terça-feira, 27 de agosto de 2019

Guardiãs da Amazônia (O Globo)


Guardiãs da Amazônia
Conheça quatro mulheres na linha de frente da defesa da floresta


RIO - Nas últimas semanas, a Amazônia não sai das manchetes dos jornais e dos assuntos mais comentados nas redes sociais. E não é por um bom motivo. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que houve um aumento de mais de 80% de incêndios florestais no Brasil neste ano, comparado ao mesmo período de 2018, e que a Amazônia é o bioma mais afetado — concentra mais da metade dos focos.
À frente da defesa da floresta, está uma legião de destemidas mulheres — da filha de Chico Mendes até indígenas, passando por ribeirinhas, pesquisadoras e manejadoras de madeira sustentável.
Celina conversou com quatro delas, cada uma atuante em um estado amazônico diferente: Ângela Mendes, primogênita do lendário ativista, do Acre; a historiadora Ivaneide Bandeira Cardozo, de Rondônia; a indígena Nara Baré, do Amazonas; e a manejadora florestal Maria Creusa da Gama Ribeiro, do Pará.
Elas são quase "aruanas da vida real". Em "Aruanas" , série original do Globoplay lançada no mês passado, a jornalista Natalie (Débora Falabella), a ativista Luiza (Leandra Leal), a advogada Verônica (Taís Araujo) e a estagiária Clara (Thainá Duarte) trabalham na ONG Aruana, que atua na Amazônia investigando e combatendo crimes ambientais.
Conheça abaixo a história das quatro mulheres que, fora da ficção, sofrem com a insegurança sobre o futuro da Amazônia e, por terem uma atuação que confronta interesses econômicos de exploração da floresta, chegaram a se acostumar com ameaças de morte.

'Corre nas minhas veias ser contra injustiças' (Ângela Mendes)

Ângela Mendes tem a defesa da Amazônia em seu DNA. Ela é a filha mais velha de Chico Mendes, líder seringueiro assassinado a mando de um fazendeiro em 1988, em Xapuri, no Acre. Quando o crime aconteceu, Ângela tinha 19 anos e tinha retomado o contato com o pai há poucos anos. Chico Mendes já era, então, reconhecido por defender tanto sua classe de trabalhadores quanto a preservação da floresta e sofria ameaças de morte.
Ângela Mendes, coordenadora do Comitê Chico Mendes Foto: Arquivo
Ela conta que foi criada longe da militância do pai e que, depois da morte dele, levou algum tempo para conseguir se envolver diretamente no movimento ambiental e sindicalista.
— Eu costumo dizer que o sangue puxa. Esse era um mundo a parte do meu, mas você começa a perceber as injustiças. O que corre nas minhas veias é ser contra injustiça, seja qual for. Essa é a minha missão no mundo.
Em 1996, Ângela começou a trabalhar no Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA), criado em1981 pelo sindicato presidido por Chico Mendes com o intuito de levar escolas para o interior da floresta. Hoje, aos 49 anos, ela coordena o Comitê Chico Mendes, uma rede de ativistas criada em 1989 para cobrar a punição dos responsáveis pelo crime e que hoje se dedica a divulgar o legado do ambientalista.
— A gente faz um resgate da luta e do legado do meu pai. Desde 2017, o Comitê tem se voltado para uma pegada mais jovem, para chamá-los para esse compromisso, atuando com educação e conscientização ambiental — diz.
Ela também é diretora da Secretaria de Mulheres do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), outra organização fundada por Chico Mendes, em 1986. Sua atuação é voltada para a proposição de políticas voltadas paras as mulheres dessas populações.
— A ideia é que as mulheres passem a ter um protagonismo maior nos territórios. Existe essa dificuldade de respeitar a posição de uma mulher liderando um movimento. Tem muitomachismo. Ainda é um processo que os próprios companheiros têm que perceber — afirma.
Ângela, que vivencia a situação da Amazônia a partir do Acre, critica a postura que avalia como permissiva e até incentivadora dos governos estadual e federal em relação ao desmatamento. Ela lembra a fala do atual governador do Acre, Gladson Cameli (PP), que, no final do mês passado, orientou os produtores rurais a não pagar multas ambientais. Ela considera que a floresta vive uma situação "calamitosa", mas comemora a mobilização recente em prol da Amazônia.
— Mais do que nunca, a gente precisa estar unido e precisa de força.

'Eles perderam o medo de nos ameaçar' (Ivaneide Bandeira Cardozo)

A floresta é a casa da historiadora e ativista Ivaneide Bandeira Cardozo. Até os 12 anos, foi criada na área onde hoje é demarcada a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e há mais de 30 atua na defesa do meio ambiente e dos povos indígenas da Amazônia.
Hoje, aos 60 anos, ela se divide entre a capital Porto Velho, onde se formou em História e concluiu o mestrado em Geografia, e as aldeias indígenas onde toca projetos pela Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. A frente da organização que ajudou a fundar em 1992, participou de expedições para prender madeireiros ilegais e invasores de terra e chegou a fazer aproximações com povos até então isolados.
— Uma vez pegamos um madeireiro cortando uma castanheira perto da Aldeia Jamari, dos Uru-Eu-Wau-Wau. Eu não estava sozinha, estava com 20 guerreiros. Chamamos a polícia para prendê-lo — conta, acrescentando que, apesar de viver sob ameaça, não sente medo na hora que precisar agir. — Não tenho medo. Sinto medo depois, quando vou pensar no que eu fiz, mas na hora não.
Ivaneide afirma que o fato de ser uma mulher e participar ativamente das ações na floresta não causa estranhamento entre os indígenas. O mesmo não acontece entre os homens brancos que, segundo ela, ainda não estão acostumados com lideranças femininas indo para o “enfrentamento”.
A ativista diz que as ameaças recebidas por ela e sua equipe, e as invasões registradas em terras indígenas onde trabalham, se multiplicaram neste ano. Com o avanço do desmatamento e das queimadas em Rondônia, Ivaneide se preocupa com os povos que ainda vivem isolados. Ela também denuncia o avanço da grilagem no Parque Nacional de Pacaás Novos, cuja área coincide em parte com a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
— Já tinha invasão nos outros governos, mas agora está aumentando absurdamente. Eles perderam o medo de nos ameaçar — afirma. — Tenho uma preocupação muito grande com os índios isolados. O medo é a gente nem saber que esses indígenas foram mortos.
Ivaneide lamenta o fim dos repasses internacionais para o Fundo Amazônia e considera que isso irá prejudicar o trabalho de proteção da floresta. A Associação Kanindé é uma das organizações que já recebeu recursos do fundo para projetos de elaboração e implementação de planos de gestão territorial em terras indígenas.

'Sentimos responsabilidade por nós e pelo mundo' (Nará Baré)

Nará Baré, de 41 anos, é em muitos sentidos pioneira na luta ambiental. Amazonense, ela é a primeira mulher a assumir a liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). E foi na gestão dela, iniciada em 2017, que se alcançou pela primeira vez na história da Coiab uma divisão paritária de líderes: dois homens e duas mulheres na coordenação executiva.
'Passamos a fazer nós mesmos a vigilância do território, que estava sendo cada vez mais negligenciado', diz Nara Baré Foto: Acervo Pessoal
Antes disso, em 2013, a indígena Nara foi indicada para concorrer a um dos postos de coordenadora executiva da entidade por aclamação de todas as mulheres presentes em uma assembleia realizada na época.
— Cerca de 80% da liderança no meio amazônico é formada hoje por mulheres. Somos muitas — afirma ela, hoje coordenadora geral da Coiab. — Mas no início eu sentia discriminação por ser mulher.
A atuação de Nará no Amazonas é para preservar os territórios indígenas, as unidades de conservação e a manutenção dos modos de vida tradicionais dos povos que lá vivem.
— A própria Conferência do Clima da ONU reconhece os nossos modos de vida tradicionais como um grande trunfo para frear as mudanças climáticas. Infelizmente, com as falas do nosso presidente incitando o garimpo e o desmatamento na Amazônia, nós sentimos uma responsabilidade ainda maior. Não só por nós, mas pelo mundo — diz a indígena.
Nara afirma que as leis e a fiscalização ambientais começaram a se flexibilizar no governo Dilma e, posteriormente, também no governo Temer. Já nessa época, organizações indígenas e ribeirinhos passaram a tentar "tapar o buraco" de vigilâncias que deveriam ser feitas pelo Estado.
— Passamos a fazer nós mesmos a vigilância do território, que estava sendo cada vez mais negligenciado. É uma autovigilância. Mas, agora, o desmatamento aumentou exponencialmente, e vemos que o governo não tem como meta a preservação da Amazônia — considera ela. — Ver essas queimadas se alastrando é muito preocupante. A gente percebe que o desmatamento tem aumentado. É mais do que estatística. A gente vê! E, mesmo o mundo todo se dando conta disso, o presidente do Brasil continua com um discurso vazio.

'Eu nunca abaixei minha cabeça' (Maria Creusa da Gama Ribeiro)

Foi aos 12 anos que a paraense Maria Creusa da Gama Ribeiro, hoje aos 50, começou a se interessar por preservação ambiental, sendo levada a reuniões de extrativistas por sua mãe e pelos seus irmãos mais velhos. Hoje, ela é manejadora florestal da reserva Verde Para Sempre, que engloba 1 milhão e 300 mil hectares e é onde vivem cerca de 15 mil pessoas, no estado do Pará. Nesse espaço, retirada ilegal de madeira não tem vez, e é o manejo comunitário que protege a área do desmatamento.
A reserva foi criada há quase 15 anos — a data será completada no próximo 4 de novembro —, e, nessa época, eram comuns as ameaças de morte contra os extrativistas responsáveis pela fundação da unidade de conservação. Com o tempo, a legitimidade da reserva foi se consolidando, e as grandes empresas e latifundiários que tentavam invadir aos poucos se recolheram.
O medo de Maria Creusa é que, agora, com o afrouxamento da fiscalização na região e o discurso antiambientalista do presidente Jair Bolsonaro, as ameaças e a sensação de insegurança voltem.
— Quando começamos a discutir a criação da unidade de conservação, fomos ameaçados, chegamos a sair de nossas casas. Eu fui pessoalmente ameaçada de morte. A gente aprende a conviver com isso. Eu nunca abaixei minha cabeça. Continuo minha luta, essa é minha missão. Mas, de um modo geral, nos últimos anos, a situação estava mais tranquila — conta ela, que tenta ser otimista: — Agora, nossa preocupação é que volte como era antes. Mas tenho fé de que isso não vai acontecer, que é só uma turbulência pela qual estamos passando. Tento pensar assim.
Ela destaca o quanto o manejo comunitário da madeira contribui para que a floresta fique de pé:
— Não existe forma mais correta de se trabalhar dentro da floresta do que por meio do manejo, de modo que você tenha recursos naturais tanto para você quanto para os que vêm depois de você. Essa lógica do manejo sustentável, não predatório, serve para a madeira, para a castanha, para a pesca.
Parte dos recursos da reserva vem da própria produção das famílias e outra parte é captada por meio do Instituto Chico Mendes (ICMBio). Chegava até eles verba oriunda do Fundo Amazônia, mantido pela Noruega e pela Alemanha, que agora está virtualmente extinto.
— Para nós, foi um choque — afirma ela, sobre a retirada de dinheiro do Fundo. — Não sabemos ainda como será o futuro.
Leda Antunes e Clarissa Pains
27 de agosto de 2019 às 14:53

Texto originalmente publicado pelo O Globo sob o título "Guardiãs da Amazônia: conheça quatro mulheres na linha de frente da defesa da floresta"

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