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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Fundo Amazônia (DW)


Fundo Amazônia
Alta Floresta sofre com a paralisia

Comunidades rurais eram as maiores beneficiadas com recursos do fundo. Cidade já esteve em lista inglória de maiores desmatadores e conseguiu virar a página com apoio de projetos bancados pela iniciativa.
   
Pedro Lopes da Silva era garimpeiro, e o projeto financiado pelo Fundo Amazônia mudou sua mentalidade.

O ano de 2020 seria promissor para Pedro Lopes da Silva. Aos 75 anos, ele se preparava para receber novos integrantes de um projeto que, desde 2010, fez brotar florestas do tamanho de mais de 2.700 campos de futebol em cidades do extremo norte de Mato Grosso.
Seria o décimo ano de vida do projeto Sementes do Portal, onde Silva atua desde o início. Em sua nova fase, o plano era dobrar a área de vegetação recuperada e aumentar a renda dos participantes da iniciativa. Seriam mais de 2 mil famílias envolvidas no total, pequenos produtores rurais que coletam sementes e fazem o plantio para restauro da mata e produção de sistemas agroflorestais.
Mas toda a expectativa foi frustrada. Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência e o Ministério do Meio Ambiente paralisou o Fundo Amazônia no início de 2019, o Sementes do Portal parou também.
É do fundo que vem o dinheiro pago pelo trabalho de todas as famílias beneficiadas. Em troca, elas oferecem a garantia de que a Floresta Amazônica não é derrubada – sem terem que devolver o dinheiro investido.
Estabelecido em 2008 com doações principalmente de Noruega e Alemanha, o Fundo Amazônia financiou mais de 100 projetos de combate ao desmatamento e geração de renda no Brasil. Depois de assumir a pasta do Meio Ambiente, Ricardo Salles tentou reformular as regras desse acordo que, até então, era voltado exclusivamente para a proteção da maior floresta tropical do mundo. Até hoje, nenhuma proposta concreta foi apresentada.
Em 2019, ano de alta de 29,5% de desmatamento na Amazônia, o fundo não aprovou sequer um novo projeto. Procurado, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu aos questionamentos da DW Brasil.

Do garimpo ao restauro
Pedro Lopes da Silva chegou à região de Alta Floresta como garimpeiro. A entrada para o projeto fez com que mudasse sua mentalidade. As mãos, que já reviraram a terra e poluíram o ambiente com mercúrio, passaram a coletar e plantar sementes que viraram árvores.
"Tive conhecimento para dar valor ao meio ambiente. A mata, os rios, as águas não são separados da gente, a gente faz parte da natureza", explica. "E também é uma fonte de renda", adiciona.
Na casa de sementes que coordena, os latões de papelão estão praticamente vazios. A essa altura, época das chuvas, o plantio estaria a todo vapor. As famílias estariam recebendo o pagamento pelas primeiras sacas de sementes coletadas.
A paralisia do projeto Sementes do Portal desanimou o grupo. A proposta, que em 2020 entraria na sua terceira fase, foi uma das primeiras aprovadas pelo Fundo Amazônia, em 2010.
"O Fundo era um recurso que realmente apoiava as comunidades nesta região amazônica", comenta Ana Carolina Bogo, do Instituto Ouro Verde, ONG executora do Sementes do Portal.  "Não existem mais recursos disponíveis desta forma, que não exigem devolução do dinheiro", lamenta.
Na casa de Diversina Silveira de Jesus, que faz parte do projeto, o verde começa a voltar nas áreas de nascentes. O assentamento onde mora já funcionou como estoque de madeira que era extraída da mata. A família transformou o lugar numa agrofloresta, com pés de limão, banana e outros frutos.
Aos poucos, ela convenceu o marido a entrar para o Sementes do Portal. José Quadros de Jesus conta que já derrubou muita área de floresta para "patrões" que grilaram terras públicas.
"Eu exerci essa profissão por muito tempo, só derrubando, formando fazenda, plantando capim", admite Jesus. "Era só para abrir, só para segurar as propriedades para o fazendeiro", conta sobre o passado. Hoje, ao lado da esposa, ele diz que gostaria de ajudar a recuperar a floresta que ele mesmo ajudou a derrubar.

Passado inglório
Em Alta Floresta, a história do desmatamento desenfreado estimulou uma mudança de rumo. Em fevereiro de 2008, o município apareceu na primeira lista elaborada pelo Ministério do Meio Ambiente que reunia os maiores desmatadores da Amazônia.
"Isso trouxe uma insegurança jurídica para o município, uma instabilidade, se isso iria inviabilizar a parte econômica, se os produtores poderiam comercializar sua carne", relembra José Alessandro Rodrigues, funcionário da prefeitura.
O ponto de virada foi apostar numa estratégia que recuperasse áreas desmatadas e ajudasse o produtor a legalizar suas terras por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), previsto no Código Florestal. O dinheiro para viabilizar a proposta veio do Fundo Amazônia.
"O projeto Olhos D'água da Amazônia conseguiu efetivar mais de cinco mil hectares de área em parceria com os produtores do município e deu a condição de regenerar essas áreas, ou fazer o restauro, ou fazer sistemas agroflorestais", explica Rodrigues, diretor executivo da iniciativa da prefeitura municipal de Alta Floresta.

O pecuarista Valdemir Rugeri beneficiou-se do plantio de árvores.

Cinco anos depois, Alta Floresta saía da lista inglória. O município tinha cumprido a meta imposta pelo MMA para "limpar o nome": reduzir o desmatamento e regularizar pelo menos 80% das propriedades por meio do CAR.
O pecuarista Valdemir Rugeri foi um dos beneficiados. Perto de uma nascente, a área que reflorestou já tem árvores altas. Desde então, a água passou a correr ali todos os meses do ano.
"No futuro vai ficar melhor ainda porque fica uma lembrança de que já foi ruim, mas hoje se torna uma coisa boa para o nosso município, para o país, e acho que para o mundo", opina.

Futuro incerto
Alta Floresta tenta agora manter essa posição favorável, de cidade que abandonou o desmatamento. Mas, com o fim do Fundo Amazônia, a pressão vem de todos os lados.
"Esse modelo de agronegócio que era mais na área central do Mato Grosso, baixada cuiabana, tem subido e a soja já está muito presente na região. Tem algumas comunidades em que ela já tomou conta", avalia Ana Carolina Bogo. "A gente tem observado isso… Arrendamento de área, as pessoas saindo, a soja vem fazendo essa pressão da saída".
Renato Farias, do Instituto Centro de Vida, lamenta o apoio que a agricultura familiar perde com o fim do Fundo Amazônia. "A nossa região tem um potencial incrível em termos de produção da agricultura familiar. Uma agenda dessa vinculada a um trabalho como o Fundo Amazônia deu um salto muito grande para a região", comenta.
Na casa de sementes da comunidade Jacamim, coordenada por Pedro Lopes da Silva, o desejo é que a movimentação trazida pelos coletores volte. "Eu queria que o Fundo Amazônia continuasse", diz Pedro, antes de fechar o imóvel.
"Praticamente o primeiro recurso chega na mão do coletor de semente. E é um recurso bem distribuído", afirma o coordenador de uma das 12 casas do projeto.

Nádia Pontes (de Alta Floresta), 20 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

domingo, 19 de abril de 2020

Amazônia e Madeira (DW)


Amazônia
O Dilema da Madeira

Especialistas apontam que 50% da madeira retirada do bioma têm origem ilegal, e grande parte é destinada ao mercado nacional. Além de impactos ambientais, a exploração caminha lado a lado com violência.

Caminhão leva madeira retirada da floresta. Parte da madeira explorada ilegalmente na Amazônia é retirada de áreas protegidas.

A chacina em que morreram nove trabalhadores rurais no município de Colniza (MT), em abril de 2017, virou notícia no Brasil e no exterior. Ordenada por um madeireiro conhecido, a emboscada pretendia expulsar os moradores do local e abrir caminho para a exploração ilegal de madeira na região.
Meses depois, um relatório da ONG Greenpeace revelou que as madeireiras do acusado de ser o mandante do massacre – que mais de dois anos depois do crime continuava foragido – operavam normalmente, inclusive a Madeireira Cedroarana que processava madeira para exportação. Apesar da chacina e de indícios anteriores do envolvimento da empresa na exploração ilegal, nos quatro meses após o crime, pelo menos 11 carregamentos foram enviados para os Estados Unidos e a Europa. Na época, entre os seus principais clientes figuravam os EUA, Alemanha, França, Holanda, Dinamarca e Bélgica.
O massacre de Colniza é apenas um entre tantos outros casos da violência enraizados na exploração ilegal de madeira na Amazônia. A dificuldade de rastreamento da origem desta madeira, que acaba sendo legalizada ao longo de sua cadeia produtiva por meio de fraudes e falta de controle, impulsiona um negócio lucrativo e altamente destrutivo.
A Interpol estima que o comércio de madeira ilegal global movimente entre 51 bilhões e 152 bilhões de dólares por ano, ou seja, entre 208 bilhões e 622 bilhões de reais. Um estudo do Instituto Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) de 2016 indicou que, entre 2008 e 2015, um volume equivalente a 590 milhões de reais de madeira, levando em conta o valor da árvore em pé na floresta, foi retirado ilegalmente de Unidades de Conservação na Amazônia.

Mercado interno é o principal consumidor
Embora a exportação costume chamar mais atenção, o principal destino da madeira amazônica é, de longe, o mercado interno, que absorve cerca de 70% da produção. Entre as espécies mais cobiçadas estão ipê, mogno (ameaçada de extinção), cedro, jatobá e maçaranduba. Além de móveis, elas são usadas na construção, na fabricação de embarcações e em pisos.

Infográfico do desmatamento na Amazônia brasileira.

Especialistas estimam que mais da metade da madeira amazônica comercializada tenha origem ilegal. Um estudo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), confirmou uma superestimação no volume de árvores de determinadas espécies em planos de manejos florestais já licenciados, além de erros na identificação de espécies, o que gera créditos falsos de movimentação de madeira.
"Há vários estudos sobre o tema, mas, de maneira geral, todos concluem que mais de 50% da madeira produzida na Amazônia tem origem ilegal", afirma Carolina Marçal, da campanha para a Amazônia do Greenpeace.

Fraudes para regularizar madeira ilegal
Fraudes e falta de controle na documentação impulsionam o "aquecimento" do produto ilegal. Segundo André Campos, coordenador de pesquisa de cadeias produtivas da ONG Repórter Brasil, há uma série de maneiras de burlar o sistema de documentação e controle para legalizar a exploração ilegal.
Entre as fraudes mais comuns está a aprovação de planos de manejo que não condizem com a realidade da área, devido, por exemplo, à quantidade errada de árvores listadas ou ao fato de a área já ter sido completamente desmatada. Teoricamente, o aval da proposta dependeria de uma avaliação, que nem sempre é realizada ou envolve a corrupção de agentes públicos.
A partir deste plano de manejo, os madeireiros recebem créditos florestais correspondentes para a venda da madeira explorada. Campos relata que nesta etapa já houve inclusive casos de ação de hackers para adicionar créditos fictícios a empresas produtoras.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

"O produto vem acompanhado de uma documentação que, teoricamente, atesta a sua legalidade, mas, devido a todos esses processos de fraude e falta de controle, há baixa confiabilidade na comprovação documental. No fundo desse funil, ainda é difícil saber a real origem desta madeira, pois ela passou por várias mãos desde a exploração até a venda", explica Campo. "A ilegalidade entra no mercado legal por conta desta falta de políticas de rastreabilidade", acrescenta.
Parte da madeira explorada ilegalmente é retirada de áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas, e costuma vir acompanhada de violência e morte, como no caso de Colniza. Além de conflitos sociais, essa extração predatória também tem impactos ambientais.
"Quando não há um manejo sustentável adequado ocorre a degradação da floresta, que traz um prejuízo para o equilíbrio daquele ecossistema", diz Marçal.

Problema para quem respeita a lei
Essa atividade irregular também prejudica a exploração legal. "Quem está fazendo tudo certo é quem mais sofre, pois quem age irregularmente acaba vendendo a madeira mais barata por não ter os custos do manejo. Não tem como o manejo ficar em pé se houver essa competição desleal", observa Edson Vidal, especialista em manejo de florestas tropicais da Esalq/USP.
Segundo os especialistas, os primeiros passos para coibir a exploração ilegal são a revisão no processo de licenciamento e o monitoramento de toda a cadeia produtiva até o produto final comercializado. Na primeira fase, Vidal sugere o estabelecimento de métodos mais eficientes para a verificação de planos de manejo, por exemplo, com a utilização de tecnologias de imagens. Outra opção seria o teste de DNA da madeira como uma garantia ao comprador.
Para que essas mudanças aconteçam, diz Marçal, o mercado e os consumidores têm um papel fundamental de pressionar o Estado para garantir a aplicação de procedimentos previstos pela lei e acabar com fraudes que possibilitam o aquecimento da madeira ao longo de sua cadeia produtiva.
"Cabe ao mercado exigir garantias de que a madeira não esteja atrelada à exploração predatória da floresta, à violência e a mortes. O consumidor final deve tentar comprar um produto que tenha minimamente garantia de procedência. A grande responsabilidade, porém, continua sendo do Estado", acrescenta Marçal.

O papel das certificações
Enquanto esse cenário não muda, Marçal recomenda a certificação como meio de oferecer garantias sobre a procedência da madeira. Vidal também considera esse modelo interessante. Os dois pontuam, porém, a pouca quantidade de madeireiras certificadas na Amazônia e seu baixo impacto num vasto mercado.

Vista aérea mostra toras cortadas ilegalmente da floresta amazônica em Anapu, Pará.

Segundo Aline Tristão, diretora executiva do FSC Brasil, das cerca de 2 mil empresas de manejo florestal legal que operaram na região, apenas 15 são certificadas pela FSC. "Menos de 1% da Amazônia brasileira está certificada", ressalta.
Por ser uma adesão voluntária, ela acredita que o rigor e as exigências para adquirir o certificado possam afastar muitos madeireiros. O FSC, Forest Stewardship Council, é uma organização independente, não governamental, sem fins lucrativos, criada para promover o manejo florestal responsável.
Campos, por sua vez, é crítico das certificações. Além de haver casos de madeireiras envolvidas em fraudes com produtos certificados, um dos principais problemas seria a permissão para certificar apenas parte da produção. "Apesar de ser interessante em diversos aspectos, o selo FSC é usado às vezes para vender uma imagem que não corresponde ao grosso do que são os negócios de determinadas empresas."
Tristão pondera que existem mecanismos de controle para evitar o uso incorreto do selo e que é possível garantir a separação de produção. Além disso, a diretora executiva do FSC Brasil ressalta que, se forem comprovadas irregularidades, a empresa perde a certificação. "O sistema FSC tem uma série de critérios, o primeiro é atender às leis, não só ambientais, mas também sociais e trabalhistas, além de acordos internacionais", defende.

Clarissa Neher, 19 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

sábado, 18 de abril de 2020

Exploração e Destruição (DW)


Amazônia
Uma história de exploração e destruição (DW)

A preocupação com a preservação ambiental no Brasil é historicamente pequena perto de décadas de desmatamento quase em escala industrial. Um quinto da cobertura vegetal original não existe mais.

Área desmatada no Pará, em imagem de 2014.

Imensa, pouco habitada e distante dos principais polos econômicos do país, a região amazônica foi alvo de políticas governamentais variadas desde a época do Brasil Colônia. Inicialmente encarada como território a ser anexado e de coleta de produtos naturais, depois se tornou área de povoamento e grandes obras, espaço de natureza rica e povos nativos a serem preservados e região a ser desmatada para dar lugar à exploração mineral e ao agronegócio.
A delimitação conhecida como Amazônia Legal compreende hoje os sete estados da Região Norte, mais Mato Grosso e parte do Maranhão. São 5,2 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente a 60% do território nacional – se fosse um país, seria o sétimo maior do mundo, maior do que a União Europeia. É uma região diversa, com variedade de perfis morfológicos, climáticos e sociais, onde moram 29 milhões de pessoas, ou 14% da população brasileira.
A preocupação com a preservação ambiental da Amazônia é recente e se fortaleceu apenas após a Constituição de 1988. O desmatamento em grande escala, também relativamente novo, ocorreu nos últimos 50 anos. Em 1970, apenas 1% da sua floresta havia sido derrubada e, hoje, cerca de 18% da cobertura vegetal original não existem mais.

Entenda como a relação do poder público com a Amazônia evoluiu ao longo do tempo:
Colônia e Império: ampliação do território
Uma das primeiras iniciativas governamentais para explorar a região amazônica foi uma expedição em 1637 patrocinada pelo então estado do Maranhão e Grão-Pará, que enviou desbravadores pela floresta, que chegou ao Equador.
Nessa época, o Tratado de Tordesilhas ainda dividia o domínio da América entre Portugal e Espanha e deixava a maior parte da Amazônia para os espanhóis, o que não impediu os portugueses de fazer seguidas expedições para ampliar suas fronteiras, construir vilas, capturar e escravizar índios e coletar produtos valiosos da floresta, como castanhas, fibras e ervas medicinais, as drogas do sertão. Em 1750, um novo tratado entre Portugal e Espanha redefiniu os limites territoriais e incorporou a Amazônia ao Brasil.

Infográfico das regiões amazônicas.

Apesar de restrições legais para escravizar os índios a partir do século 18, na prática muitos deles viviam sob condições análogas à escravidão, explorados por colonos e pelo governo. Empreendimentos locais também usavam africanos escravizados, que trabalhavam em plantações de arroz e cacau, entre outras.
A economia amazônica começou a se dinamizar a partir de 1870, nos últimos anos do Império, com o ciclo da borracha. O látex, extraído das seringueiras, se tornou um insumo importante na indústria mundial. Uma elite local ser organizou em torno da exploração do produto, e os governos realizaram campanhas para atrair migrantes para trabalhar nos seringais.

República Velha: o primeiro ciclo da borracha
A região se enriqueceu bastante com o ciclo da borracha, pois o látex era então um produto praticamente exclusivo da Amazônia. Belém e Manaus se tornaram cidades prósperas, houve aumento da arrecadação de impostos e os governos no início da República patrocinaram novas iniciativas para atrair mão de obra para trabalhar nos seringais e na agricultura locais.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

As condições de trabalho, porém, eram duras, segundo o historiador César Augusto Queirós, professor da Universidade Federal do Amazonas. "A vida no seringal era muito complicada, era comum o uso de trabalho semiescravo e compulsório. Havia uma profunda exploração dos trabalhadores, afastados dos centros urbanos e distantes das famílias", afirma.
A partir de 1910, o início da produção de látex na Malásia derrubou a demanda pelo produto brasileiro, e a economia gomífera na Amazônia entrou em crise. Migrantes que haviam ido trabalhar nos seringais se mudaram para as cidades, que não estavam preparadas para recebê-los, e a região entrou em recessão.

Getúlio Vargas: fôlego da guerra e pecuária
Ao assumir o país em 1930, Getúlio estabeleceu como prioridade na Amazônia recuperar a economia extrativista para criar alternativas a uma região em crise e estabelecer colônias agrícolas para manter os trabalhadores de seringais no interior em vez de migrarem para as cidades, segundo Queirós.

Infográfico da população amazônica.

A virada, no entanto, só chegou com o início da Segunda Guerra Mundial e o ingresso do Brasil no conflito junto aos Aliados. A invasão da Malásia pelo Japão bloqueou o acesso da indústria dos Estados Unidos ao látex asiático, e para suprir a demanda o Brasil se comprometeu a dobrar sua produção. O governo de Getúlio desenvolveu campanhas para atrair mais trabalhadores para os seringais, especialmente do Nordeste.
O segundo ciclo da borracha durou pouco. Com o fim da Segunda Guerra, em 1945, o fornecimento de látex asiático se normalizou, e a economia da Amazônia voltou a entrar em crise.
Foi durante a gestão de Getúlio que também se fortaleceu a ocupação de áreas de Mato Grosso para a pecuária extensiva, em uma época em que ainda não havia preocupação com a preservação do meio ambiente.

Ditadura militar: o desmatamento em grande escala
A chegada do regime militar ao poder resgatou e amplificou a ideia de que seria necessário ocupar a Amazônia para consolidar o domínio sobre esse território. O governo lançou campanhas para povoar a região com o intuito de protegê-la de um imaginado risco de invasão estrangeira. A iniciativa era resumida pelo slogan "Integrar para não entregar", que servia de justificativa para grandes projetos e degradação ambiental.
Foi um período marcado por obras de infraestrutura, exploração mineral, expansão do agronegócio e desprezo pelos índios. "Os indígenas eram considerados uma população sem perspectiva de progresso, e foram criadas propagandas para habitar essa região, que o governo dizia ser sem homens, sem habitantes", diz a historiadora Lilian Moser, professora da Universidade Federal de Rondônia.
Em 1970, o governo militar lançou o Programa de Integração Nacional e anunciou obras que serviriam de estímulo para atrair migrantes, especialmente do Nordeste. Um dos eixos foi a abertura de rodovias, como a Transamazônica, que ligaria a Paraíba ao sul do Amazonas, e a BR-174, para conectar Manaus à Venezuela, e a destinação das áreas que margeiam as estradas a particulares. Também há investimentos em projetos de mineração, como o Programa Grande Carajás, no sul do Pará, onde a Vale explorou diversos minérios, como ferro, estanho e bauxita.
As grandes obras tiveram impacto negativo nos povos indígenas, cujos direitos eram negados pelo regime militar. "O Maurício Rangel, que era ministro do Interior [de 1974 a 1979], disse que os povos indígenas não poderiam ser um obstáculo e que dentro de 10 ou 20 anos não haveria mais índios. Ele só não colocou claramente se não haveria mais índios porque eles seriam 'incorporados' à sociedade capitalista ou se seriam dizimados", diz Queirós.
A construção da BR-174, por exemplo, quase extinguiu a etnia Waimiri-Atroari - sua população foi reduzida de 3 mil em 1972 para 350 em 1983, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade. O órgão registrou violações dos direitos de indígenas durante a ditadura, como retiradas forçadas de terras, massacres, torturas, envenenamentos e contágios estimulados de doenças, e estima que 8.350 indígenas foram mortos em decorrência da ação direta ou omissão do regime militar.

Infográfico dos recursos minerais mais comuns na região amazônica do Brasil.

Nesse período também ocorreu a expansão do agronegócio no Pará e em Mato Grosso, com incentivo à pecuária extensiva e políticas fundiárias que beneficiavam grandes proprietários. "O governo militar foi na direção oposta aos anseios por reforma agrária e se colocou do lado dos interesses dos grandes agricultores", diz Queirós.
Segundo ele, boa parte das terras nessa região pertenciam ao estado e foram repassadas a grandes posseiros e grileiros, que tinham a obrigação de desmatar ao menos 50% da área, com uso frequente de trabalhadores em condição análoga à escravidão.
Em 1967, foi criada a Zona Franca de Manaus, com o objetivo de estabelecer indústrias na região, que teve impacto econômico positivo para a Amazônia, mas sem valorizar as "potencialidades locais", diz Queirós. 

Período democrático: esforço de preservação e retrocessos
A Constituição de 1988 trouxe inovações positivas para a preservação da Amazônia. Houve o reconhecimento de direitos dos povos indígenas e foi acelerado o processo de demarcação de suas terras. Na mesma época, se firmou no debate mundial a necessidade de preservar o meio ambiente, expressa na conferência internacional Rio-92.
Em suas gestões, Fernando Henrique Cardoso homologou 99 terras indígenas na Amazônia, e Luiz Inácio Lula da Silva, 65, atribuindo alto nível de proteção a essas áreas. E novas obras na região passaram a ter menor impacto ambiental devido às regras de licenciamento ambiental.

Infográfico do desmatamento na Amazônia.

A taxa de desmatamento na Amazônia, porém, seguiu pressionada pela exploração da madeira e o agronegócio e continuou alta até 2004, quando atingiu 27,7 mil hectares. A partir daquele ano, políticas conduzidas por Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, que criaram novas áreas de proteção legal e fortaleceram órgãos de fiscalização, começaram a dar resultado - o desmatamento caiu de forma sustentada até 2012, quando alcançou 4,5 mil hectares. Depois houve uma reversão, e o desmate voltou a subir. 
"No final do governo Lula houve redução de investimentos nos processos de fiscalização na Amazônia, e Marina Silva saiu do governo fazendo críticas ao que ela identificava como retrocessos. Havia uma tentativa de se manter uma base no Congresso que desse governabilidade e a necessidade de dialogar com interesses da bancada ruralista. Isso continuou e se acentuou no governo Dilma", diz Queirós. Segundo ele, "não é à toa" que o desmatamento voltou a crescer a partir de 2012 e se acentuou em 2016, com a chegada de Michel Temer ao poder, liderando um governo "que claramente se identificava com os ruralistas".
A reversão da proteção ambiental atingiu seu auge em 2019, com o governo de Jair Bolsonaro, cuja atuação se inspira nos princípios que nortearam os projetos da ditadura militar. O presidente reduziu o poder dos órgãos de fiscalização, fez diversas menções à exploração de recursos minerais na Amazônia e questionou dados oficiais sobre o desmatamento. "A história às vezes nos prega essas peças", diz Queirós.
Para Moser, os discursos de Bolsonaro têm impacto simbólico negativo na população e podem estabelecer as bases para mais retrocessos no futuro. "O próprio pequeno produtor começa a concordar que 'não precisa de tanta mata', que 'o índio não precisa de toda essa terra' e que 'o que dá dinheiro é a soja'", diz.

Bruno Lupion, 18 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.

Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

União dos Povos da Floresta (DW)


Amazônia
União dos Povos da Floresta (DW)

Com um passado de trabalho análogo à escravidão, ex-seringueiros se organizam e viram fornecedores importantes da indústria de cosméticos. Um exemplo de como lucrar diretamente com uma Amazônia preservada.

Projeto engloba toda a cadeia de produção, desde coleta, beneficiamento em usina na comunidade e transporte.

No novo galpão, as máquinas na usina recém-instalada sob o comando de Maria José Pinto Costa estão prontas para rodar. O fim das chuvas na Amazônia anuncia o início da produção, que, devido à pandemia do novo coronavírus, precisou de adaptação.
É da mata que vem a andiroba e o murumuru, que, sob o comando de Zefa, como Maria José é chamada, são transformados num óleo valioso vendido para a indústria de cosméticos. As sacas de sementes vêm da Reserva Extrativista (Resex) Médio Juruá, no Amazonas, a quase três horas de avião monomotor da capital Manaus.
A unidade de conservação, que fica no município de Carauari, tem cerca de dois mil moradores. Muitas famílias chegaram à região a partir de 1900 para viver da seringa, no auge do ciclo da borracha. Atualmente, mais de 400 famílias, de dentro e dos arredores da reserva, trabalham na coleta das sementes fornecidas para a usina.
"Tudo vem da natureza. A gente depende dela", resume Zefa. "É uma coisa que a gente preserva muito, tanto a andiroba como o murumuru. Às vezes, derrubam. A gente não quer isso", comenta ela, na entrada da usina, que fica na comunidade Roque, a maior da reserva.
Os contratos de 2020 já estão fechados. Até o fim do ano, a cooperativa formada pelos coletores deve produzir 20 toneladas de óleo de andiroba e 15 toneladas de manteiga de murumuru.
"A gente recebe uns 250 mil quilos de sementes por ano", detalha Sebastião Feitosa da Costa, presidente da Codaemj, Cooperativa de Desenvolvimento Agro-Extrativista e de Energia do Médio Juruá. "O óleo é usado em cosméticos, mas outras empresas estão sinalizando interesse", pontua Costa, mencionando a indústria do plástico.

Uma história da independência
Sebastião Pinto de Sousa, de 64 anos, assistiu ao começo dessa trajetória. Basto, como é conhecido, nasceu na região e foi um dos responsáveis pela criação da reserva extrativista, na década de 1990.

A vida numa reserva extrativista na Floresta Amazônica. Assistir ao vídeo12:03

"Antes de a reserva existir, a gente cortava seringa, no tempo dos patrões. A gente era obrigado a vender toda a produção para eles", relembra Basto. Autoproclamados donos da terra, os "patrões" expulsavam os seringueiros que não obedeciam às ordens e, em troca do látex, forneciam alimentos superfaturados.
Na época, com a influência de setores da Igreja Católica, os seringueiros passaram a se organizar em busca da liberdade. "Nós soubemos que Chico Mendes tinha a reserva extrativista lá no Acre", conta Basto.
Emocionado ao relembrar o assassinato de Chico Mendes a mando do fazendeiro Darly Alves da Silva, em 1988, Basto diz que a Resex Médio Juruá se espelhou na luta de Mendes. "Ele teve um papel muito importante", conclui.
Raimundo Pinto de Sousa, 68 anos, irmão de Basto, também viveu aqueles tempos. "Hoje, a gente chega aqui, em qualquer comunidade, o cara tem um freezer, uma televisão, uma geladeira", cita exemplos sobre a melhora da qualidade de vida. "Só os patrões tinham antigamente. Tudo o que a gente tem hoje, graças a Deus, nas nossas casas, a gente não deve nada a ninguém".

Saber tirar, saber deixar
À frente da gestão da Resex, Manoel Silva da Cunha, filho de seringueiro, cresceu na região. Dividido entre o trabalho na sede do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Icmbio), em Carauari, e o monitoramento em campo dentro dos 2,8 mil quilômetros quadrados da reserva, Cunha conhece bem o rio Juruá e as 14 comunidades dentro da área.
Quando iniciaram o plano para extrair sementes, em 2005, havia dúvidas. Questionava-se, por exemplo, se a coleta de forma mais potencializada poderia desequilibrar o ecossistema. Quinze anos depois, o gestor comemora. "Hoje, mais árvores ‘filhotes' crescem debaixo das adultas do que aqueles anos do começo do manejo", revela.
O resultado, segundo Cunha, mostra que o uso não atrapalhou o crescimento das espécies. "E isso a gente sabe que foi baseado nas regras que a gente criou. Pode coletar, mas não é de qualquer jeito", afirma.
Embora o desmatamento e o fogo pareçam ameaças distantes que os moradores acompanham por notícias na televisão, alguns medos são discutidos nas comunidades.
"Isso das mudanças climáticas, é algo que a gente tem muito medo, de desequilibrar", diz Cunha. "O que a gente tira como comunidade, como família de extrativista, vem dos recursos naturais. E se desequilibra qualquer recurso, é direto na renda da família."
O segundo ponto na lista de preocupações são ações e projetos mal pensados pelo governo federal. "E mal planejadas, que podem desestruturar todo um mecanismo de uma região", diz Cunha, citando como exemplos a construção de barragens, exploração de gás, petróleo e minério.

Bom futuro
Eulinda Martins Fidelis de Lima, moradora da comunidade Nova União, prefere pensar no que a floresta tem a oferecer. Ela costuma ser a campeã no número de latas coletadas, medida usada pelos moradores, equivalente a 12 quilos.
"Quanto mais levantar o preço da nossa produção, para nós é melhor. Quanto melhor o preço, mais a gente se anima para coletar", comenta, sob pés de murumuru, dentro da mata, depois de um dia de trabalho na companhia de familiares. 
 
Comunidade Nova União, localizada na Resex Médio Juruá

Na outra margem do rio, a uma hora de barco, Quilvilene da Cunha, de 25 anos, jovem líder comunitária, faz parte da primeira turma de universitários do curso de pedagogia oferecido na região. Neta de pioneiros que fundaram a Resex, ela quer manter a geração dela unida.
"Nós, povos da floresta, temos que nos unir, do jeito que o Médio Jurá fez, lutar pelas coisas que nós mesmos queremos. Por que não têm outros olhares aqui pra gente preocupados com as dificuldades que passamos", comenta, depois de uma tarde de aula.
O futuro está garantido, segundo ela, se a floresta permanecer. "A gente vive na da floresta. Tira o sustento dela. Então a gente cuida para ter sempre. E não serve só para a gente que mora aqui, influencia até em outros lugares, que precisam da chuva, por exemplo", argumenta.


Nádia Pontes (de Carauari), 16 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.

Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Desenvolver sem Desmatar (DW)


Amazônia
Desenvolver a Economia sem Desmatar (DW)

Autor de livro sobre práticas sustentáveis na Amazônia explica por que associar desenvolvimento econômico ao desmatamento é uma falácia e indica novos caminhos para gerar riqueza sem destruir.

Árvores verdes. Ricardo Abramovay propõe formas de conservar a mata e ao mesmo tempo gerar crescimento econômico.

Quem defende o desmatamento de áreas na Amazônia costuma dizer que ele é necessário para levar progresso à região e desenvolvê-la economicamente. Essa foi uma das teses do regime militar para o bioma e segue presente em setores do Governo Federal e em parte dos empresários do agronegócio. Sob essa lógica, manter a floresta reduz a possibilidade de um país carente, como o Brasil, gerar riqueza.
O conflito entre preservar a floresta e desenvolver a região, porém, é uma ideia errada e fora de lugar, afirma Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). Ele lançou em outubro o livro “Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza”, em que analisa e propõe formas de conservar a mata e gerar crescimento econômico ao mesmo tempo.

Como desenvolver a região da Amazônia sem desmatar?
Primeiro, é necessário corrigir os rumos do que já se faz. Os produtores de soja devem reiterar o compromisso da Moratória da Soja e respeitar a regra de que não se compra soja de terras recentemente desmatadas. A pecuária precisa se tornar racional e sustentável.
Hoje, a pecuária na Amazônia é em grande parte de baixíssima produtividade. E interromper as atividades ilegais ligadas ao garimpo e à exploração clandestina de madeira. Essas são as premissas, não adianta sonhar com outra coisa se não conseguimos nem um mínimo de organização empresarial civilizada em torno daquilo que já existe.

E como ir além disso para gerar mais riqueza na região?
A verdadeira alternativa é a economia da floresta em pé, em substituição à economia da destruição da natureza que predomina hoje. Essa economia do conhecimento da natureza é composta de elementos que já existem de maneira precária ou que ainda não existem, mas são potenciais.
Os que existem de maneira precária e precisam ser desenvolvidos referem-se às cadeias de valor baseadas em produtos da floresta em pé. O açaí é o exemplo mais emblemático, o rendimento de um hectare de açaí é muito superior ao de um hectare de soja [R$ 26,8 mil para o açaí e R$ 2,8 mil para a soja por ano em 2015].

Foto de Ricardo Abramovay. "A verdadeira alternativa é a economia da floresta em pé", Ricardo Abramovay.

Há outras cadeias de valor relativamente existentes, como castanha do Pará, borracha e piscicultura, mas exploradas em condições muito precárias. A piscicultura de peixes de água doce em cativeiro na Amazônia tem a vantagem sobre as formas mais conhecidas de piscicultura em cativeiro, como o salmão. Os peixes da Amazônia criados em água doce não são carnívoros, logo o impacto ambiental é mais baixo.
Além disso, o turismo ecológico no mundo cresce 15% ao ano, e na Amazônia ele tem um potencial de crescimento imenso. E você tem também todo um potencial de moléculas da biodiversidade para a produção de fármacos. O Brasil vive o paradoxo de ser o país com a maior diversidade do mundo e ter uma indústria farmacêutica concentrada na produção de genéricos, pouco voltada a inovações para as principais moléstias do século 21. É outro potencial para a valorização da floresta em pé que não estamos aproveitando.

Qual a relação entre desmatamento e crescimento econômico?
Quando o Brasil se destacou pelo combate vigoroso ao desmatamento, reduzido em 80% na Amazônia entre 2004 e 2012, ao mesmo tempo a produção agropecuária da região aumentou devido à tecnologia avançada aplicada nas áreas de produção de soja, sobretudo em Mato Grosso.
Se o desmatamento avança, quais são seus protagonistas? Às vezes dizem que quem desmata são os pobres que não têm alternativa de vida, mas não é assim. Desmatar é caro, exige investimento, máquinas, contratar trabalhadores. O desmatamento hoje é feito por grupos organizados, que, diante da mensagem de que a suposta indústria de multas não vai parar  suas atividades, se organizam na expectativa de terem legalizados direitos que não lhes foram reconhecidos sobre terras públicas. Essa é uma explicação importante para a explosão do desmatamento em 2019.
É claro que no desmatamento a economia cresce de alguma forma, você vende madeira, têm exploração de garimpo, mas é um crescimento baseado em ilegalidade e muito menor do que quando você tem condições legais para exercer as atividades econômicas. Um ambiente institucional que coíba o desmatamento ilegal é um ambiente em que investidores responsáveis poderão agir.

Que políticas públicas o Estado brasileiro deve desenvolver para incentivar a economia da floresta em pé?
A primeira é uma sinalização clara de que haverá fiscalização e que não será tolerada a permanência de atividades ilegais. É importante mudar a narrativa do governo federal, porque ela forma uma cultura empresarial. E a narrativa do governo hoje é que, se a Amazônia não for desmatada, os 25 milhões de pessoas que moram lá vão morrer de fome. Uma narrativa perniciosa que estimula os atores locais a adotarem as piores práticas.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

Também é preciso valorizar o trabalho feito por organizações não governamentais, que junto com as populações tradicionais na floresta são os atores dessa economia do conhecimento da natureza. E apoiar a junção entre comunidade científica, organizações não governamentais e empresários voltados à exploração sustentável da floresta. Hoje existem algumas iniciativas fazendo isso, como o Centro de Empreendedorismo da Amazônia, mas sem qualquer tipo de apoio ou sequer entusiasmo governamental.
E também apoiar o multilateralismo democrático, destruído por razões ideológicas pelo atual governo. O Fundo Amazônia era uma das expressões mais emblemáticas da cooperação entre três países democráticos, Noruega, Alemanha e Brasil, para enfrentar o desmatamento.

Qual é o formato para estimular a inovação na exploração sustentável da floresta?
Uma proposta, do Carlos Nobre e do Ismael Nobre, são os laboratórios de inovação da Amazônia, para descentralizar o processo de inovação e multiplicar as possibilidades de junção entre conhecimentos tradicionais e científicos vindo da academia e das organizações que fazem pesquisa. As universidades têm papel importante, mas sozinhas não são capazes de fazer isso. Existe uma comunidade de pessoas com doutorado em municípios da Amazônia que podem ser a base para isso.
Agora, o formato exato ainda ninguém sabe, é por meio da experimentação, que precisa de apoio governamental. Nos Estados Unidos, quando se tem desafios dessa natureza, a Darpa (agência de pesquisa do departamento de Defesa) lança editais com desafios para estimular processos de experimentação. É importante estimular que grupos procurem dar respostas ao desafio.

Há um embate entre setores do agronegócio e ambientalistas sobre o grau de desmatamento a ser admitido na Amazônia: o desmatamento zero versus o desmatamento de até 20% nas áreas privadas, permitido pelo Código Florestal. Qual é a saída?
A pressão institucional para o desmatamento zero, não o desmatamento ilegal zero, é imensa. Ela se baseia na ideia de que os produtores [e consumidores] de soja querem dissociar o produto de qualquer perigo de desmatamento na Amazônia. E existem condições técnicas de a produção de soja se expandir no Brasil e no mundo sem desmatar a Amazônia e o Cerrado.
Autorizar algo na Amazônia que não seja a economia da floresta em pé pode satisfazer as necessidades de um produtor individual, mas não os interesses do país e da preservação do ecossistema. Não há razão para não aderir ao desmatamento zero integral. Mas o dado importante é que o desmatamento que ocorreu em 2019 não foi o desmatamento desses 20% [autorizados por lei]: 90% do desmatamento de 2019 foi ilegal.

Como você avalia a postura do agronegócio brasileiro em relação à Amazônia?
Há um conjunto de empresários interessados em interromper a devastação na Amazônia, favoráveis ao desmatamento dos 20% [permitidos], mas apoiam a Moratória da Soja, não apoiam a invasão de terras públicas. Por outro lado, há um conjunto de atores econômicos oportunistas incentivando políticas predatórias. A oposição hoje não é bem agronegócio versus ambientalistas, porque uma parte do agronegócio está junto com os ambientalistas, mas dentro do próprio agronegócio.

Bruno Lupion, 15 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.