Guardiãs da Amazônia
Conheça quatro mulheres na linha de frente da
defesa da floresta
RIO - Nas últimas semanas, a Amazônia não sai das manchetes dos jornais e dos
assuntos mais comentados nas redes sociais. E não é por um bom motivo. Dados do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que houve um aumento
de mais de 80% de incêndios florestais no Brasil neste ano, comparado ao
mesmo período de 2018, e que a Amazônia é o bioma mais afetado — concentra mais da metade dos
focos.
À frente da defesa da floresta, está uma
legião de destemidas mulheres — da filha de Chico Mendes até
indígenas, passando por ribeirinhas, pesquisadoras e manejadoras de madeira
sustentável.
Celina conversou com quatro delas, cada uma atuante em
um estado amazônico diferente: Ângela Mendes, primogênita do lendário ativista,
do Acre; a historiadora Ivaneide Bandeira Cardozo, de Rondônia; a indígena Nara
Baré, do Amazonas; e a manejadora florestal Maria Creusa da Gama Ribeiro, do
Pará.
Conheça abaixo a história das quatro mulheres
que, fora da ficção, sofrem com a insegurança sobre o futuro da Amazônia e, por
terem uma atuação que confronta interesses econômicos de exploração da
floresta, chegaram a se acostumar com ameaças de morte.
Ângela
Mendes tem a defesa da Amazônia em seu DNA. Ela
é a filha mais velha de Chico Mendes, líder seringueiro assassinado a mando de
um fazendeiro em 1988, em Xapuri, no Acre. Quando o crime aconteceu, Ângela
tinha 19 anos e tinha retomado o contato com o pai há poucos anos. Chico Mendes
já era, então, reconhecido por defender tanto sua classe de trabalhadores
quanto a preservação da floresta e sofria ameaças de morte.
Ângela Mendes, coordenadora do Comitê Chico
Mendes Foto: Arquivo
Ela conta que foi criada longe da militância
do pai e que, depois da morte dele, levou algum tempo para conseguir se
envolver diretamente no movimento ambiental e sindicalista.
— Eu costumo dizer que o sangue puxa. Esse era
um mundo a parte do meu, mas você começa a perceber as injustiças. O que corre
nas minhas veias é ser contra injustiça, seja qual for. Essa é a minha missão
no mundo.
Em 1996, Ângela começou a trabalhar no Centro
dos Trabalhadores da Amazônia (CTA), criado em1981 pelo sindicato presidido por
Chico Mendes com o intuito de levar escolas para o interior da floresta. Hoje,
aos 49 anos, ela coordena o Comitê Chico Mendes, uma rede de ativistas criada
em 1989 para cobrar a punição dos responsáveis pelo crime e que hoje se dedica a
divulgar o legado do ambientalista.
— A gente faz um resgate da luta e do legado
do meu pai. Desde 2017, o Comitê tem se voltado para uma pegada mais jovem,
para chamá-los para esse compromisso, atuando com educação e conscientização
ambiental — diz.
Ela também é diretora da Secretaria de
Mulheres do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), outra
organização fundada por Chico Mendes, em 1986. Sua atuação é voltada para a
proposição de políticas voltadas paras as mulheres dessas populações.
— A ideia é que as mulheres passem a ter um
protagonismo maior nos territórios. Existe essa dificuldade de respeitar a
posição de uma mulher liderando um movimento. Tem muitomachismo. Ainda é um
processo que os próprios companheiros têm que perceber — afirma.
Ângela, que vivencia a situação da
Amazônia a partir do Acre, critica a postura que avalia como
permissiva e até incentivadora dos governos estadual e federal em relação ao
desmatamento. Ela lembra a fala do atual governador do Acre, Gladson Cameli
(PP), que, no final do mês passado, orientou os produtores rurais a não pagar
multas ambientais. Ela considera que a floresta vive uma situação
"calamitosa", mas comemora a mobilização recente em prol da Amazônia.
— Mais do que nunca, a gente precisa estar
unido e precisa de força.
A floresta é a casa da historiadora e
ativista Ivaneide Bandeira Cardozo. Até os 12 anos, foi criada
na área onde hoje é demarcada a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e
há mais de 30 atua na defesa do meio ambiente e dos povos indígenas da
Amazônia.
Hoje, aos 60 anos, ela se divide entre a
capital Porto Velho, onde se formou em História e concluiu o mestrado em
Geografia, e as aldeias indígenas onde toca projetos pela Associação de Defesa
Etnoambiental Kanindé. A frente da organização que ajudou a fundar em 1992,
participou de expedições para prender madeireiros ilegais e invasores de terra
e chegou a fazer aproximações com povos até então isolados.
— Uma vez pegamos um madeireiro cortando uma
castanheira perto da Aldeia Jamari, dos Uru-Eu-Wau-Wau. Eu não estava sozinha,
estava com 20 guerreiros. Chamamos a polícia para prendê-lo — conta,
acrescentando que, apesar de viver sob ameaça, não sente medo na hora que
precisar agir. — Não tenho medo. Sinto medo depois, quando vou pensar no que eu
fiz, mas na hora não.
Ivaneide afirma que o fato de ser uma mulher e
participar ativamente das ações na floresta não causa estranhamento entre os
indígenas. O mesmo não acontece entre os homens brancos que, segundo ela, ainda
não estão acostumados com lideranças femininas indo para o “enfrentamento”.
A ativista diz que as ameaças recebidas por
ela e sua equipe, e as invasões registradas em terras indígenas onde trabalham,
se multiplicaram neste ano. Com o avanço do desmatamento e das queimadas em Rondônia, Ivaneide se preocupa com os povos
que ainda vivem isolados. Ela também denuncia o avanço da grilagem no Parque
Nacional de Pacaás Novos, cuja área coincide em parte com a Terra Indígena
Uru-Eu-Wau-Wau.
— Já tinha invasão nos outros governos, mas
agora está aumentando absurdamente. Eles perderam o medo de nos ameaçar —
afirma. — Tenho uma preocupação muito grande com os índios isolados. O medo é a
gente nem saber que esses indígenas foram mortos.
Ivaneide lamenta o fim dos repasses internacionais
para o Fundo Amazônia e considera que isso irá prejudicar o trabalho de
proteção da floresta. A Associação Kanindé é uma das organizações que já
recebeu recursos do fundo para projetos de elaboração e implementação de planos
de gestão territorial em terras indígenas.
Nará
Baré, de 41 anos, é em muitos sentidos
pioneira na luta ambiental. Amazonense, ela é a primeira mulher a assumir a
liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(Coiab). E foi na gestão dela, iniciada em 2017, que se alcançou pela primeira
vez na história da Coiab uma divisão paritária de líderes: dois homens e duas
mulheres na coordenação executiva.
'Passamos a fazer nós mesmos a vigilância do
território, que estava sendo cada vez mais negligenciado', diz Nara Baré Foto:
Acervo Pessoal
Antes disso, em 2013, a indígena Nara foi
indicada para concorrer a um dos postos de coordenadora executiva da entidade
por aclamação de todas as mulheres presentes em uma assembleia realizada na
época.
— Cerca de 80% da liderança no meio amazônico
é formada hoje por mulheres. Somos muitas — afirma ela, hoje coordenadora geral
da Coiab. — Mas no início eu sentia discriminação por ser mulher.
A atuação de Nará no Amazonas é para preservar
os territórios indígenas, as unidades de conservação e a manutenção dos modos
de vida tradicionais dos povos que lá vivem.
— A própria Conferência do Clima da ONU
reconhece os nossos modos de vida tradicionais como um grande trunfo para frear
as mudanças climáticas. Infelizmente, com as falas do nosso presidente
incitando o garimpo e o desmatamento na Amazônia, nós sentimos uma
responsabilidade ainda maior. Não só por nós, mas pelo mundo — diz a indígena.
Nara afirma que as leis e a fiscalização
ambientais começaram a se flexibilizar no governo Dilma e, posteriormente,
também no governo Temer. Já nessa época, organizações indígenas e ribeirinhos
passaram a tentar "tapar o buraco" de vigilâncias que deveriam ser
feitas pelo Estado.
— Passamos a fazer nós mesmos a vigilância do
território, que estava sendo cada vez mais negligenciado. É uma autovigilância.
Mas, agora, o desmatamento aumentou exponencialmente, e vemos que o governo não
tem como meta a preservação da Amazônia — considera ela. — Ver essas queimadas
se alastrando é muito preocupante. A gente percebe que o desmatamento tem
aumentado. É mais do que estatística. A gente vê! E, mesmo o mundo todo se
dando conta disso, o presidente do Brasil continua com um discurso vazio.
Foi aos 12 anos que a paraense Maria
Creusa da Gama Ribeiro, hoje aos 50, começou a se interessar por preservação
ambiental, sendo levada a reuniões de extrativistas por sua mãe e
pelos seus irmãos mais velhos. Hoje, ela é manejadora florestal da reserva
Verde Para Sempre, que engloba 1 milhão e 300 mil hectares e é onde vivem cerca
de 15 mil pessoas, no estado do Pará. Nesse espaço, retirada ilegal de madeira
não tem vez, e é o manejo comunitário que protege a área do desmatamento.
A reserva foi criada há quase 15 anos — a data
será completada no próximo 4 de novembro —, e, nessa época, eram comuns as
ameaças de morte contra os extrativistas responsáveis pela fundação da unidade
de conservação. Com o tempo, a legitimidade da reserva foi se consolidando, e
as grandes empresas e latifundiários que tentavam invadir aos poucos se
recolheram.
O medo de Maria Creusa é que, agora, com o
afrouxamento da fiscalização na região e o discurso antiambientalista do
presidente Jair Bolsonaro, as ameaças e a sensação de insegurança voltem.
— Quando começamos a discutir a criação da
unidade de conservação, fomos ameaçados, chegamos a sair de nossas casas. Eu
fui pessoalmente ameaçada de morte. A gente aprende a conviver com isso. Eu
nunca abaixei minha cabeça. Continuo minha luta, essa é minha missão. Mas, de
um modo geral, nos últimos anos, a situação estava mais tranquila — conta ela,
que tenta ser otimista: — Agora, nossa preocupação é que volte como era antes.
Mas tenho fé de que isso não vai acontecer, que é só uma turbulência pela qual
estamos passando. Tento pensar assim.
Ela destaca o quanto o manejo comunitário da
madeira contribui para que a floresta fique de pé:
— Não existe forma mais correta de se
trabalhar dentro da floresta do que por meio do manejo, de modo que você tenha
recursos naturais tanto para você quanto para os que vêm depois de você. Essa
lógica do manejo sustentável, não predatório, serve para a madeira, para a
castanha, para a pesca.
Parte dos recursos da reserva vem da própria
produção das famílias e outra parte é captada por meio do Instituto Chico
Mendes (ICMBio). Chegava até eles verba oriunda do Fundo Amazônia, mantido pela
Noruega e pela Alemanha, que agora está virtualmente extinto.
— Para nós, foi um choque — afirma ela, sobre
a retirada de dinheiro do Fundo. — Não sabemos ainda como será o futuro.
Leda
Antunes e Clarissa Pains
27 de
agosto de 2019 às 14:53
Texto originalmente publicado pelo O Globo sob o título "Guardiãs da Amazônia: conheça quatro mulheres na linha de frente da defesa da floresta"
Texto originalmente publicado pelo O Globo sob o título "Guardiãs da Amazônia: conheça quatro mulheres na linha de frente da defesa da floresta"
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