetivo, e tão objetivo que até mesmo um
visitante extraterrestre seria capaz de emiti-lo, talvez até mesmo calculando
nosso prazo até a extinção segundo estatísticas cósmicas imemoriais?
Os
astecas praticavam sacrifícios humanos de modo sistemático e permanente. Teriam
eles mais direito de manter seus valores que um arianismo nazista?
Cada
cultura, seja ela uma cultura tradicional ou um dialeto do sistema moderno, tem
deveres para com a realidade. A verdade e o bem não são opcionais ocidentais
platônicos; são imperativos da mente humana, dos quais até mesmo índios
isolados participam a seu próprio modo. Do contrário, eles não poderiam ter
sido incluídos nos sistemas internacionais de direitos humanos.
Mas
façamos um exercício de pensamento: se assumirmos que, dada a natureza humana
compartilhada, diferentes culturas são comparáveis e não absolutamente
incomensuráveis, seria plausível a ideia de que toda cultura pode ter
contribuições positivas e defeitos graves. E que todas poderiam aprender com
todas, em nome da natureza humana.
Essa
consideração não é puramente teórica; temos evidência histórica inegável de que
a superioridade militar e econômica não equivale a dominação ou genocídio
cultural. Sabemos, por exemplo, que os romanos foram conquistados culturalmente
pelos gregos, e esse fenômeno já ocorreu muitas vezes. Uma aproximação
respeitosa a uma cultura tem o potencial de universalizar muitos bens e
valores.
Dada
a responsabilidade que cada ser humano tem diante de outros seres humanos,
diante da terra e diante da realidade, é necessário compreender que todas as
culturas são mutuamente responsáveis. Temos de responder aos indígenas
brasileiros pelo que estamos fazendo com a Amazônia, por exemplo. Temos de
ouvi-los e aprender com eles. Eles também precisam responder diante de todos os
seres humanos pelo que fazem com suas mulheres e crianças. Os chineses,
igualmente, não podem alegar incomensurabilidade cultural para justificar seu
tratamento recente aos uigures. Assim como os árabes, os africanos e os outros
brasileiros.
Nenhuma
cultura ou religião é incorrigível e incondicionalmente respeitável, seja ela
constitutiva de uma grande civilização ou de uma pequena comunidade
tradicional. Por essa razão, entendo que a tese de manter o isolamento cultural
e proibir a comunicação de ideias e valores a uma outra cultura é, de jure,
inaceitável.
É,
de facto, violência cultural?
A
essa altura, um leitor com um pouco de conhecimento sobre a história da
ocupação da Amazônia estará possivelmente perdendo a paciência. Afinal, a
despeito da linguagem moral abstrata acima apresentada, o fato é que a formação
do Brasil foi destrutiva para muitas civilizações indígenas, e a evangelização
cristã não seguiu um paradigma claro de respeito à diferença cultural, de
aprendizado mútuo e de coexistência. Ou seja: ainda que a interdição de jure
seja inaceitável, é possível alegar que a tese de uma troca cultural positiva
afunda sob um mar de contrafactuais.
Entendo
que esse é o ponto crucial, e realmente não pretendo solucioná-lo aqui. Mas
posso introduzir alguma evidência de que, no que se refere à evangelização
cristã, os contrafactuais estão contrabalançados.
Em
primeiro lugar, é fato que muitas culturas tradicionais foram preservadas
exatamente pela ação de missionários cristãos, por conta da noção cristã da
Encarnação, e da tese de que a palavra do Evangelho precisa ser posta em várias
línguas. Com essa motivação, há séculos missionários cristãos têm estudado
línguas e culturas numericamente minúsculas com o propósito de formalizar suas
gramáticas, vocabulários e sistemas de significação, para então elaborar
traduções das Escrituras.
No
Brasil a Bíblia inteira foi traduzida para seis línguas indígenas e o Novo
Testamento está traduzido em 38 línguas, segundo dados da Sociedade Bíblica do
Brasil. Para se ter uma ideia do esforço que isso envolve, a tradução completa
para o Waiwai levou 53 anos, no total. E uma obra como essa torna-se a base
para uma nova experiência de memória e autorreflexão dos indígenas, por um
lado, e de diálogo com as culturas ocidentais, por outro. Cada vez que uma
língua ágrafa é aprendida e normatizada, e o Novo Testamento é traduzido para
essa língua, obtém-se uma espécie de “Pedra de Roseta” cultural.
Muitas
culturas tradicionais foram preservadas exatamente pela ação de missionários
cristãos
Curiosamente,
então, o esforço que leva a uma subversão de sistemas simbólicos tradicionais,
com a contestação de suas divindades e moralidades, é simultaneamente a
garantia de preservação da linguagem e da herança cultural, e a possibilidade
de sínteses que garantam a sobrevivência dessas culturas em contato com uma
civilização muito mais poderosa.
Em
segundo lugar, temos evidência de povos que receberam o Evangelho cristão sem
genocídio e sem entrar em processos de autodestruição, e que relataram uma experiência
de aperfeiçoamento, consolidação cultural e ganhos em dignidade humana.
Exemplos clássicos são a cultura celta e o antigo reino etíope; recentemente
poderíamos mencionar os Sawis da Nova Guiné, evangelizados pelo canadense Don
Richardson (falecido em 2018) nos anos 1960. Os Sawis eram um povo guerreiro de
caçadores de cabeças e canibais, que considerava a traição uma grande
demonstração de inteligência e coragem, e que sofria com violência e doenças. A
conversão dos Sawis, a codificação de sua linguagem e a tradução do Novo
Testamento elevou a expectativa de vida, reduziu a violência, extinguiu o
canibalismo e levou a testemunhos genuínos de gratidão por membros daquele
povo.
Outro
exemplo mais recente é o dos Konkombas do dialeto Bimonkpeln, no oeste da
África, evangelizados pelo antropólogo e missionário brasileiro Ronaldo Lidório
a partir de 1994. A língua desse grupo era ágrafa, e foi feito o esforço de
compor a gramática, dicionários, cartilhas, e de alfabetizar os adultos. Mais
de 500 adultos foram alfabetizados em sua língua materna, e o Novo Testamento
foi completado em 2001.
Em
terceiro lugar, é possível demonstrar que em muitos casos não foi a ação de
missionários cristãos, mas a influência de valores e hábitos ocidentais
condenados pelos cristãos, e a presença de agentes exploradores seculares
igualmente condenados pelos cristãos, a causa de sofrimento entre povos
tradicionais. A introdução do dinheiro, da música, das novelas globais, da
promiscuidade sexual, da droga e da bebida e da militância política de esquerda
não podem honestamente ser lançados na conta do evangelho cristão.
Em
muitos casos não foi a ação de missionários cristãos, mas a influência de
valores e hábitos ocidentais condenados pelos cristãos a causa de sofrimento
entre povos tradicionais
Esse
é o caso de alguns dos exemplos dados pela imprensa laicista de contatos
malfadados (Waimiri-atroari, Kren-Akarore, Araweté e Parakanã, dentre outros),
os quais não foram feitos por missionários cristãos, mas sim pelo próprio órgão
governamental responsável pela política de proteção e integração proposta pelo
marechal Cândido Rondon a partir da Criação do antigo Serviço de Proteção aos
Índios (SPI), substituído em 1967 pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A
chegada de atividades missionárias deu-se posteriormente, quando já estava em
curso a redução populacional desses grupos, seriamente ameaçados pelo cerco do
entorno social. Dadas outras experiências históricas, não seria implausível que
a chegada de missionários cristãos bem preparados com suficiente antecedência
houvesse fortalecido a capacidade desses povos de resistir ao impacto da
cultura moderna.
Mas
e quanto a povos isolados? Nesse ponto é necessário dar a mão à palmatória:
quanto a eles, é legítimo manifestar a presença e a disponibilidade, mas é
necessário aguardar um movimento desses povos em direção ao diálogo cultural.
Esses povos têm o direito de existir em isolamento voluntário enquanto o
quiserem, segundo é exigido pelo artigo XXVI da Declaração Americana dos Direitos
dos Povos Indígenas. O respeito à autodeterminação de cada povo e cultura é um
pressuposto de qualquer verdadeira evangelização.
Finalmente,
outra condição se impõe: meios indiretos de avaliar a fragilidade e
vulnerabilidade de uma cultura precisam ser empregados antes de qualquer
movimento de aproximação, para garantir que tal processo não cause a extinção
daquela sociedade. Sempre que houver a possibilidade de introduzir, juntamente
com o Evangelho, o pior da nossa cultura ocidental laica, é importante moderar
e até adiar o esforço missionário.
É
antiético?
Minha
última observação será bem curta. Os que praticam proselitismo religioso o
fazem porque acreditam em verdades universais, e em padrões éticos universais.
Os que rejeitam essa prática geralmente o fazem em nome de uma ética da
alteridade, segundo a qual a diferença deve ser respeitada, e o outro não deve
ser absorvido e tornado mera extensão do meu Self, ou do nosso eu coletivo.
Mas,
como o Barão de Munchausen, esse arrazoado pretende erguer-se do pântano
relativista com cavalo e tudo puxando os próprios cabelos. Pois ao recomendar
tal ética da alteridade a pessoas de todas as culturas e religiões, em nome do
pluralismo e da tolerância, sem mais, ele quer nos persuadir a todos de seu
próprio projeto de moralidade universal. Projeto esse que não faria nenhum
sentido para muitas religiões das mais diversas formas e tamanhos.
Não
penso que uma ética da alteridade seja algo inviável ou indesejável; mas apenas
que não pode ser universalizada sem, de um jeito ou outro, voltar a Platão ou
ao universalismo judaico-cristão – lá onde ela nasceu. E isso nos coloca de
volta à tarefa evangelizadora. Tarefa essa a que o Cristianismo não poderá renunciar
sem perder sua própria identidade.
Guilherme
de Carvalho
21
de fevereiro de 2020 à 17:56
[Guilherme
de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação
entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em
Belo Horizonte e correntemente diretor de Promoção e Educação em Direitos
Humanos da Secretaria Nacional de Proteção Global, no Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos.]
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