sábado, 13 de julho de 2019

Adiar o fim do mundo (Folha de São Paulo)



“É preciso adiar o fim do mundo para contar mais história”

“Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra”, escreve o líder indígena Ailton Krenak em seu “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” (Companhia das Letras, 2019).

Ailton Krenak durante mesa "Vaza-Barris" com Zé Celso e mediação de Camila Mota - Mathilde Missioneiro/Folhapress

“Eles” não é só o povo de sua etnia, os krenak, indígenas de Minas Gerais, mas o que é visto como uma “sub-humanidade: os caiçaras, índios, aborígenes que ficaram esquecidos nas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina, que são os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra.”
Uma das mais proeminentes lideranças indígenas do país, Ailton Krenak está pop: convidado da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), passa o dia em bateria de entrevistas e é parado na rua por pedidos de fotos. “Quase que arrependi de ter vindo, não consigo nem dormir”, brinca.
É preciso adiar o fim do mundo, conclui o livro de Ailton, para “sempre poder contar mais uma história.”
E que indígenas tem contado histórias?
Ailton nem precisa pensar para responder, tem na manga uma lista de escritores que os brancos deveriam prestar mais atenção: Daniel Munduruku, Cristino Wapichana, Olívio Jekupé, Tiago Hakiy, Eliane Potiguara, Marcia Kambeba —” a marca das mulheres é a denúncia do genocídio. É como se o sentimento as atingisse mais”, diz.

Quarto dia de Flip tem mesa com cordelista Jarid Arraes e Ney Matogrosso

“Depois de terem passado muito tempo lutando por demarcar a terra, os povos indígenas resolveram demarcar a tela”, diz ele, que cita também os cineastas Alberto Alvares e o kaxinawá Zezinho Yubê como alguns dos realizadores a se prestar atenção.
“Ideias para Adiar o Fim do Mundo” é um compilado de duas palestras e uma entrevista que o Ailton deu entre 2017 e 2019 em Portugal, “lugar que evitei visitar durante 50 anos”, ele conta à Folha
“Quando teve a celebração dos 500 anos das viagens dos portugueses pelo mundo afora, fizeram um evento, me convidaram e eu não fui. Achei que era uma festa portuguesa, e ainda por cima ia celebrar a invasão do meu mundo, então eu não ia fazer coro com essa turma.”
Mas “com o tempo, a gente vai ficando mais tolerante a algumas coisas que não suporta na juventude”, afirma. 
Em Paraty, participou de mesa com o diretor de teatro Zé Celso —que abriu agitando um chocalho, num ritual conhecido por Teru Ande entre os krenak, de invocação dos espíritos marét— e deu autógrafos.
Na outra ponta, outros indígenas são vistos aos montes vendendo artesanato sentados nas ruas da cidade histórica —há povos guarani e pataxó na região. 
“O povo indígena continua sem ter um lugar, e esse lugar tem que ser buscado a cada dia, como uma reinvenção do mundo. O lugar dos índios na Flip [como convidado] é um lugar simbólico. Ele não muda nada”, diz Ailton.
“Quem ainda demarca os territórios são os brancos, em Paraty é a mesma coisa. A cidade é celebrada pela sua colonialidade. Se isso fosse só na arquitetura, estava bem composto. A questão é que isso está também na cultura. Nós estamos imersos no colonialismo até o pescoço.”

Florestania
Se a violência do Estado tira o direito de povos tradicionais à cidadania, nas palavras de Ailton, é preciso pensar em uma coisa nova. “Uma outra experiência que chamamos de ‘florestania’: construir espaços de convivência, criação e reprodução da cultura em termos de povos que vivem mais na natureza, na floresta.”

É o embate entre natureza e cidade a principal marca de diferença entre povos, nas palavras do líder indígena. “Não de raça ou de cor, nada disso, mas uma compreensão do que é que importa para viver: um rio com água limpa, a terra com saúde.”

Os krenak vivem na margem esquerda do rio Doce (Watu, na língua deles), que foi inundado em 2015 por um mar de lama de rejeito de mineração da Samarco.

“As comunidades que vivem à beira do rio têm que ser abastecidas por caminhão pipa, têm que receber suprimentos de fora porque não conseguem produzir seu próprio alimento, e estão em estado de refugiados em seu próprio território. Essa é a situação dos krenak.”
Não poluir um rio inteiro é uma boa ideia para adiar o fim do mundo, diz.

(Krenak é a junção de dois termos na língua dos borun: kre, cabeça, e nak, terra)
Thiago Amâncio, 13 de julho de 2019 às 12:20

Texto originalmente publicado pela Folha de São Paulo sob o título "'É preciso adiar o fim do mundo para contar mais história', diz autor indígena"

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Parceria FAO e OTCA (FAO)



ONU
FAO firma parceria para proteger recursos naturais e povos da Amazônia

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) firmaram nesta quarta-feira (26) uma nova parceria para trabalhar na conservação e na restauração dos recursos naturais na Amazônia. A cooperação entre os organismos prevê um diálogo permanente com as comunidades locais e os povos indígenas da região.

Vista aérea da Floresta Amazônica, próximo a Manaus (AM). Foto: Flickr (CC)/CIAT/Neil Palmer

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) firmaram nesta quarta-feira (26) uma nova parceria para trabalhar na conservação e na restauração dos recursos naturais na Amazônia. A cooperação entre os organismos prevê um diálogo permanente com as comunidades locais e os povos indígenas da região.
O acordo das duas instituições lança as bases para fortalecer a gestão sustentável de uma área que é fundamental ao equilíbrio climático do mundo. A parceria vem acompanhada de um plano de ação para superar as brechas econômicas e sociais que persistem na Amazônia.
“Os desafios da região amazônica, como os de todos os outros ecossistemas de grande importância, são tanto de caráter ambiental, social e econômico, como cultural. A Amazônia sofre ameaças que vão desde a mudança do uso do solo e da terra, o desmatamento, a implementação de certas infraestruturas sem boas práticas até o comércio ilegal da fauna e da flora”, afirmou a secretária-geral da OTCA, Alexandra Moreira Lopez, durante a assinatura do acordo.
“Essa colaboração nos ajudará definitivamente a trabalhar em áreas muito importantes, como a gestão sustentável da floresta amazônica e de seus recursos hídricos.”
A especialista ressaltou ainda a importância de proteger um ecossistema “vasto e rico em recursos naturais”, sem esquecer que ele é habitado por 40 milhões de pessoas.
“Não podemos falar apenas de uma gestão de preservação dos recursos naturais, mas, necessariamente, também temos que falar do uso sustentável da sua biodiversidade e (falar) em gerar instrumentos e ferramentas para as economias dessa região”, disse Alexandra.
A especialista defendeu a criação de oportunidades para os moradores da Amazônia, a fim de diminuir as desigualdades que existem na região e em toda a América Latina. “O trabalho conjunto permitirá que sejamos criativos na geração dessas ferramentas e na melhoria das cadeias produtivas derivadas do fornecimento de produtos da floresta e dos recursos hídricos, incluindo os produtos pesqueiros e da aquicultura.”
O diretor-geral da FAO, o brasileiro José Graziano da Silva, enfatizou a importância da cooperação internacional para a proteção da Amazônia e dos seus povos.
“Acredito que todos estamos de acordo com (o fato de) que, se não unirmos esforços, não conseguiremos preservar o patrimônio fundamental que a Amazônia representa nem conservar as tradições e modos de vida que permitiram que a biodiversidade do pulmão do planeta beneficiasse não apenas os oito países da Bacia Amazônica, como também toda a humanidade”, afirmou o chefe da agência da ONU.
A FAO tem uma ampla tradição de trabalho em questões de floresta, preservação dos recursos hídricos e do meio ambiente e apoio aos direitos dos povos indígenas. O organismo é uma das organizações convidadas a dar contribuições técnicas para a Assembleia Especial para a Região Pan-amazônica, realizada pelo Sínodo dos Bispos, encontro convocado pelo Papa Francisco para outubro de 2019, no Vaticano.
A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) é uma instituição intergovernamental formada por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. A entidade incentiva o desenvolvimento sustentável e a inclusão social na Amazônia.
26 de junho de 2019 às 16:48

Texto originalmente publicado por Nações Unidas Brasil sob o título "FAO firma parceria para proteger recursos naturais e povos da Amazônia"

domingo, 16 de junho de 2019

Antigas Civilizações da Amazônia (Folha de São Paulo)

O Fim das Civilizações da Amazônia

Secas e uso excessivo de recursos




Urna funerária marajoara - Marie-Lan Nguyen/Wikimedia Commons



Da Bolívia à ilha de Marajó, sociedades complexas não faltavam na maior floresta tropical do mundo
O que caracteriza uma civilização em colapso? Diante desse tema portentoso, talvez venha à cabeça da maioria das pessoas a antiga Roma sendo engolida pelos bárbaros ou o misterioso fim das metrópoles maias. Existem exemplos igualmente interessantes, porém, bem mais perto de nós, em vários pontos da Amazônia.
Sim, a Amazônia, aquele lugar no qual quase todo mundo pensa quando vê memes falando da época “em que aqui era tudo mato”. Tudo mato, vírgula, gentil leitor.
Por volta do ano 1000 da Era Cristã, num arco gigantesco que ia da Bolívia à ilha de Marajó, sociedades complexas e populosas não faltavam na região correspondente à maior floresta tropical do mundo. Entretanto, antes mesmo do impacto apocalíptico da invasão europeia a partir do século 16, várias dessas sociedades sumiram do mapa. A pergunta que não quer calar é, obviamente: por quê? 
Uma tentativa ambiciosa de elucidar esse mistério está prestes a ser publicada na revista científica Nature Ecology & Evolution. Os responsáveis pelo estudo são membros de uma equipe internacional de cientistas, coordenada pelo arqueólogo brasileiro Jonas Gregorio de Souza, da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona.
O time de pesquisadores resolveu examinar a intersecção entre a organização econômica e social desses antigos grupos amazônicos, de um lado, e as idas e vindas do clima, de outro. Para isso, valeram-se de dados obtidos a partir de sedimentos do fundo do Atlântico e de um lago dos Andes, bem como de estalagmites de cavernas no Brasil. Flutuações na composição química dessas amostras funcionam como um calendário das alterações climáticas enfrentadas pela Amazônia ao longo dos séculos.  
Para entender as conclusões da análise, vale a pena considerar as sociedades pré-colombianas nas pontas leste e oeste da Amazônia. Do lado oriental, temos a cultura que dominou a ilha de Marajó (PA) entre os anos 400 d.C. e 1200 d.C., mais ou menos. Esse povo construiu morros artificiais como forma de se adaptar às enchentes periódicas da ilha. Nessas grandes plataformas, havia aldeias com população numerosa e rituais funerários cheios de pompa, que deixaram para trás uma cerâmica sofisticada. Os antigos marajoaras tinham ainda represas nas quais praticavam a criação intensiva de peixes.
Já no oeste, do lado boliviano, os habitantes dos chamados Lhanos de Moxos também lidavam com um ambiente relativamente aberto e periodicamente inundado, como Marajó, mais ou menos na mesma época. Construíram intrincados sistemas de canais e campos elevados para uso agrícola, o que parece ter levado ao controle desses recursos por uma elite.
Quando ondas de seca se abateram sobre a região, o que aconteceu com ambas essas sociedades poderosas? Sim, você adivinhou: colapso. Ao que parece, a dependência do uso intensivo de recursos hídricos e agrícolas e as hierarquias rígidas aumentaram a vulnerabilidade desses grupos às flutuações do clima.
Ao mesmo tempo, porém, as aldeias monumentais do Alto Xingu, com suas fortificações e estradas largas, e a “metrópole” que existia onde hoje fica Santarém (PA), sobreviveram. Esses locais resistiram ao colapso porque teriam baseado sua economia em sistemas agroflorestais - basicamente, florestas com espécies selecionadas para uso humano, suplementadas com lavouras mais modestas. Era uma estratégia mais conservadora, voltada para o longo prazo, e não para os ganhos de curto prazo.
Reinaldo José Lopes, 16 de junho de 2019 às 02:00

Texto originalmente publicado pela Folha de São Paulo sob o título "Secas e uso excessivo de recursos podem explicar fim de civilizações da Amazônia"