Alto Rio Negro
Quando um documento vale mais que
ouro
Foto: Iramylson de Freitas/Sejusc
Um documento
geralmente antigo, puído, perdido em um dos compartimentos da carteira, no
distrito indígena de Pari Cachoeira significa a sobrevivência. A carteira de
identidade na pequena vila, no extremo Noroeste do Amazonas, vale mais que
ouro. Vale comida.
Do alto de
São Gabriel da Cachoeira, só o verde cobre. É preciso parar no município para
abastecer o avião depois de quase três horas de voo de Manaus, a 851
quilômetros. Mais uma hora e quinze minutos depois, o piloto pede por mais
olhos para examinar as condições da pista de pouso do destino seguinte.
Foto: Iramylson de Freitas/Sejusc
De terra
batida e alguns muitos desníveis, a grama crescida da pista de Pari Cachoeira
denuncia que o local quase não recebe visitas vindas do alto. A maioria é de
homens do Exército, que têm alojamento instalado ao lado. A julgar pelas
dezenas de indígenas que aguardavam por ali, a conclusão é a mesma.
O acesso
principal ao distrito – não o mais simples – ocorre pelo Rio Tiqué. Barco
grande não atraca. A quantidade de pedras e corredeiras só deixa que cheguem as
rabetas e lanchas a motor.
Foi assim
que o professor João Paulo Barroso Boc, de 31 anos, chegou ao local. Ele
conduziu uma caravana de 16 alunos, de 12 a 17 anos, da comunidade São Joaquim
até Pari Cachoeira. Foram dois dias pelas águas para que os estudantes da
Escola Indígena Didiít pudessem tirar os primeiros documentos durante as ações
do projeto PAC em Movimento.
Foto: Iramylson de Freitas/Sejusc
Sem certidão
de nascimento ou RG, os adolescentes conseguem frequentar a escola, mas não
constam nos registros formais da Secretaria Municipal de Educação de São
Gabriel. "Essa documentação, eles estão precisando muito, porque pra eles
é muito importante, sabia? Muitos alunos não têm documentação para comer",
disse.
A quantidade
de merenda escolar encaminhada para Didiít é enviada conforme o número de RGs
registrados nas matrículas. Se há 20 alunos em uma sala e só dez deles com a
documentação, por exemplo, cada um come a metade do que deveria para
compartilhar com os demais. Por vezes, aquela é a única refeição do dia.
Foto: Iramylson de Freitas/Sejusc
Mais que
cédulas verdes
Em 20
minutos é possível percorrer o distrito de ponta a ponta. As casas são
construídas distantes umas das outras, como forma de demarcar a área de Pari
Cachoeira. Desde o último dia 14 de agosto, a vila vê dezenas de tendas azuis
entre os espaços vazios. São os acampamentos provisórios de moradores de 16
comunidades vizinhas que também precisavam emitir documentação.
Uma delas
serviu de abrigo para o agricultor João Bosco, de 45 anos, sua esposa Helena,
de 38, e os sete filhos da família Silva Ribeiro, moradores de São Joaquim.
A notícia do
PAC chegou a eles como afago. Não estavam falando de cédulas verdes com o nome
dos filhos, mas do direito à merenda escolar e ao auxílio do Bolsa-Família,
principal fonte de renda na localidade.
Foto: Jamile Alves/aCrítica
"Só ela
(esposa) tem o Bolsa-Família, mas é muito pouco. Agora eles (filhos) vão comer
melhor", contou João com o português arrastado, sem espaço nas mãos para
mostrar tantas identidades.
O agricultor
também conseguiu retirar o Cartão do Produtor Rural, que comprova ao INSS o
tempo trabalhado no setor primário e dá direito a outros benefícios. Uma semana
de acampamento e um amontoado de papeis depois, ele diz esperar melhorar a vida
da família.
“Eu trabalho
na roça. Planto batata, mandioca, vendo nas comunidades de rabeta, mas gasolina
é cara. Ganha pouco. Vai melhorar agora”, completou.
Foto: Jamile Alves/aCrítica
Cidadãos
Invisíveis
Os postos do
PAC Movimento foram montados na Casa Salesiana de Pari Cachoeira. Uma sala para
fotos, uma para recolher assinaturas e impressões digitais e outra para
solicitar o Cartão de Produtor. As longas filas no calor, os filhos no colo e
uma alimentação de dias baseada em farinha e água eram esforços menores que
colocar a família inteira em uma rabeta por cinco dias, até a sede de São
Gabriel.
Além da
distância, descer para a cidade é uma viagem que custa caro, onde cada centavo
é conquistado à duras penas. Dificuldade por dificuldade obtêm-se milhares de
brasileiros invisíveis, indígenas já contatados sem o título de cidadão do
próprio país. Realidade vivida até os 74 anos por Augusto Brasil Pires, morador
da comunidade Boca da Estrada.
Augusto é
indígena da etnia Hupda e nunca tirou a carteira de identidade. Portador de uma
paralisia que impediu o desenvolvimento de uma das pernas, o filho e a esposa
precisam se revezar para carregá-lo.
Foto: Jamile Alves/aCrítica
“Ele
conseguiu uma aposentadoria com ajuda de um político, mas o Banco do Brasil
começou a cobrar a documentação. Se ele não apresentar, disseram que vão tirar
dele”, explicou o tuxaua Tukano Protásio Peixoto, de 43 anos, que ajudou
Augusto e a família a ir até Pari Cachoeira.
O grupo
ficou alojado em um redário, montado em um Centro de Convivência, junto a
outros Hupdas. A foto 3x4 de Augusto foi tirada de dentro da rede, com uma
camisa branca fazendo o pano de fundo. Sem o domínio do português, ele usou a
linguagem universal. Sorriu.
PAC em
Movimento
A ação é
realizada mensalmente pela Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e
Cidadania (Sejusc). As atividades em São Gabriel da Cachoeira tiveram início no
dia 9 de agosto, na comunidade de Iauaretê, com biometria, emissão de CPF,
primeira e segunda via de carteiras de identidade e de certidão de nascimento.
Somente em Pari Cachoeira, 2.662 pessoas solicitaram alguns dos documentos. Ao
todo, o número de atendimentos chegou a 6,15 mil.
Foto: Jamile Alves/aCrítica
“O mais
importante disso tudo é o alcance na vida de cada cidadão. A gente percebe que
são crianças que precisam estudar, idosos que precisam de benefícios
previdenciários, benefícios assistenciais, jovens, adultos que precisam ter
acesso à saúde. Então a documentação pode parecer algo simples, mas faz muita
diferença na vida deles. Não é possível se tornar um cidadão sem a documentação
básica”, disse a titular da Sejusc, Caroline Braz.
Jamile
Alves, 24 de agosto de 2019 às 16:02
Texto originalmente publicado por aCrítica sob o título "Quando um documento vale mais que ouro"
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