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sábado, 18 de abril de 2020

Tainá e os Guardiões da Amazônia (O Estado de São Paulo)


Tainá e os Guardiões da Amazônia
A importância da amizade.
    

O mundo da criança, repleto de imaginação e fantasia, é sempre uma fonte de ideias para a criação de produtos que entrem nesse universo infantil. Uma dessas produções é a animação Tainá e os Guardiões da Amazônia, que acaba de chegar ao catálogo da Netflix Brasil e da América Latina. Também é exibida pelos canais Nickelodeon, Nick Jr. e na Band.


Quando Pedro Carlos Rovai, que morreu em 2018, e Virginia Limberger idealizaram as histórias de pequena Tainá, provavelmente sonharam que agradaria a um grande público, mas não devem ter imaginado que o sucesso seria tamanho. “Hoje, podemos dizer que Tainá é um case de sucesso”, afirma Virginia, que comemora o fato de a trilogia de filmes ter sido licenciada para TVs de 45 países, além da série e dos clipes musicais chegarem a vários vizinhos, com som em português e em espanhol.


“Temos parceiros na distribuição na Europa e na China, é incrível ver Tainá dublada em chinês!”, comemora a criadora, que revela a produção do longa-metragem Tainá e os Guardiões da Amazônia: Em Busca da Flecha Azul, da segunda temporada da série animada e também dos planos de um musical para o teatro.


Composta por 26 episódios curtos, de 11 minutos cada um, a animação é destinada a crianças de 3 a 6 anos, mas certamente agrada a um público maior com suas características visuais, além das historinhas cheias de aventura e com o objetivo de motivar as relações de amizade, respeitando a cultura indígena.


Ao lado de Tainá e sua flecha azul mágica estão seus amigos, o macaco Catu, o urubu-rei Pepe e a pequena ouriço Suri. Quando algo de anormal acontece, os animaizinhos chamam a valente Tainá com o grito ‘cru-cru’ e ela surge para, juntos, resolverem o problema.


“Colocamos na tela uma protagonista de aventura, menina indígena, independente e forte, vivendo na nossa Floresta Amazônica. E apresentamos esse mundo a ser respeitado e valorizado para as crianças da primeira infância”, explica a criadora.


Ela revela que a ideia para a criação de Tainá e todos os personagens surgiu de viagem do diretor Pedro pelo Rio Negro, no Amazonas, quando observou que “as crianças ribeirinhas tinham como bichinhos de estimação filhotinhos de jacaré, macaquinhos, bichos preguiça e até mini cobras, e que viviam numa completa harmonia com a natureza”. Essas cenas o pegaram em cheio e, ao voltar, trouxe consigo a ideia de contar essa história para o mundo. “Assim Tainá foi criada.” Na equipe, estão o roteirista principal Rafa Campos Rocha, o diretor André Forni, e as vozes de Alice Crisci (Tainá), Caio Guarnieri (Catu), Yuri Chesman (Pepe) e Laura Chasseraux (Suri).


Importante tema de amor à natureza e preservação dos seres que a habitam, que precisa ser lembrado, aproveitando que neste domingo, 19, é o Dia do Índio, e passando esses ensinamentos a todos, principalmente às gerações que estão vindo. Para Virginia, Tainá traz, intrinsecamente, a mensagem positiva de cuidado com a natureza e de respeito à diversidade cultural. “São valores importantes de se aprender desde cedo. Dessa forma, através do lúdico, da aventura, Tainá contribui para tornar o mundo melhor”, diz. Ela destaca ainda que são vários os ingredientes para se fazer um produto para um público tão jovem e que variam de acordo com a idade a ser atingida.


A criadora conta que esses personagens foram ideia do cineasta Pedro Rovai, com quem ela produziu os três filmes da trilogia em live-action. “Estou envolvida com esse trabalho desde a concepção, há mais de 20 anos, e criamos um forte envolvimento com as protagonistas dos filmes, Eunice Baía, a Tainá dos filmes 1 e 2, e Wiranu Tembé, a estrela indígena do terceiro filme. Acabamos formando uma família em torno da personagem, a família Tainá”, afirma, lamentando o fato de que “Pedro não pôde acompanhar o final do desenvolvimento da série de animação, mas sua criação está ali, na tela”.

Eliana Silva de Souza, 18 de abril de 2020 às 05h00

quinta-feira, 16 de abril de 2020

União dos Povos da Floresta (DW)


Amazônia
União dos Povos da Floresta (DW)

Com um passado de trabalho análogo à escravidão, ex-seringueiros se organizam e viram fornecedores importantes da indústria de cosméticos. Um exemplo de como lucrar diretamente com uma Amazônia preservada.

Projeto engloba toda a cadeia de produção, desde coleta, beneficiamento em usina na comunidade e transporte.

No novo galpão, as máquinas na usina recém-instalada sob o comando de Maria José Pinto Costa estão prontas para rodar. O fim das chuvas na Amazônia anuncia o início da produção, que, devido à pandemia do novo coronavírus, precisou de adaptação.
É da mata que vem a andiroba e o murumuru, que, sob o comando de Zefa, como Maria José é chamada, são transformados num óleo valioso vendido para a indústria de cosméticos. As sacas de sementes vêm da Reserva Extrativista (Resex) Médio Juruá, no Amazonas, a quase três horas de avião monomotor da capital Manaus.
A unidade de conservação, que fica no município de Carauari, tem cerca de dois mil moradores. Muitas famílias chegaram à região a partir de 1900 para viver da seringa, no auge do ciclo da borracha. Atualmente, mais de 400 famílias, de dentro e dos arredores da reserva, trabalham na coleta das sementes fornecidas para a usina.
"Tudo vem da natureza. A gente depende dela", resume Zefa. "É uma coisa que a gente preserva muito, tanto a andiroba como o murumuru. Às vezes, derrubam. A gente não quer isso", comenta ela, na entrada da usina, que fica na comunidade Roque, a maior da reserva.
Os contratos de 2020 já estão fechados. Até o fim do ano, a cooperativa formada pelos coletores deve produzir 20 toneladas de óleo de andiroba e 15 toneladas de manteiga de murumuru.
"A gente recebe uns 250 mil quilos de sementes por ano", detalha Sebastião Feitosa da Costa, presidente da Codaemj, Cooperativa de Desenvolvimento Agro-Extrativista e de Energia do Médio Juruá. "O óleo é usado em cosméticos, mas outras empresas estão sinalizando interesse", pontua Costa, mencionando a indústria do plástico.

Uma história da independência
Sebastião Pinto de Sousa, de 64 anos, assistiu ao começo dessa trajetória. Basto, como é conhecido, nasceu na região e foi um dos responsáveis pela criação da reserva extrativista, na década de 1990.

A vida numa reserva extrativista na Floresta Amazônica. Assistir ao vídeo12:03

"Antes de a reserva existir, a gente cortava seringa, no tempo dos patrões. A gente era obrigado a vender toda a produção para eles", relembra Basto. Autoproclamados donos da terra, os "patrões" expulsavam os seringueiros que não obedeciam às ordens e, em troca do látex, forneciam alimentos superfaturados.
Na época, com a influência de setores da Igreja Católica, os seringueiros passaram a se organizar em busca da liberdade. "Nós soubemos que Chico Mendes tinha a reserva extrativista lá no Acre", conta Basto.
Emocionado ao relembrar o assassinato de Chico Mendes a mando do fazendeiro Darly Alves da Silva, em 1988, Basto diz que a Resex Médio Juruá se espelhou na luta de Mendes. "Ele teve um papel muito importante", conclui.
Raimundo Pinto de Sousa, 68 anos, irmão de Basto, também viveu aqueles tempos. "Hoje, a gente chega aqui, em qualquer comunidade, o cara tem um freezer, uma televisão, uma geladeira", cita exemplos sobre a melhora da qualidade de vida. "Só os patrões tinham antigamente. Tudo o que a gente tem hoje, graças a Deus, nas nossas casas, a gente não deve nada a ninguém".

Saber tirar, saber deixar
À frente da gestão da Resex, Manoel Silva da Cunha, filho de seringueiro, cresceu na região. Dividido entre o trabalho na sede do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Icmbio), em Carauari, e o monitoramento em campo dentro dos 2,8 mil quilômetros quadrados da reserva, Cunha conhece bem o rio Juruá e as 14 comunidades dentro da área.
Quando iniciaram o plano para extrair sementes, em 2005, havia dúvidas. Questionava-se, por exemplo, se a coleta de forma mais potencializada poderia desequilibrar o ecossistema. Quinze anos depois, o gestor comemora. "Hoje, mais árvores ‘filhotes' crescem debaixo das adultas do que aqueles anos do começo do manejo", revela.
O resultado, segundo Cunha, mostra que o uso não atrapalhou o crescimento das espécies. "E isso a gente sabe que foi baseado nas regras que a gente criou. Pode coletar, mas não é de qualquer jeito", afirma.
Embora o desmatamento e o fogo pareçam ameaças distantes que os moradores acompanham por notícias na televisão, alguns medos são discutidos nas comunidades.
"Isso das mudanças climáticas, é algo que a gente tem muito medo, de desequilibrar", diz Cunha. "O que a gente tira como comunidade, como família de extrativista, vem dos recursos naturais. E se desequilibra qualquer recurso, é direto na renda da família."
O segundo ponto na lista de preocupações são ações e projetos mal pensados pelo governo federal. "E mal planejadas, que podem desestruturar todo um mecanismo de uma região", diz Cunha, citando como exemplos a construção de barragens, exploração de gás, petróleo e minério.

Bom futuro
Eulinda Martins Fidelis de Lima, moradora da comunidade Nova União, prefere pensar no que a floresta tem a oferecer. Ela costuma ser a campeã no número de latas coletadas, medida usada pelos moradores, equivalente a 12 quilos.
"Quanto mais levantar o preço da nossa produção, para nós é melhor. Quanto melhor o preço, mais a gente se anima para coletar", comenta, sob pés de murumuru, dentro da mata, depois de um dia de trabalho na companhia de familiares. 
 
Comunidade Nova União, localizada na Resex Médio Juruá

Na outra margem do rio, a uma hora de barco, Quilvilene da Cunha, de 25 anos, jovem líder comunitária, faz parte da primeira turma de universitários do curso de pedagogia oferecido na região. Neta de pioneiros que fundaram a Resex, ela quer manter a geração dela unida.
"Nós, povos da floresta, temos que nos unir, do jeito que o Médio Jurá fez, lutar pelas coisas que nós mesmos queremos. Por que não têm outros olhares aqui pra gente preocupados com as dificuldades que passamos", comenta, depois de uma tarde de aula.
O futuro está garantido, segundo ela, se a floresta permanecer. "A gente vive na da floresta. Tira o sustento dela. Então a gente cuida para ter sempre. E não serve só para a gente que mora aqui, influencia até em outros lugares, que precisam da chuva, por exemplo", argumenta.


Nádia Pontes (de Carauari), 16 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.

Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Gado, Soja, Desmatamento (DW)


Amazônia
Gado e Soja no Ciclo do Desmatamento (DW)

Agricultura e pecuária pressionam a Amazônia há décadas e são fruto do modelo adotado pelo regime militar para "desenvolver" a região, que já perdeu uma área de floresta equivalente a mais de duas Alemanhas.

Gado em fazenda na Amazônia. Presente na Amazônia desde o século 17, pecuária na região foi incentivada pelo regime militar.

A Floresta Amazônica passou por diversas tentativas de colonização ao longo da história do Brasil, mas foi durante o regime militar que o "desenvolvimento" da Amazônia se tornou uma prioridade para o governo, sob o lema "integrar para não entregar". A ocupação do bioma impulsionou o avanço de fronteiras agrícolas por regiões antigamente cobertas por florestas.
Até a década de 1970, apenas uma área pouco maior do que a de Portugal, que tem cerca de 92 mil quilômetros quadrados, havia sido desmatada na região. Com o discurso de expandir e modernizar, o regime militar impulsionou obras de infraestrutura que se tornaram responsáveis pela devastação do bioma. A construção de estradas na floresta abriu caminho tanto para o chamado progresso como para o desmatamento, que, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2018 já atingia uma área superior a duas Alemanhas: 783 mil quilômetros quadrados na Amazônia Legal.
Cinco décadas depois, Sorriso, no Mato Grosso, se tornou a capital da soja e do agronegócio, e o pasto passou a ser a cobertura que ocupa 80% da área desmatada desde então.
A expansão agropecuária na região ocorreu como um efeito dominó, diz o geógrafo Hervé Théry, da Universidade de São Paulo (USP). O modelo mais comum começa com a abertura da floresta por madeireiros, que levam árvores de maior valor econômico. Em seguida, chegam os pecuaristas e pequenos agricultores.
"Os dois grupos são culpados pelo desmatamento, porém, os grandes têm muito mais meios e fazem mais estragos. Os pequenos se instalam para produzir alimentos para a família e para vender. Depois de um tempo, a fertilidade da terra diminui e eles precisam ir para outro lugar. Geralmente, colocam capim e vendem para os pecuaristas", explica Théry.

Gráficos comparam cobertura florestal na Amazônia entre 1985 e 2017.

Os últimos a chegar neste modelo são os sojicultores, que compram áreas desmatadas utilizadas anteriormente para a criação de gado. Ao longo dos anos, as fronteiras deste ciclo são pressionadas cada vez mais para o norte.

Pasto e gado
Um dos primeiros atores neste processo de expansão sobre a floresta, a pecuária está presente na Amazônia desde o século 17, quando foi introduzida por ordens religiosas. Apesar de ter uma presença histórica no bioma, de acordo com a geógrafa Susanna Hecht, do Instituto Superior de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, em Genebra, na Suíça, a pecuária inicialmente era voltada para fornecer alimento e, apenas após o golpe militar de 1964, passou a ser utilizada para a ocupação de terras.
Em suas políticas de desenvolvimento da Amazônia, o regime militar ofereceu uma série de incentivos legais e fiscais para a expansão da atividade econômica no bioma. Grandes empresas também foram beneficiadas. Um exemplo emblemático foi a fazenda-modelo da montadora alemã Volkswagen no sul do Pará, denunciada na imprensa internacional pelo desmatamento causado na região no final da década de 1970.
Devido à necessidade de pouca mão de obra, à facilidade de implementação e a uma logística mais simples para seu escoamento, a pecuária se tornou a atividade ideal na política de integração do regime militar, explica Hecht. "Historicamente, a pecuária assumiu um papel importante de incorporação de terra, tomando terras públicas e as transformando em propriedades privadas, além de ser um mecanismo de especulação de terra", pontua.

Soja
Anos depois, chegou a vez da soja entrar na Amazônia. Isso só foi possível graças ao avanço de pesquisas agronômicas no desenvolvimento de sementes e técnicas que possibilitaram o cultivo do grão em regiões tropicais. A expansão da commodity começou no sul do país e seguiu avançando para o norte, entrando primeiro no Cerrado e, posteriormente, no bioma amazônico.
"A demanda contínua na década de 1990 e início dos anos 2000 criou uma dinâmica de desmatamento em que a soja substituiu os pastos existentes, estimulando novos desmatamentos para a criação de gado na Amazônia", afirma a cientista política Regine Schönenberg, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59.

Além do aumento da demanda mundial pelo grão, melhorias na rede de infraestrutura e, principalmente na BR-163, conhecida como rodovia da soja, que liga o Mato Grosso a Santarém, no Pará, impulsionaram a expansão da atividade na região.
Por serem os últimos a chegar neste ciclo, os produtores de soja argumentam que não contribuem para o desmatamento. Na opinião do geógrafo Antonio Ioris, da Universidade de Cardiff, essa retórica é uma falácia devido à sinergia entre os setores.
"Em termos retóricos, pega bem para o setor de grãos dizer que não desmata. Nessa lógica, eles tentam se eximir de responsabilidades. Mas, ainda que muitas vezes não seja o sojicultor que desmata a floresta, o pecuarista desmata sabendo que a terra vai ganhar valor e que poderá vendê-la para o sojicultor”, explica Ioris.
Nesse ciclo, pesquisadores destacam um dos principais fatores que contribuem para continuidade deste processo: a grilagem e posterior legalização destas terras. "Pode demorar um pouco mais ou um pouco menos, mas no final das contas essa terra acaba sendo regularizada, e quem está lá ou seus familiares passam a ser os proprietários", afirma a geógrafa Neli Aparecida de Mello-Théry, da USP.

Clarissa Neher, 15 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha.
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.


Amazônia no destaque internacional (DW)


Amazônia
Destaque inédito na ciência internacional (DW)

Recém-criado, o Painel Científico para a Amazônia compila todo o conhecimento já produzido sobre a maior floresta tropical do mundo. Ciência busca dar respostas para evitar o avanço da destruição.

Floresta queimando, com muita fumaça. Estudo aponta que queimadas influenciam formação de nuvens e afetam quantidade de chuvas.

Num escritório em São José dos Campos, interior de São Paulo, o ritmo intenso de reuniões é para apresentar ao mundo um trabalho pioneiro. Liderados no Brasil pelo climatologista Carlos Nobre, dezenas de pesquisadores compilam todo o conhecimento científico já produzido sobre a Floresta Amazônica e propõem caminhos para evitar o seu desaparecimento.
Andrea Escalada, pesquisadora da Universidade San Francisco, de Quito, também lidera a força-tarefa, que reúne cientistas dos nove países amazônicos: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname.
Com cautela, ela explica que há um senso de emergência entre todos os que se dedicam aos estudos da floresta. "Não queremos ser alarmistas, mas o que temos visto é muito, mas muito preocupante", afirma Escalada.
Poucos dias antes desse diálogo, Nobre e Escalada se espantaram com dados sobre a diminuição de chuvas e aumento de temperatura na Amazônia prestes a serem publicados. A principal autora do estudo, Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) confirma a informação à DW Brasil.
O artigo dela vai mostrar que, nos últimos 40 anos, a temperatura média nos meses de agosto e setembro aumentou muito na Amazônia. A região do sul do Pará vive a pior situação, com elevação da temperatura três vezes maior que a média mundial.
A conclusão desse artigo certamente não passará despercebida pelo grupo internacional liderado por Nobre, chamado de Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês). Com o primeiro relatório finalizado até dezembro de 2020, o painel quer deixar ainda mais claro o impacto que a maior floresta tropical do mundo tem sobre o planeta.
"Do ponto de vista do estoque de carbono, por exemplo, é uma importância enorme. Se 50%, 60% da Amazônia virarem savana, significa uns 200 bilhões de carbono indo para a atmosfera só da floresta", ressalta Nobre. Ou seja, o acúmulo de gás dessa fonte, junto com a queima de combustível fóssil, vai levar o planeta a um aquecimento maior que o 1,5 ⁰C estipulado no Acordo de Paris.
Sobre o relatório do painel em andamento, Nobre classifica como capítulo mais desafiador o que trará soluções que cientistas, economistas e representantes da sociedade civil irão apresentar para que governos ajam na proteção da floresta. A ideia é que as propostas visem não só a sustentabilidade ambiental, mas considerem aspectos sociais e econômicos.

Ciência da floresta
É a primeira vez que uma rede internacional permanente de cientistas se dedica à Amazônia dessa maneira. A iniciativa nasceu dentro da Sustainable Development Solutions Network, ligada à Organização das Nações Unidas.
Descrita por sua exuberância e biodiversidade há séculos por desbravadores europeus, o conhecimento sobre as interações da floresta e o clima global é relativamente recente.
O ponto de partida foi em 1983, quando a primeira torre equipada para fazer investigações foi instalada em Manaus. Com 60 metros de altura, a estrutura fincada na reserva Adolpho Ducke media os fluxos de vapor de água da copa das árvores.
Vinham dali os primeiros indícios de que a Amazônia produzia uma enorme quantidade de vapor d'água que se transformava em chuva em outras regiões do país. O físico Enéas Salati foi um dos responsáveis por essa descoberta, que passou a ser conhecida como "rios voadores".
Foi só em 1998 que um grande projeto saiu do papel para investigar mais a fundo o funcionamento da Floresta Amazônica e seus impactos regional e global. O Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA, na sigla em inglês) reúne mais de 200 instituições brasileiras e internacionais, e instalou novas torres de medições pelo território.
Nobre foi um dos coordenadores científicos da empreitada. "Foi difícil convencer os militares a aprovar esse projeto internacional. Foram dois anos até sair o LBA, que se tornou o maior experimento numa floresta tropical até hoje realizado", relembra.
Em seus mais de 20 anos de vida, o LBA trouxe respostas consideradas divisoras de água. "Muito do que a gente conhece hoje sobre os processos que estão acontecendo na Amazônia foi devido exclusivamente a esse projeto", afirma Paulo Artaxo, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), que já presidiu o comitê científico.
Artaxo coordenou estudos que mostraram como partículas finas suspensas na atmosfera, os aerossóis, interferem no clima. Uma das conclusões é que uma grande concentração de aerossóis, como os emitidos durante as queimadas, altera os processos de formação e desenvolvimento de nuvens mudando a quantidade de chuvas que caem não só na Amazônia, mas no centro e sudeste do Brasil.

Ponto sem retorno
Com décadas dedicadas à compreensão da floresta, Nobre foi autor de muitos estudos de impacto. Em 1990, os primeiros artigos faziam previsões sobre como a alta do desmatamento poderia reduzir as chuvas e aumentar a temperatura.
Em 2007, com base em modelos matemáticos rodados em computador, Nobre apontou que, caso 40% da Floresta Amazônica desaparecessem, a densa mata alcançaria um ponto crítico de desequilíbrio, ou tipping point, e se transformaria numa savana. Em 2017, essa projeção foi corrigida: em vez de 40%, 20% de destruição seriam suficientes para a morte da densa Amazônia.

Amazônia brasileira: uma história de destruição. Assistir ao vídeo 02:59

Quando relembra essa trajetória, Nobre não se orgulha com a constatação de que as previsões feitas lá trás estão se confirmando. "Sinceramente, eu não imaginei que, em 2020, a gente já veria essa virada", comenta sobre o chamado tipping point.
"As medições já estão mostrando o aumento da estação seca e suas consequências. Estamos vendo o aumento da mortalidade de árvores típicas da Amazônia e a sobrevivência de árvores menores, mais resistentes, do cerrado [a savana brasileira]", lamenta.
Junto a essa mudança biológica, os resultados colhidos por Luciana Gatti aprofundam essa preocupação. A Amazônia, que sempre retirou com eficiência CO2 da atmosfera, o principal vilão do aquecimento global, agora libera esse gás estufa.
"Estamos vendo com medidas, com dados, o que Nobre preconizou há tanto tempo. Infelizmente", afirma Gatti. "Já vemos redução de quase 25% das chuvas na estação seca na região sudeste da Amazônia", adianta alguns pontos que serão publicados em breve.
Os impactos não ficam restritos ao local. "Nós estamos perdendo a Amazônia com a função que ela tem de gerar chuva, de regular o clima. Quem mais vai perder, num primeiro momento, é o agronegócio. Por que a chuva vem de lá", comenta.
A pesquisadora ressalta que a ciência dedicada à floresta já mostra que as chuvas estão diminuindo em áreas-chave de produção agrícola no país. "Haverá perdas para o agronegócio, os alimentos ficarão mais caros e também já observamos escassez de água no Sudeste brasileiro durante as secas na Amazônia, que são os meses de inverno", finaliza Gatti.

Nádia Pontes, 15 de abril de 2020.
Deutsche Welle, Alemanha. 
Com apoio do Rainforest Journalism Fund e Pulitzer Center.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Coronavirus e Missionários (O Globo)


Coronavírus
Funai não tem controle de terras indígenas

Vista área do Vale do Javari, onde missionários fizeram voos de helicóptero em plena pandemia de coronavírus Foto: Divulgação/Univaja

O ingresso de missionários em terra indígena com a presença de povos isolados em meio à pandemia do coronavírus mostra inércia da Fundação Nacional do Índio (Funai) no controle dessas áreas e revela que o órgão está entregue a um "proselitismo religioso agressivo" e a um setor do agronegócio "troglodita". A opinião é compartilhada por dois ex-presidentes da instituição, Sydney Possuelo e Márcio Meira.
Nesta segunda-feira, O GLOBO mostrou que religiosos da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) fizeram voos de helicóptero para o Vale do Javari sem autorização da fundação, mesmo depois da edição de uma portaria do órgão e de recomendações do Ministério Público Federal (MPF) de combate ao novo coronavírus para proteção aos indígenas. Regras da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) também foram infringidas.
Mais longevo entre os presidentes da Funai, o antropólogo Márcio Meira (2007-2012) diz que o órgão deveria ir além do procedimento protocolar de proibir autorizações de ingresso a terras indígenas na crise do coronavírus e defende ações mais enérgicas do Poder Público e da fundação.
- Aquela região tem forte presença de índios isolados. Do procedimento protocolar está completamente errado uma vez que vivemos uma pandemia. A prioridade da Funai hoje é retirar todo mundo de lá. Entrar com a Polícia Federal e o Ibama e arrancar todos os garimpeiros, madeireiros e missionários, todos aqueles não indígenas.

O ex-presidente da Funai Márcio Meira Foto: Funai/Divulgação

Para ele, a crise do coronavírus esconde e ao mesmo tempo escancara a letargia com que a Funai tem se apresentado diante de questões urgentes nos conflitos em terra indígena.
- A pandemia do coronavírus está, de certa forma, sendo um biombo para esconder a ação violenta desenfreada na Amazônia como um todo, não só contra os povos indígenas, mas também de ambientalistas e lideranças. A mistura disso tudo com coronavírus é simplesmente terrível.
Na opinião de Meira, o contexto político vivido no país e em diversos órgãos do governo federal prejudica ainda mais ações efetivas que protejam os povos indígenas.
- Acho que é uma unanimidade no meio indigenista de que não há, desde 1988, uma situação pior do que esta de agora contra os povos indígenas, como estamos vendo neste governo Bolsonaro. O comando da Funai, por exemplo, foi entregue a grupos do setor do agronegócio mais atrasado, que não tem compromisso com os direitos humanos e nem o meio ambiente. Não quero generalizar, eu falo dos trogloditas.

Um grupo de missionários comprou um helicóptero para explorar áreas indígenas de difícil acesso e evangelizar índios que ainda não tiveram contato com a civilização. Órgãos do governo responsáveis pela área dizem que não autorizaram incursão dos religiosos

O ex-presidente da Funai vê com preocupação a posse de um missionário ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (Ricardo Dias Lopes) para a coordenação-geral de índios isolados.
- Esses missionários fazem parte de um segmento de proselitismo religioso mais agressivo do ponto de vista da imposição, de um discurso de uma religião sobre a cultura dos povos tradicionais, desrespeitoso.
Meira lembra o episódio da morte de indígenas da etnia Zo’e, no interior do Pará, quando missionários norte-americanos desrespeitaram as leis brasileiras e contataram os então nativos isolados.
- Aquele genocídio deu início a uma postura institucional da Funai que desde então era de proibir qualquer religioso em terra indígena com a presença de qualquer missionário em áreas de indígenas isolados ou de recente contato, que é o caso do Javari.
Ao mesmo tempo em que nega ter dado autorização para missionários entrarem no Vale do Javari, a Funai contemporiza a presença desses religiosos no local.
"A Funai informa que a presença desta missão na área habitada pela etnia Marubo refere-se a tempos anteriores à instalação da Unidade Descentralizada da Funai na região, a Coordenação Regional do Vale do Javari. Os missionários contam com o consentimento de lideranças indígenas para a permanência no local", diz nota da fundação enviada ao GLOBO, sem levar em conta a infração de sua própria portaria.
- A terra indígena é uma terra da União, o órgão responsável por ela é a Funai. Por esse aspecto jurídico, de domínio e propriedade da terra, o controle tem que ser da Funai - afirma Meira.
- Ainda que os Marubo tenham sido contactado há muito tempo, por se tratar de uma terra onde há registro de povos isolados, simplesmente não poderia entrar ninguém ali sem autorização para praticar proselitismo religioso.
'Se é irregular, tira e bota para fora'.

O indigenista Sydney Possuelo durante expedição com os índios Korubo em 1996. Foto: Arquivo Pessoal.

Ex-presidente da Funai entre 1991 e 1993, o indigenista Sydney Possuelo é considerado uma das maiores autoridades quando se trata de povos indígenas isolados. Ele foi responsável por suspender as autorizações para que missões religiosas entrassem em terras indígenas durante sua gestão e expulsou os missionários da Missão Novas Tribos no episódio dos Zo’e.
- O episódio dos Zo’e foi emblemático. Eu botei todo mundo para fora. Eu cheguei e falei: sai todo mundo daí já, peguem suas coisas e vão embora. Daqui a dois, três dias eu vou chegar com uma equipe e quero todos fora daí. Não está previsto em lei, é tudo irregular, tira e bota para rua. É isso que a Funai tem que fazer - defende.
Possuelo diz que a Funai não tem controle nenhum de quem entra e sai de terras indígenas quando o ingresso é pelos ares.
- A Funai nega a autorização de ingresso e daí? Diz que eles estão lá há tantos anos. E daí? A Funai é o órgão de lei que deve zelar pelos índios. Não ter autorizado não significa que não tenha que ir atrás, saber o que está acontecendo lá no Javari, por que que não houve vigilância? Então, ela que vá à Anac e às autoridades que controlam o espaço aéreo para investigar quem autorizou esses voos. Quem é o piloto? Esse piloto está com a carteira em dia? A manutenção dessa aeronave como estava? - questiona.

 O missionário Jevon Rich da Missões Novas Tribos do Brasil (MNTB) supostamente sendo resgatado pelo R66. Funai nega que tenha autorizado ingresso de helicóptero e de nenhum outro voo na região do Vale do Javari Foto: Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB)/Divulgação.

Possuelo faz coro ao colega diante da presença de religiosos em áreas estratégicas dentro da Funai para contato com os povos isolados e de recente contato.
- Num contexto de pandemia, olha a incoerência de tudo isso! Num momento que a grande arma para índios e não índios é exatamente o isolamento e algumas tribos naturalmente estão isoladas, esse isolamento está sendo violado e quebrado por interesse religioso. É um absurdo. Para você ver o tamanho do absurdo que nós chegamos é só olhar e ver que temos um missionário na coordenação de povos isolados da Funai. Nunca um missionário poderia ter um cargo desses. A menos que a política seja essa: estabelecer o contato. E a política não é esta, a política vigente é a de não contato - diz.
Segundo ele, falta atitude do Estado e maior controle das fronteiras e áreas indígenas, que nunca passou por uma fiscalização de qualquer tipo de autoridade regional.
- O Estado não faz nada porque não quer. Se o Estado quer exercer a tutela sobre os povos indígenas, se o Estado quer exercer a sua autoridade sobre o seu patrimônio, pela preservação dos povos indígenas, o Estado simplesmente age, retira esses missionários e briga na Justiça. O que está acontecendo é uma "semi-permissão”, o território está semiaberto.
Ele compartilha a opinião de Meira de que invasores de terras se aproveitam da crise do coronavírus, principalmente na Amazônia.
- Em tempos de coronavírus, a crise serve de pano de fundo para destruição ambiental. Entre nós e o meio ambiente tem esse véu que se chama coronavírus, que desvia a nossa atenção enquanto os caras estão lá na Amazônia destruindo, metendo máquina, acabando com tudo, e a Funai diz "eu não autorizei" a entrada de ninguém.
O indigenista também critica a postura do governo Bolsonaro em relação à condução das políticas indígenas.
- Bolsonaro foi o pior inimigo dos povos indígenas de todos os tempos. O bolsonarismo representa uma política que foi pensada para destruir todo um histórico da Funai. Tudo que fizemos de bom está sendo destruído - finaliza.
Procurada, a Funai ainda não se manifestou sobre as opiniões de seus ex-presidentes.

Daniel Biasetto
14 de abril de 2020 às 12:53hs

Coronavírus e Invasores (Pública)


Coronavírus e Invasores
A Situação dos Indígenas no Brasil


Precariamente assistidas pelo governo e pressionadas pela crescente onda de invasões em seus territórios, as comunidades indígenas enfrentam quase sozinhas o avanço da pandemia do coronavírus nas aldeias. Até o final de segunda-feira (13), o vírus já havia matado três indígenas — um adolescente Yanomami, de 15 anos, em Roraima, uma idosa Borari, de 87 anos, em Alter do Chão, no Pará, e um homem da etnia Mura, de 55 anos, em Manaus — e contagiado nove pessoas no total. Outros 23 casos estão sendo tratados como suspeitos e 31 foram descartados, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde (MS).
“A melhor forma de prevenir agora é manter as comunidades isoladas e orientar que não saiam e nem recebam visitas. Temos um histórico muito perverso de doenças contagiosas, que dizimaram etnias inteiras no passado. Todos estão assustados”, diz Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A preocupação maior das entidades, segundo ela, é se prevenir contra a fase mais dura do contágio, que ameaça as comunidades indígenas, proporcionalmente, na mesma projeção de avanço às cidades.
Longe da briga travada entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, as comunidades indígenas da Amazônia contam basicamente com o trabalho de suas lideranças comunitárias, das entidades indigenistas e profissionais de saúde, que travam uma guerra quase solitária contra o vírus. “Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”, diz Sônia Guajajara.

“Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”, relata Sônia Guajajara.

Há duas semanas ela vinha pressionando a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, pela antecipação da campanha de vacinação contra H1N1 nas aldeias, prevista para o final de abril, e para que se adote como critério a possibilidade de contágio comunitário, uma vez que em muitas regiões, além da miscigenação, há forte interação entre aldeias e cidades. Nesta segunda (13), o secretário nacional de Saúde Indígena, Robson Santos Silva anunciou que a vacinação começará na próxima quinta-feira, com a distribuição de 750 mil vacinas para comunidades indígenas de todo país.
Os profissionais de saúde estão coletando amostras de material para análise laboratorial de pessoas que apresentem sinais da Covid-19 e que tenham viajado. Os demais são avaliados pelos sintomas e medicados como gripe. Mas não têm, segundo Sônia Guajajara, os prometidos kits para testagem rápida. “Não é gripezinha. É uma doença altamente letal e com risco maior aos indígenas”, diz a coordenadora da APIB.
O vaivém descontrolado de pessoas nos garimpos ilegais, segundo as entidades indigenistas ouvidas pela Agência Pública, é atualmente o grande desafio dos profissionais de saúde e das lideranças que lutam para evitar o contato. “Exigimos que os órgãos de segurança tirem os invasores das terras indígenas. O risco de contágio é iminente”, diz Sônia. APIB e CIMI sustentam que no vácuo deixado pela ausência da Funai, Agência Nacional de Mineração (ANM) e da redução dos controles pela Polícia Federal e Exército, os garimpos ilegais, grilagem de terras e exploração ilegal de madeira estão aumentando na Amazônia. Lideranças dos Karipuna, em Rondônia, alertaram entidades indigenistas sobre invasores limpando áreas a 10 quilômetros da Aldeia Panorama para extrair madeira. Levantamento do jornal O Estado de São Paulo, com base em informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), aponta que as áreas desmatadas praticamente dobraram na Amazônia, saltando de 2.649 quilômetros quadrados, para 5.076 quilômetros quadrados.
O ritmo do avanço da mineração ilegal é igualmente preocupante. “Só nas terras dos Yanomami já são mais de 30 mil garimpeiros”, disse o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Antônio Eduardo Oliveira. Até o final do ano passado, a estimativa era de 20 mil garimpeiros. Oliveira afirma que a crise sanitária fragilizou ainda mais os controles e abriu brechas para a ação dos invasores. Segundo ele, a SESAI, que já havia afastado seus agentes das áreas de conflito com restrição a viagens imposta pela Funai, não tem plano de emergência preventivo ou de contenção caso a doença avance sobre as comunidades indígenas.

Antônio Eduardo Oliveira é coordenador do Cimi

Robson Santos Silva, o secretário de Saúde Indígena, disse à Pública que a SESAI estruturou seu plano de ação para acompanhar a evolução da doença. “O plano é móvel e pode ser modificado a cada etapa”, disse ele. Num vídeo divulgado pelo site da SESAI, Silva alertou que nesta semana começa a fase mais complicada. “Estamos entrando na pior etapa, que é essa que se inicia agora. O vírus tende a se expandir”, disse ele, apelando para que os indígenas permaneçam isolados e em suas comunidades. A SESAI, segundo ele, cuida da saúde básica em distritos indígenas, enquanto o SUS atenderá a todos, incluindo os casos mais graves de indígenas infectados. O secretário disse que não quer acusar os hospitais, mas afirma que os três indígenas que faleceram não deixaram suas aldeias com sintomas do coronavírus.
“Desde o início da crise estamos cobrando a ação do governo, mas não há até agora qualquer resposta. Com o sucateamento da Funai os riscos aumentaram”, afirma Oliveira. O CIMI pediu que seus 200 funcionários envolvidos com assistência aos índios saíssem de aldeias e passassem a monitorar à distância a situação. Sônia Guajajara afirma que a Funai foi desmontada e reaparelhada para atender ruralistas e mineradoras, estimuladas pela política do governo Bolsonaro de incentivos às atividades econômicas em terras indígenas. O ministro da Justiça e da Segurança, Sergio Moro, a quem a Funai é subordinada, segundo ela, se comporta como quem ignora completamente os riscos do coronavírus. “Ele não fala nada”, cutuca.
Na última segunda (13), Moro quebrou o silêncio. Disse que o contágio que resultou nas três mortes ocorreu fora das aldeias e que as ações do MJ começaram pelo isolamento nas comunidades. Segundo ele, visitações a comunidades só em casos excepcionais, para levar suporte. As invasões, que chamou de intromissão, Moro disse tratar-se de um desafio aos órgãos de controle.
Há duas semanas a APIB, com a ajuda do Ministério Público Federal, conseguiu derrubar parte de uma portaria do presidente da Funai, Marcelo Xavier, que permitia às coordenações regionais fazer contato com índios isolados, tarefa complexa e delicada, executada por um departamento específico da autarquia. Em tempos de pandemia o contato com gente despreparada, alerta Sônia, representaria um alto risco porque índios isolados não têm defesas no organismo nem contra os vírus mais comuns.
Também o Ministério Público Federal recomendou ações emergenciais de proteção à saúde dos povos indígenas e citou “cenário de risco de genocídio” sem as ações recomendadas.
Coordenador do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), Enoque Taurepang afirma que a movimentação de garimpeiros e dos empresários que os financiam, está gerando um cenário de alto risco para os Yanomami, que já apresentam sérios problemas de saúde em decorrência do derrame de mercúrio em rios e córregos na extração de ouro.

Na avaliação de Sônia Guajajara, o ministro Sergio Moro tem ignorado completamente os riscos do coronavírus

“Infelizmente a situação do garimpo nos Yanomami é incontrolável. Tem empresários de outros estados dentro das áreas. A gente chega lá e fala que é proibido, mas eles não obedecem, não conhecem a palavra não. Eles mudam o nome da invasão: dizem que é trabalho e não atendem”, conta Taurepang, que tem usado as redes sociais para orientar as 245 comunidades indígenas de Roraima filiadas ao CIR.
Como as atividades do Exército na região também estão funcionando precariamente em decorrência da crise sanitária, segundo ele, os empresários de garimpo intensificaram as invasões certos de que não sofrerão represálias. A última ação conjunta da Polícia Federal e Exército para desalojar garimpeiros ocorreu no dia 13 de março, na comunidade de Napoleão, da etnia Macuxi, na TI Raposa Serra do Sol. Os dois órgãos desmontaram um garimpo em construção, prenderam o empresário que financiava a atividade e quatro indígenas.
“Hoje já não conhecemos mais nem as rotas que estão sendo usadas pelos garimpos ilegais. Estão entrando sem a preocupação de ter o exército no encalço deles. A gente não pode fazer muita coisa e nem sabe direito o que está acontecendo nos garimpos nesse momento. Uma coisa é a comunidade lutar contra as invasões e outra situação é ter um presidente que faz com que essas atividades aconteçam dentro das nossas terras. Um presidente que em toda oportunidade fala de exploração mineral”, critica o dirigente.
Ele diz que a lei não funciona nos garimpos ilegais: “Lutamos contra o Estado, contra essa doença e não sabemos até quando podemos segurar todos esses ataques. Se fosse pela lei indígena daria para dar um jeito. Mas somos subordinados a um Estado, a lei e a Constituição, que só funciona para beneficiar os empresários nesse governo. Não podemos fazer muita coisa”.
Ele diz que a ausência de órgãos de órgãos do Estado e a falta de equipamentos básicos nos postos de atendimento para os profissionais de saúde — como luvas, máscaras e álcool em gel e de remédios — estão levando medo de contágio aos índios e às lideranças que fazem a mediação entre sedes de vilas e aldeias.
Ontem, o jornal O Estado de São Paulo informou que há duas semanas a Funai recebeu mais 11 milhões de recursos emergenciais para usar na proteção indígena mas não gastou nenhum centavo.
O coordenador de saúde indígena da região Leste de Roraima, Adriano Corinthia, afirma que há uma atenção especial com a entrada de venezuelanos e com o controle do fluxo entre as aldeias, vilas e cidades, mas que o atendimento é o de rotina, sem material que permita fazer o teste de coronavírus. “Temos uma reserva mínima de materiais para os profissionais de saúde e medicamentos (apenas) para tratamento sintomatológico caso surja algum caso”, disse o enfermeiro Manoel Avelino, que trabalha com os Yanomami. Para suprir a carência de material, o governo federal enviou ao Estado peças ilustrativas de campanha com informações recomendadas pelo MS. Segundo ele, os garimpos ilegais são áreas de risco de contágio.
No ano passado, a insegurança na região levou o CIR a organizar grupos de vigilância, proteção e monitoramento, os chamados guardiões, para garantir o controle dos territórios indígenas contra invasões. Com a maior população indígena do país, estimada em 55 mil pessoas distribuídas em 413 comunidades em 32 TIs já demarcadas, o equivalente a 46,2% de sua superfície, Roraima é um dos pontos mais assediados do país por empresários de mineração, que investem pesado em garimpos ilegais.
O cenário gerado pela pandemia do coronavírus, diz ele, aumentou a tensão na região. “A situação é complicada. Temos problemas de imigração, garimpos ilegais e agora a evasão de pessoas que estão saindo das cidades, das sedes das vilas e indo para as aldeias e áreas rurais em busca de refúgio. A gente trabalha com os grupos de vigilância no controle do nosso território. Mas essas pessoas, por si só, sem equipamentos não podem fazer esse trabalho porque é também expor a vida delas ao risco de pegar essa doença”, alerta o coordenador do CIR.
Enoque Taurepang assumiu o comando do CIR no ano passado. É líder da etnia na Comunidade Araçá, no município de Amajari, na fronteira com a Venezuela, onde 53,8% da população, estimada em 11.560 pessoas em 2017 pelo IBGE, é indígena. Na vila indígena vivem entre 1.800 a 2 mil pessoas que, segundo ele, se já sofriam com o fluxo migratório de quem chega ao Brasil pela BR-174, nos últimos dias vivem assombradas com os riscos de contágio do coronavírus. Mais a Leste, na TI Raposa Serra do Sol, a miscigenação é um dos fatores preocupantes. Os três municípios da TI têm população predominantemente indígena, com 88,1% em Uiramutã, 56,9 % em Normandia, na fronteira com a Guiana Inglesa, e 55,4% em Pacaraima, fronteira com a Venezuela. Roraima é o estado com maior proporção de indígenas, com 11% de uma população calculada em 450,4 mil pessoas em 2010, o que explica a forte presença das etnias nas cidades, inclusive na capital, Boa Vista. Segundo o Censo de 2010, 8.500 dos 450 mil habitantes da capital se declararam indígenas — os que vivem nas cidades não são atendidos pela SESAI, mas recebem, como a população em geral, o tratamento do SUS.
O plano de contenção das entidades como o CIR é controlar o retorno de índios de diferentes etnias que vivem nas cidades e, diante do medo do contágio, estão buscando refúgio nas áreas rurais. “Nosso principal objetivo para esse momento é fazer barreiras nas entradas de acesso para que tanto a população não indígena não entre, quanto para que os parentes não saiam. Se for necessário buscar algum gênero para dar suporte à família, que seja de forma organizada. A gente está fazendo o que pode, parando totalmente a vida da comunidade para combater o vírus e sobreviver dentro de nossos territórios”, afirma Enoque. Ele lembra, no entanto, que é difícil convencer um pai de família a ficar em isolamento, quando ele precisa sair para caçar e pescar. “Não tem como pedir que os pais fiquem 24h dentro de casa, uma vez que eles não têm um ganho, um salário ou apoio”.
Enoque conta que tem acompanhado diariamente os balanços feitos pelo comitê gestor do coronavírus e as medidas anunciadas pelo Ministério de Saúde, mas sente que não há nada claro sobre como lidar com as comunidades indígenas que, além de biologicamente mais frágeis aos vírus influenza, já enfrentavam o abandono dos órgãos estatais e a forte investida de grileiros e garimpeiros.
O coordenador do CIR afirma que as comunidades estão lutando sozinhas para enfrentar um provável avanço do vírus. “É necessário que o governo e as instituições competentes venham nos ajudar. Precisamos dos materiais básicos para prevenir e combater a doença caso ela chegue às comunidades. Mas parece que as comunidades não existem, vivem em outro mundo. Não há até hoje nenhuma política ou programa emergencial para cuidar da nossa gente, que é mais vulnerável e luta sozinha aqui na ponta”.
Nos últimos dias o CIR fez chegar às comunidades por aplicativos de celular, rádio ou telefone, mensagens suspendendo reuniões ou festejos que exijam aglomerações. “De nossa parte a estratégia é usar as redes sociais e tudo o que for possível em comunicação para manter nosso povo informado sobre tudo o que está acontecendo. Alertamos para que levem a sério e se previnam. É o que podemos fazer”, diz.

No congresso, a tentativa de aprovar medidas “urgentíssimas”

A deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) coordena a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas

No Congresso, a reação indígena ao coronavírus é capitaneada pela deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. “Há uma preocupação a mais quanto ao aumento das invasões das terras indígenas, principalmente em áreas que já têm histórico de invasão. Esse período de crise sanitária em nenhum momento fez frear as invasões dentro das terras indígenas, que buscam a exploração dos recursos naturais”, disse a parlamentar em entrevista online a jornalistas na última quinta-feira (9).
Joenia também afirma que os povos indígenas têm agido rápido e com firmeza para impedir que a Covid-19 se alastre nas aldeias. “As comunidades têm feito um trabalho incansável de alertar a sua própria população a não ir ao centros urbanos, adotando medidas de isolamento para que não haja a entrada de pessoas estranhas, esforços justamente para proteger a coletividade”, declarou.
Diante disso, há uma preocupação com a segurança alimentar: estão sendo discutidas maneiras para que a distribuição de cestas básicas não seja prejudicada, já que servidores de órgãos como a Funai, vindos de fora das aldeias, são quem realiza a entrega dos suprimentos. Ontem (13), a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves anunciou que a pasta entregará 323 mil cestas de alimentos a 161 famílias indígenas e quilombolas com ajuda da Funai e Fundação Palmares.
No Parlamento, Joenia tem contado com aliados no trabalho de contenção ao coronavírus entre os povos tradicionais. No fim de março, ela apresentou uma Proposta de Fiscalização e Controle (PFC) para monitorar a atuação da Sesai e do Ministério da Saúde no enfrentamento da pandemia entre a população indígena – a ideia é acompanhar os processos administrativos e verificar eventuais omissões dos dois órgãos.
Junto a outros parlamentares, a deputada também propôs um Projeto de Lei (PL) que obriga a União a liberar ao Subsistema de Saúde Indígena recursos adicionais, não previstos nos Planos de Saúde dos DSEIs, em caso de pandemia, emergência e calamidade em saúde pública. Essa e outras propostas recentes sobre direitos indígenas devem ser apensadas a outro PL, que determina a adoção de medidas “urgentíssimas” de ajuda às comunidades enquanto durar o decreto de calamidade pública. Estão entre as ações o pagamento de auxílio emergencial no valor de um salário mínimo a indígenas de todo o país, reforço na proteção territorial e incremento da estrutura de saúde dos estados e municípios para que possam comportar o tratamento de indígenas cujos casos demandam internação.

Vasconcelo Quadros, Anna Beatriz Anjos
14 de abril de 2020 às 12:00hs