Educação Indígena
O desafio de sair da comunidade para estudar na universidade
Alunos
enfrentam o preconceito e a dificuldade em conseguir o benefício da Programa
Bolsa Permanência do MEC.
Na fotografia estão alunos da Associação dos Povos Indígenas Estudantes
da UFPA (Universidade Federal do Pará). (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia
Real)
Manaus (AM) – No cenário acadêmico, os
estudantes indígenas enfrentam desafios diários: deslocamentos das comunidades
de origem até a universidade, que está localizada na cidade, preconceitos dos
não-indígenas, dificuldades financeiras para custear alimentação e o aluguel de
um local para morar, entre outros. A vontade de aprender, desenvolver, trilhar
novos conhecimentos, muitas vezes, é um estímulo para que continuem nessa
jornada.
Em 2013, o governo federal
criou o Programa Bolsa Permanência (PBP) para
ofertar um benefício financeiro aos estudantes indígenas, quilombolas e em
situação de vulnerabilidade socioeconômica de universidades públicas. O recurso
é oriundo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Apesar dos impactos positivos
causados por essa medida, para favorecer diversos estudante pelo país, o
funcionamento do programa foi ameaçado e quase extinto em 2018, o que gerou uma revolta nos
estudantes universitários que dependem desse benefício para
sobreviver nas cidades onde cursam o ensino superior.
O Ministério da Educação
afirma que ofertou 4 mil bolsas no segundo semestre de 2019 e o orçamento total
foi de R$ 194 milhões. Estudantes indígenas e quilombolas recebem uma bolsa de
R$ 900,00.
O estudante Cézar Sarmento é do povo Tukano. (Foto: Alberto César
Araújo/Amazônia Real)
O estudante Cézar dos Santos
Sarmento ou Doé (seu nome na língua Tukano), de 33 anos, é beneficiário do
programa PBP desde 2017. Ele está no 6° período de Ciências Contábeis na
Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Colaborador do Centro de Medicina Indígena
Bahserikowi´i, onde a população de Manaus busca atendimento de saúde
através do conhecimento tradicional dos Kumuã (ou pajés), o estudante planeja
se formar em 2021.
Cézar fica preocupado com os
cortes das bolsas, não só para ele, mas para outras pessoas que dependem desse
benefício para se manter na faculdade.
“Ele (o programa Bolsa
Permanência) é um auxílio importante para que você consiga se concentrar nos
estudos em si, sem se preocupar se você vai ter dinheiro no fim do mês. Assim,
para as coisas básicas como dinheiro para passagem, xerox, roupa, ou qualquer
material didático que você vai precisar. Ou até mesmo para o lanche porque
muitas vezes a gente fica o dia todo na faculdade. É de grande importância essa
ajuda financeira, pois faz com que a gente foque especificamente nos nossos
estudos, que é o principal objetivo da gente ingressar em uma faculdade, pois
tem situações em que a faculdade nos exige muita dedicação”, disse Cézar.
Somado a isso, o estudante
Tukano avalia e faz uma crítica ao sistema adotado hoje, nos processos para
participar do programa. Ele conta que, no início, enfrentou dificuldades para
comprovar a documentação, devido aos desencontros de informações no site
oficial do governo e as informações passadas presencialmente, na hora da
entrega dos papéis e, também, pela não compreensão da realidade de grande parte
das pessoas das comunidades indígenas, acerca dos procedimentos burocráticos da
instituição.
“Eles queriam uma coisa muito
mais informatizada, declaração feita no computador, com a assinatura
reconhecida em cartório, tudo isso. Sendo que para a gente, que mora no
interior, pra conseguir todos esses documentos comprobatórios é complicado
porque tem pessoas, tem lideranças indígenas que não residem em cidades. Eu
estava aqui em Manaus, meus pais tiveram que providenciar tudo isso; só que a
locomoção de São Gabriel da Cachoeira, localizado na região do Alto Rio Negro,
até a comunidade onde eu residia, leva uns três a quatro dias de viagem, sendo
que lá não pega sinal de telefone, não tem internet, não tem informação
nenhuma. Tem que achar uma outra solução para esse processo”, enfatizou o
estudante, expressando a intensidade do desafio de um indígena para ingressar
na universidade desde o primeiro momento.
A indiferença no espaço privado
Clotilde é estudante do curso
de Enfermagem (Foto: Arquivo pessoal)
Clotilde Mendes Bastos, também
conhecida como Clotilde Tikuna, nome de sua etnia, tem 42 anos e cursou o 10°
período de Enfermagem da Fametro, uma universidade particular na capital
amazonense. Este ano ela trancou a matrícula temporariamente por falta de recurso,
mas não desistiu do sonho de tornar-se enfermeira. Ela se deslocou da
comunidade Umariaçu- I, situada no município de Tabatinga, no Alto Solimões, na
fronteira com a Colômbia com o Amazonas.
Ela relembra que quando chegou
à capital foi difícil e preocupante a sua situação, porque sua família não
conhecia ninguém para dar suporte nessa nova caminhada. Além disso, ela também
sofreu preconceito, por conta de sua origem indígena.
“Eu sofri durante cinco anos.
Quando são formados grupos de colegas, é difícil eles se unirem, me incluir no
grupo. Uma vez eu sofri até pela professora mesmo, pensando que eu não sabia
com explicar tudo o que ela mandou eu explicar, porque o meu português é muito
difícil. Houve nota baixa, reprovei. E eu estou aqui, com a cabeça erguida”,
comenta orgulhosa.
Apesar de situações terem sido
recorrentes durante os anos acadêmicos, Clotilde mostra força e ressalta duas
coisas. A primeira é que os outros parentes têm que estar na faculdade para ter
mais profissionais que realmente entendam sobre as condições culturais
diferenciadas dos indígenas, porque isso vai levar benefícios para as
comunidades e futuros acadêmicos. A segunda é que todos os conhecimentos, dos
brancos e dos indígenas, podem e precisam ser somados, e que isso não deve ser
limitado pelo preconceito vigente na cidade.
“O que eu quero falar mais é
que isso não tem que acontecer, porque todos os amazonenses são indígenas. O
trabalho tem que ser somado, tem que ser discutido junto, tem que se unir,
ensinar uns aos outros”, enfatiza Clotilde.
Os obstáculos do Bolsa Permanência
Estudantes indígenas e quilombolas em protesto na UFOPA, em 2018. (Foto:
Josemir Moreira/UFOPA)
Segundo o Ministério da
Educação (MEC), desde o mês maio de 2016 as inscrições para o Programa Bolsa Permanência
(PBP) são destinadas exclusivamente para estudantes indígenas e quilombolas.
Naquele ano foram 24.455 alunos inscritos. Em 2017: 24.076 estudantes, em 2018:
19.454, e até o mês de setembro de 2019 foram 19.428 alunos beneficiados pelo
programa. Com relação ao contingenciamento de verbas do governo federal no PBP,
o MEC disse que “o orçamento do programa não sofreu contingenciamento.
Na região Norte, o PBP
beneficia nos estados 6.458 estudantes, sendo: 133 no Acre; 1180 no Amazonas;
581 no Amapá; 2573 no Pará; 273 em Rondônia; 652 em Roraima; 1066 em Tocantins;
Apesar dos números, na Universidade Federal do Pará (UFPA) os
indígenas só representaram 0,37% do total de alunos matriculados nos cursos
ofertados em 2019. O Processo Seletivo Especial para Indígenas e Quilombolas
funciona com a reserva de duas vagas adicionais para indígenas nos cursos
ofertados.
A reitoria da UFPA reconhece a
necessidade de uma política adicional ao sistema geral de cotas. Em nota
enviada à Amazônia Real, a instituição esclareceu que “estuda-se a cada vez com
maior interesse políticas de permanência com qualidade desses alunos, e suas
representações no âmbito da instituição. Para a sociedade, o retorno com
qualificação desses representantes, seja para a sociedade em geral, seja para
suas comunidades originais, representa a garantia de representação
historicamente negada a esses grupos”.
Já na Fundação Universidade
Federal de Rondônia (Unir), até o momento, apenas um indígena, ingressante pelo
sistema de cotas, finalizou o curso de Pedagogia. A universidade ressalta que o
número pode ser maior, pois pode ter indígenas que não ingressaram pelo sistema
de cotas da etnia, já que o processo ficou obrigatório só a partir do ano de
2018.
Atualmente são 139 alunos
ingressantes por cotas para indígenas, o que significa 1,30% do total de
discentes matriculados na Unir, que conta com indígenas originários de mais de
30 povos diferentes, segundo a instituição.
Quando o preconceito vira ameaças
O professor Francisco Marikawa é do povo Kokama (Foto: Arquivo pessoal)
O professor Francisco Braga
Marikawa, mais conhecido como professor Marikawa, tem 46 anos e é liderança do
povo Kokama, de uma comunidade situada na zona Leste de Manaus, capital do
Amazonas. Artista plástico, Francisco é estudante do 7° período do curso
de Pedagogia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
Em entrevista à Amazônia
Real, ele contou que pensava que não conseguiria ingressar em uma faculdade
e que a sua motivação para fazer o vestibular era para adquirir mais
conhecimento para trabalhar a revitalização da língua materna do seu povo, que
faz parte do tronco linguístico Tupi-Guarani. Marikawa, que antes morava na
terra indígena Barro Alto, na região no Alto Solimões, oeste do Amazonas,
mudou-se para Manaus em 1984, junto com seus pais e irmãos. Ele falou sobre o
preconceito que sofreu por conta de sua origem indígena.
“A pressão era grande,
principalmente por conta do sobrenome, porque as pessoas já identificavam logo
que eu era indígena. Outra coisa que identificavam era por conta do
linguajar. Hoje, eu já falo português melhor do que falava antes, o preconceito
era grande; e sofria ameaças também, eu e os meus irmãos. A gente não conseguia
se manter. Passávamos de uma escola para outra e começava a mesma coisa e a
gente acabava desistindo. Foi uma situação bem difícil permanecer na cidade”,
ressaltou o universitário.
Somado a isso, um fator que a
liderança Kokama ressalta, com relação às dificuldades enfrentadas, são as
poucas vagas específicas ofertadas nos cursos em relação ao grande número de
demanda de indígenas querendo realizar o curso superior. Isso faz com que
poucos indígenas tenham acesso à universidade pública, deixando de adquirir
conhecimentos importantes para sua vida, tanto na cidade quanto nas comunidades
de origem.
“O número de indígenas
cresceu, e se só tem uma vaga por curso é difícil”, comentou Francisco.
Nos momentos finais da
entrevista, o líder fez um desabafo sobre o atual momento político do Brasil no
governo de Jair Bolsonaro, principalmente em relação à forma como tem tratado
os povos tradicionais.
“Eu acredito que a sociedade
precisa analisar um pouco mais o perfil dos candidatos ao governo. A gente sabe
que tem pessoas com compromisso com o Brasil, né? Mas tem pessoas que não têm
responsabilidade nem consigo mesmo, porque um cara como ele (Bolsonaro), que fica
publicamente agredindo toda uma sociedade indígena, não-indígena, negra, é
coisa de louco”, afirmou o professor.
O estudante da UEA relembrou
histórias de seus antepassados durante a ditadura militar, fazendo uma
comparação com o presente e sinaliza um relato de resistência dos povos
indígenas no país.
“Eu lembro dos meus avós
dizendo que eles não podiam falar a língua materna na cidade. O delegado
prendia e só liberava se aprendessem a falar português. É lamentável o Brasil
ser rico em culturas e a gente não conseguir manter a cultura da gente; tem
sempre uma pressão grande de quem deveria cuidar e preservar. Por isso que nós
precisamos usar essa estratégia (estudo), pra sobreviver. Isso está sendo feito
hoje, através de mim e outro colegas que acompanham esse movimento. Isso pra
mim, na verdade, significa lutar pela vida, porque até então nós nunca fomos
vistos como seres humanos”, enfatizou Francisco Marikawa.
Segundo o Censo do IBGE de
2010, a região Norte concentra a maior população de indígenas do país: são mais
de 264 mil pessoas. Mas as organizações indígenas informam que atualmente a
população é de 306 mil pessoas. Apesar dos números, os alunos ainda enfrentam
dificuldade de reconhecimento de suas especificidades no dia-a-dia, e isso
também se aplica no quesito educação. Isso acontece, segundo educadores, porque
ainda não se estruturou um sistema nas universidades que atenda às necessidades
educacionais dos povos indígenas. Leia mais na primeira reportagem
desta série:
Jackeline Lima, 26 de janeiro de 2020 às
23:37
Jackeline é formanda em
jornalismo da Faculdade Martha Falcão e participou do 4º Treinamento em
Jornalismo Independente e Investigativo de 2019 da agência Amazônia
Real.
Nenhum comentário:
Postar um comentário